Vende-se uma Lisboa multicultural
Os dados do turismo crescem em Portugal, há bares lendários a fechar para dar lugar a hotéis, lojas centenárias em risco e um rol de protestos pelo “tradicional”. Que filão se segue no turismo em Lisboa? Como é que a cidade está a vender a sua diversidade cultural?
O ponto de encontro é junto à Igreja de São Domingos, no Rossio, em Lisboa. Uma mulher guineense vende amendoins, e cola (espécie de castanha bem amarga que tem propriedades antioxidantes e estimulantes e costuma ser vendida na Guiné-Bissau). “Não se tiram fotografias a esta senhora”, diz Filipa Bolotinha, responsável pela Associação Renovar a Mouraria, que organiza tours no bairro feitas por “guias locais” – hoje é Fátima Ramos, historiadora, quem vai liderar.
Mais à frente, outra vendedora tem uma banca com cajus, cola e piticola, cabacera, quiabos, óleo de palma. Os “turistas” do grupo espreitam os produtos por cima dos ombros uns dos outros. Mais uns passos e é subir as Escadinhas da Barroca. Paragem num supermercado com produtos africanos: bolachas típicas de Cabo Verde, tâmaras, tapetes para rezar “que não podem ter figuras de animais, nem imagens com olhos”, diz a guia. Lá dentro há tabaco, farinhas várias, pilões para moer grãos.
Fátima Ramos, professora, 40 anos, faz estes tours de vez em quando há ano e meio. Quer mostrar a diversidade cultural e “como é que neste pequeno espaço conseguem estar culturas diferentes e viver de forma pacífica”, culturas que “representam também uma parte da própria cultura portuguesa”. “Se formos à praça do Martim Moniz temos de um lado os paquistaneses a jogarem cricket, do outro os chineses a fazerem as suas ginásticas matinais, do outro um muçulmano a rezar… E estão ali pacificamente no meio da comunidade portuguesa”, assinala entusiasmada e optimista.
Vai olhando à volta para descrever esta “babel”, que “contraria o mito” porque aqui convivem línguas, religiões e culturas diferentes mas “não se afastam”. “Quando há celebrações cristãs, os muçulmanos, hindus participam. Há cabeleireiros onde têm a imagem de nossa senhora de Fátima ao lado dos hindus”.
A tour andará muito à volta do comércio da zona, isto porque, justifica, é a actividade a que se dedica grande fatia da população imigrante do bairro.
David Kong, 35 anos, suíço, olha em volta com óculos escuros. Vai mandando piadas mais sarcásticas. Vive há dois anos em Portugal e queria conhecer a Mouraria. “Não gosto muito da gentrificação que estão a fazer, prefiro o meu bairro, a Colina de Santana”, comenta. Acha que a guia deveria mostrar o lado negativo, a sujidade, a prostituição, as drogas, coisas que ele sabe que existem porque já viu várias vezes. “Devia expor tudo e depois nós tiramos a nossa conclusão”.
A historiadora aponta agora: está aqui a praça do Martim Moniz, para onde levou o grupo, um lugar que já teve várias funções, e hoje é “alusivo à fusão cultural que existe na zona”. À frente está o Mercado de Fusão, com quiosques de gastronomia de várias partes do mundo.
Atravessamos o centro comercial da Mouraria: na cave as lojas vendem coisas de várias partes do mundo, saris indianos, bijutaria, roupas com padrões “étnicos”, alimentos e especiarias que só se encontram mesmo aqui. O grupo “entope” a entrada da mercearia de onde vem um cheiro intenso. O dono gosta desta “invasão” porque em cada visitante vê um potencial cliente. “É bom para a zona que está a ficar um bocado morta”, comenta.
Mas esta harmonia não é dominante, como, aliás, notou David. Não haverá o risco de passar uma imagem demasiado idílica da diversidade cultural lisboeta, perguntamos a Fátima Ramos? “Na parte institucional, existem muitas barreiras e dificuldades para o imigrante poder exercer os seus direitos”, reconhece a historiadora filha de cabo-verdianos. “Mas no terreno as pessoas conseguem fazer essa integração de forma mais rápida e natural”, conclui, pouco antes de apontar para as muralhas da cidade.
Uma das visitantes, Joana Jacinto, 24 anos, moradora na Mouraria há ano e meio, não dá, porém, essa imagem tão harmoniosa do convívio. “Falo com as velhotas do prédio e continuam a referir-se a esta multiculturalidade como os ‘monhés’. Continua a haver um bocadinho o choque cultural. Isso tem a ver com uma mudança muito rápida na Mouraria, os filhos que se foram embora e não querem viver aqui e estas diferentes culturas a aparecerem e a revitalizarem as lojas”, analisa.
Não existem dados sobre a diversidade étnica e racial dos portugueses porque não é permitido esse tipo de recolha de dados, então ela mede-se apenas pela imigração. Na Mouraria, estima-se que existam cerca de 50 nacionalidades, correspondendo a um quarto dos habitantes, diz o Censos 2011.
Só no concelho de Lisboa, ao contrário da tendência do resto do país, é que a população imigrante tem crescido: em 2013 esse crescimento foi de 1,1%, perfazendo um total de quase 46 500 imigrantes, valor que aumentou para 50 mil em 2014 – para se ter uma ideia, no Porto a população estrangeira é de 8 mil e só Sintra se aproxima de Lisboa com quase 33 mil (dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras relativos a 2014).
Como é que Lisboa, e a área metropolitana, estão assim a trabalhar a sua diversidade cultural em termos turísticos numa altura em que os números desta área não param de crescer? (Dados do World Travel & Tourism Council para Portugal mostram que o contributo directo do turismo para o PIB português deverá aumentar de 11,3 mil milhões de euros - 6,4% do PIB em 2015 - para 11,7 mil milhões este ano).
Algumas mudanças na Mouraria podem servir de barómetro. Por isso mesmo os “turistas” que hoje fazem este percurso com Fátima Ramos interrogam-se. Joana Jacinto quer saber o que os moradores pensam da injecção de dinheiro nesta zona.
O bairro foi mudando, sobretudo depois do projecto da Câmara Municipal de Lisboa de requalificação, com a renovação de praças e edifícios e o investimento em percursos turísticos. Houve a mudança (2011) do gabinete do então presidente da Câmara, António Costa, hoje primeiro-ministro, para o Largo do Intendente. Daí tornou-se pólo de atracção turística, não só para lisboetas como para restantes portugueses e estrangeiros.
“As pessoas mais novas se calhar vêem aqui oportunidades de negócio, talvez os mais velhos sintam que há mais barulho”, por exemplo – responde a guia. “Mas a injecção para quebrar a exclusão social faz todo o sentido”, sublinha.
Filipa Bolotinha, que vive e trabalha na Mouraria, intervém para dizer que “não se deve diabolizar o que está a acontecer” porque até agora as “pessoas estão contentes com o que aconteceu no seu bairro”. Reconhece que se chegou a “um ponto em que é possível vir a ser necessária uma segunda intervenção que tem a ver com a questão do turismo e dos apartamentos”. Ela própria nota que o grande problema hoje é que quem quer ir para lá viver não consegue, “não há apartamentos para alugar”, desabafa para o grupo. “Conheço muita gente que está à procura e não encontra”. É verdade que talvez o preço das casas tenha que subir, “porque estamos no centro de Lisboa”, mas a questão é que a escassez se deve ao facto de “toda a gente querer alugar a turistas”, pois “ganha muito mais dinheiro”.
Independentemente disso, as visitas organizadas na Mouraria têm como objectivo mudar a maneira de pensar da população portuguesa sobre as questões da multiculturalidade, diz Filipa Bolotinha, também responsável pelo projecto Migrantour, uma rede europeia em que guias locais fazem passeios “interculturais” no qual este se integra. A ideia é quebrar os estigmas e ideias pré-concebidas e, ao mesmo tempo, “contribuir para a integração das comunidades migrantes no seu território, e da sua apropriação desse território”.
“Já te tinha dito para ires embora!”
Nem sempre a convivialidade é pacífica na Mouraria. Dia de semana à tarde e, num passeio pelas ruas estreitas do bairro que fica numa colina, vêem-se alguns turistas, poucos moradores. Numa esquina há um restaurante que já veio em guias turísticos. O dono do espaço há 30 anos confessa que nem toda essa diversidade é aceite com bom grado. “A população vai embora, os ‘monhés’ vêm para aqui. Acha que nós gostamos deles?! Pedem 350 euros por uma casa que ninguém dá mas os ‘monhés’ metem-se lá oito e dão…”
Um dos clientes, um jovem com boné e fato de treino, sai de dentro do restaurante e desata à pancada a um homem de etnia cigana que está a vender pastilhas elásticas e outros produtos. “Já te tinha dito para ires embora!”, grita enquanto lhe bate. O saco preto fica espalhado na rua, ouvem-se berros. “O homem entra aqui 80 vezes a oferecer coisas às pessoas, as pessoas dizem que não e ele volta…”, justifica o dono do restaurante, desculpabilizando o cliente. Mas neste bairro há respeito, defende, e “há mais bandidos fora do que dentro”. Turistas são bem-vindos, e estrangeiros que queiram investir também.
A florista Fernanda, que vive na Mouraria há 40 anos, conta que uma agência imobiliária lhe chegou a oferecer o dobro pelo seu apartamento - não aceitou. A proliferação de hostels está a descaracterizar o bairro, acusa. As mudanças foram muito grandes: “Havia bairrismo e essa tradição está a acabar”, lamenta. “Toda esta imigração conseguiu encaixar na Mouraria. Antigamente as pessoas tinham a sua porta aberta, roupa estendida e agora vêem-se muitos chineses, paquistaneses, indianos, que se infiltram dentro de uma casa, duas ou três famílias. O bairro começa a não ser lisboeta. A tradição de fazer o fogareiro à porta, assar sardinhas e convidar os vizinhos está-se a perder”.
Timóteo Macedo recebe-nos na sede da Associação Solidariedade Imigrante, que tem 26 600 associados de mais de 97 nacionalidades. É um espaço em plena Baixa, num prédio junto ao Terreiro do Paço. Lá dentro, a mesa tem vários homens com papéis à frente, ajudados por um dos funcionários da associação. Atendem dezenas de pessoas por dia. “O que acontece neste momento é que de repente transforma-se o Martim Moniz no ‘mercado de fusão’. E quem frequentava antes? Eram muitos imigrantes que moravam nas imediações, os seus filhos que iam jogar à bola. Eram espaços de partilha. Há o fenómeno de centrifugação e as pessoas são cada vez mais afastadas para mais longe”, critica.
Timóteo Macedo nem sequer considera positivo para a imigração a afluência de turistas e a revitalização com a organização de eventos em lugares como o Mouraria e Intendente. “Ali estigmatiza-se a própria imigração”, critica. “Faz-se folclore”.
Mouraria, Intendente, Martim Moniz são zonas com muitos imigrantes. Chamam-se turistas para “ver o exótico”. “Não podemos alimentar estas políticas. Não é de exotismos que a cidade de Lisboa tem que viver. Acantonam ali a imigração e muitas vezes a ‘imigração indesejável’: são paquistaneses, chineses, do Bangladesh e de outras origens. Muitos não estão documentados, estão em fase de transição, à procura de se documentarem.”
A Solidariedade Imigrante organiza eventos, como o Festival ImigrArte – debates, exposições, teatro e dança – com várias organizações de imigrantes. O que gostava era de ver as comunidades fazerem actividades com as suas próprias dinâmicas, e não algo que é imposto “de cima para baixo”.
Quer o quê?
Manuela Júdice está à frente do gabinete da câmara Lisboa Encruzilhada de Mundos desde 2008 que, entre outras coisas, organiza o Festival Todos - a política é promover a interculturalidade e de três em três anos mudam a zona da cidade onde estão implementados.
Em 2009, o primeiro Todos “ocupou” a zona da Mouraria e Intendente, abrindo-a ao turismo, define. Porque “havia medo de entrar”. Foram depois para São Bento/Poço dos Negros/zona perto da Assembleia da República, onde houve muita imigração cabo-verdiana há várias décadas, mas que agora desapareceu - encontraram muitos estudantes Erasmus. Desde 2015 que o Todos se mudou para o Campo Santana.
“Queremos passar a imagem de que Lisboa só tem a ganhar com a incorporação das várias culturas. A diversidade é uma vantagem que tem sobre muitas outras cidades”, diz, no gabinete em plena Baixa.
A ex-vereadora considera que é positivo ter pessoas de fora, mesmo nos bairros como a Mouraria, a tirar fotografias, a visitar. “Nunca mais me esqueço que na primeira edição convidámos um fotógrafo francês, Georges Dussaud e o cartaz desse ano foi este ‘quer frô’ [nome pejorativo que se dá aos vendedores de flores de origem sul asiática] numa festa da Senhora da Saúde na Mouraria [mostra o cartaz com a fotografia de um senhor com um ramo de flores]. O facto de ele ter sido olhado e fotografado por um estrangeiro e o facto de poder mostrar foi tão, tão importante para a auto-estima…Agarrou-se a nós e disse: ‘muito obrigado, vivemos escondidos e só saímos à noite para vender as flores’.”
Perguntamos à responsável por um gabinete que tem como linha de acção a diversidade se tem noção de que acabou de usar uma expressão discriminatória - “quer frô”. “Para mim não é de todo pejorativa ou racista, é ternurenta. O facto de estar a vender flores - foi a expressão que usei”.
Além do Todos, o gabinete organiza a semana da harmonia inter-religiosa e o dia internacional da língua materna, mas estes eventos não são propriamente pensados como atracção turística – não há um gabinete camarário focado no turismo da diversidade cultural.
Há uns tempos, uma jornalista francesa questionou a também secretária-geral da Casa da América Latina sobre porque é que em Lisboa não havia nenhum monumento, mural ou museu dedicado à escravatura – nada, quando Portugal foi um dos principais actores do comércio de escravos transatlântico. Não consegue encontrar nenhuma razão. “E eu nunca tinha pensado nisso”, confessa.
Neste momento, o Museu Judaico tem inauguração planeada para 2017 – foi a câmara que teve que ir procurar o financiamento, diz, apesar do apoio da fundação do patrão da Altice, Patrick Drahi, dono da Portugal Telecom.
As memórias apagadas
De facto, mesmo no circuito comercial é mais fácil encontrar passeios ligados à cultura judaica do que africana, por exemplo.
A Lisbon Walker é uma das empresas de animação turística que fazem os dois tipos de passeios. O historiador José Antunes vai hoje fazer para o PÚBLICO um condensado de um percurso que dura umas três horas. Costuma avisar: “Não vão ver nada, eu vou-vos contar histórias, não há nada”. Trabalha com a imaginação: além de ter existido Inquisição durante séculos que eliminou elementos da cultura judaica, houve o terramoto de 1755. José Antunes percorre as ruas de Alfama onde foi identificada uma sinagoga e aquela que ainda hoje tem o nome de Rua da Judiaria (bairro judeu). “Não há nada de palpável”, repete. A única sinagoga que existe em Lisboa, construída no início do século XX, não tem fachada para a rua porque os templos não católicos não podiam estar visíveis e fica na Rua Alexandre Herculano.
A judiaria de Alfama era pequena, com uma comunidade “supostamente mais pobre”, sublinha. A grande judiaria era na baixa, próximo da Praça do Município (havia ainda outra junto ao Convento do Carmo).
Costuma passar pela Praça do Comércio para falar das origens da presença judaica, ponto que fica próximo das três judiarias em Lisboa - e aqui chegaram a acontecer autos de fé, nota. Na Casa dos Bicos refere a forma como se organizava a vida e negócios dos judeus. Perto da Sé há um painel de Padre António Vieira onde fala dos “filossemitas”, amigos de judeus. Na Mouraria faz o contraponto entre as duas comunidades, os mouros e os judeus. Na Praça da Figueira descreve o Hospital de Todos os Santos, construído com “muita pedraria trazida dos cemitérios dos mouros e judeus, saqueados”. Termina no Rossio, com o massacre dos judeus - não vai à Sinagoga de Lisboa porque é preciso marcar, há fortes restrições por causa da segurança e a fachada está escondida. Mas dá números sobre a actualidade: o último Censos identificou 5 mil judeus.
A tour é procurada por americanos, israelitas, ingleses, holandeses, belgas. É o terceiro passeio para o qual têm mais pedidos - os dois primeiros são genéricos.
Paramos, em Alfama, junto ao Chafariz d’El Rei, local simbólico da presença judaica - D. Manuel, em sequência do massacre dos judeus em 1506, tinha feito saber que as bicas no chafariz seriam usadas, cada uma, por marinheiros, escravos, mouros, cristãos novos, segundo José Antunes.
Este é também um marco da presença africana em Lisboa, até por causa do quadro de um anónimo do século XVI onde aparece uma grande quantidade de população africana. “Com certeza que o que o autor fez foi concentrar na mesma imagem muito do que viu em Lisboa”, interpreta.
José Antunes é dos poucos a fazerem a tour da Presença Africana, e isto surpreende já que é bem antiga. Fazendo uma busca na Internet não se encontram referências a circuitos com este tema noutras agências.
O próprio José Antunes faz muito menos este tour do que o da Presença Judaica (tem uma média de um pedido semanal). Estima que, por ano, a tour da Presença Africana, desenhada há uns cinco anos, seja feita umas “quatro ou cinco vezes”. E é procurado sobretudo por americanos e portugueses. “Diz-se que Portugal é uma nação de tráfico de escravos, mas em sítio algum me lembro de terem dito que em Lisboa havia 15% de africanos no século XVI - o que mostra uma presença muito mais forte do que a que aparece nos livros.”
José não vê qual seja o entrave em mostrar a História como ela foi. “Era uma obrigação ter um Museu da Escravatura, e isso pode trazer vantagens. A parte da História não é tão agradável, continuamos a pensar nos Descobrimentos como ‘Portugal deu novos mundos ao mundo’.”
Até mesmo a nível turístico, “não podemos ter paninhos quentes”, salienta. “Não vamos assumir que Portugal era um país escravocrata porquê!?”
A tour passa sobretudo nos lugares da história da escravatura e normalmente a pé: Largo de São Domingos, Praça do Comércio, Chafariz, Poço dos Negros, Mouraria, Cais do Sodré, Madragoa - o antigo Mocambo (lugar de refúgio em umbundo, língua angolana). Gosta de combinar com a comida africana na Baixa, terminando com a presença africana actual - fala também da casa dos estudantes do império como marco da negritude, do facto de existir trabalho forçado em São Tomé e Príncipe, por exemplo, até ao século XX, ou da ausência de negros em lugares de destaque na sociedade portuguesa actual.
É em Lisboa, Cidade Africana — Percursos e Lugares de Memória da Presença Africana, Séculos XV-XXI, de Isabel Castro Henriques e Pedro Pereira Leite (disponível, aliás, na Internet) que se encontra a presença da escravatura na cidade. E é essencialmente nela que se baseia outra tour do género feita por Naky Gaglo, imigrante do Togo (o circuito é anunciado no site trip4real.com).
Sarah e Elisha James, casados, são dois afro-americanos de Nova Iorque que estão de visita a Lisboa. Ela é a segunda vez que vem, depois de ter vivido em Espanha e de ter visitado a capital lisboeta há uns anos. Na altura ficou surpreendida pelo facto de haver tanta gente negra na rua quando em Espanha “está escondida”. “Não é assim tão comum encontrar tours onde se aprende sobre cultura africana”, diz Sarah.
Naky Gaglo, que estuda Geografia, faz este percurso há dois anos – ao todo, umas 14 vezes desde então, sobretudo com turistas afro-americanos. Começa pela Praça do Comércio para se falar da relação com o Rio Tejo e a partida e chegada de navios negreiros no século XV. Sarah e Elisha vão fazendo várias perguntas para as quais o guia não tem respostas prontas. Qual era a diferença entre a escravatura em África e na Europa, como eram tratadas as mulheres e crianças, há escravos que a determinada altura se libertam, como é a convivência hoje entre os negros e os brancos em Portugal?
A chuva que cai neste dia de Março é forte, é preciso ir para debaixo de um telheiro. Para-se agora em frente à estátua do Marquês Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, junto ao Mercado da Ribeira. Ali se vê a homenagem ao homem que publicou os decretos que iriam abolir o comércio de escravos (1836) e a escravatura (1869) em todo o território português. Aos pés do marquês uma figura que representa uma mulher, supostamente Fernanda do Vale, uma escritora e toureira mestiça, conhecida por ‘Preta Fernanda’, segundo Isabel Castro Henriques.
Sarah James gosta deste tipo de turismo onde se ganha outra perspectiva da cidade que está a visitar, e se tem a oportunidade “de ver mais profundamente a história de um país”. A tour tem muita história mas à medida que se avança repara que há muita coisa do passado que ainda está presente diz, enquanto sobe as escadinhas longas e íngremes da Bica. "O que é que as pessoas negras em Portugal sabem desta história e quanto é ensinado nas escolas?”, quer saber.
Iremos parar na Rua das Gáveas, no Bairro Alto, onde viveram vários africanos; na Igreja de Santa Catarina, onde há uma pintura com um casal de africanos; em Cruz de Pau, onde se infligiam os castigos aos escravos; e logo a seguir no Poço dos Negros onde “em 1515 D. Manuel I mandou construir (o poço) para que aí fossem lançados os ‘escravos que falecem nessa cidade’”, como se lê no guia de Henriques.
Antes de terminar a visita mais de cinco horas depois numa tasca angolana no Martim Moniz, Naky Gaglo ainda pára no Largo de São Domingos para mostrar a Igreja - que abriu as portas à confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, protectora dos africanos.
“Levou-nos a muitos sítios onde se consegue perceber a história”, comenta Elisha James no final. “Foi muito cool, e estou contente de ter trazido ténis porque andámos imenso!”
Desconstruir estereótipos
O grupo de quase 30 pessoas que hoje visita a Cova da Moura, na Amadora, tem um interesse específico - são do núcleo de Acção Social do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). O estudante Afonso, 20 anos, presidente do núcleo, explica que querem ver de perto realidades diferentes e acha este tipo de visitas essenciais para “desconstruir estereótipos”.
Por isso quiseram conhecer o projecto desenvolvido pela Associação Moinho da Juventude, que apoia a comunidade em diversas frentes desde que foi fundada em meados dos anos 1980 (oficialmente em 1987) por uma belga, Godelieve Meersschaert, e o seu marido Eduardo Pontes. O bairro, que nasceu nos anos 1960, foi ganhando população essencialmente vinda do Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.
Estamos em frente a um dos grandes graffitis que se espalham pelas ruas da Cova da Moura. Olhamos para o topo da colina e ali está Amílcar Cabral, herói das independências e uma das grandes referências da negritude. A sua boina e os óculos são inconfundíveis – é o símbolo de um bairro que tem na sua maioria habitantes de origem cabo-verdiana.
Bino, ou Silvino Furtado, faz as visitas do Sabura, como se chama o projecto de “tour” pelo bairro, há “cerca de 10 anos”. Criado em 2004, o Sabura quer quebrar os estigmas ligados a um bairro que está na mira da polícia e de alguns media pelos piores motivos (droga, violência). “Como moradores essa não é a nossa percepção, e quisemos criar algo para as pessoas conhecerem melhor o trabalho da associação e o quotidiano do bairro, mostrar que é como outro qualquer.”
Outra das ideias foi criar parcerias com a economia informal como os restaurantes, mercearias, cabeleireiros e inseri-los no projecto -há a hipótese de se fazer a marcação para jantar ou almoçar por 7,5 euros, menu completo. Recebem portugueses mas também estrangeiros.
Os moradores já estão habituados, conta Bino, 33 anos, auxiliar de educação e animador cultural. “Para o bairro também é bom, abre para fora e é uma oportunidade para travarem relações com outras pessoas. Se não houvesse as visitas muita gente nunca viria aqui.”
As visitas variam consoante o grupo - a padrão passa pelas várias valências do Moinho da Juventude, mas se se quiser focar, por exemplo, nos cabeleireiros, ele também o faz. Paragem agora no Espaço Jovem, onde funciona um estúdio de gravação, para Bino fazer a introdução. Sobem-se depois umas escadas que vão dar ao Espaço Polivalente, e onde de uma cozinha sai o cheiro a almoço. Aqui funciona a cantina social, onde dão assistência a famílias mais carenciadas. O espaço é luminoso e tem nas paredes alguns quadros. Serve para ensaios de grupos como o de batuques Finca Pé. Vê-se material que costuma ir nas Festas de Kola San Jon, a festa tradicional de São Vicente e Santo Antão celebrada aqui há anos.
Visitam-se outros espaços, percorrendo as ruas íngremes, enquanto nos cruzamos com moradores: o Centro de Actividades de Tempos Livres, que abre às 7h30 - é Bino quem vai buscar os meninos à creche, onde alguns chegam às 6h; o Gabinete de Inserção Profissional, onde se desenvolvem projectos de empreendorismo; o Ninho dos Jovens onde as crianças e bebés estão a fazer ginástica – aqui à tarde trabalha-se com o “pessoal mais velho” a quem se ensina a ler e escrever; a Biblioteca e centro de documentação, que era uma antiga garagem e foi adquirido com um donativo da fundadora do Moinho com o dinheiro do prémio Mulher Activa 2005.
Álvaro, 29 anos, é de Moçambique e está em Portugal há seis meses para estudar no primeiro ano do curso de Acção Social - já é funcionário no Instituto Nacional de Segurança Social. Visto de fora, parece-lhe que o próprio bairro fica motivado com estas visitas, mas é importante que não se passe aos habitantes a sensação de que estão a ser objecto de uma pesquisa ou de auditoria.
Uma hora e meia de visita depois, as estudantes Sara Ramos, 20 anos, e Eurídice Maurício, 22, não têm dúvidas de que já mudaram a ideia que tinham da Cova da Moura. “Quando aparece nas notícias é sempre de forma negativa, e as pessoas constroem rótulos sobre quem vive aqui: é tudo bandido”, diz Eurídice Maurício. “E não é assim. Vi pessoas que se conhecem bem e um trabalho em equipa para mudar a realidade de quem está excluído.”
Sara Ramos defende que este tipo de visitas deveria existir em todos os bairros sociais.
A visita ajuda a desconstruir estereótipos - mas convence a ir lá morar, por exemplo? “Se tivesse que ser”, responde Eurídice. “Acho que nem as pessoas que vivem aqui gostariam. Porque é uma forma de exclusão social - o facto de estarem aqui é exclusão.” Sara completa: “Por mais que as pessoas queiram mudar a imagem, o pensamento vai sempre para aquele lado.” Mariana Castelo completa: “São precisos muitos anos para mudar uma coisa que aconteceu em cinco minutos. Até podem acontecer noutro lado, mas só o facto de ser aqui…”.
À saída, uma moradora, Isabel Andrade, que é ama há 12 anos, diz-nos que gosta de ver gente de fora a visitar a Cova da Moura: é importante sentir que as pessoas não têm medo de entrar.
A suspensão da realidade
O ideal era que as entradas e saídas destes territórios como a Cova da Moura ou a Mouraria fossem naturais, que as pessoas pudessem cruzar as várias esferas - a comunal do bairro e a mais pública, analisa António Brito Guterres, investigador de Estudos Urbanos no ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa). “Sabemos que a cidade está construída de tal forma segmentada que é quase impossível transpor essas barreiras”, continua, sentado num espaço comunitário da Curraleira, um dos vários bairros sociais onde já trabalhou. No entra e sai de jovens e crianças, toda a gente o cumprimenta, com afecto.
“Lisboa é uma cidade sobre a qual existe o discurso de que há ainda muito por explorar em termos turísticos mas tem um problema: o conteúdo desse turismo tem sido o espaço territorial de 500 mil pessoas (o centro do concelho) quando a escala de Lisboa é muito maior”, continua.
Brito Guterres problematiza a questão dos percursos “pelos ditos bairros problemáticos”. “A que é que isso responde? E a quem responde? O que desenvolvem?”
O posicionamento, mesmo dentro dos próprios bairros, é naturalmente diferente de pessoa para pessoa. Haverá quem ganha com as visitas, haverá quem não gosta. Mas de qualquer forma há sempre diferenças entre os circuitos na Cova da Moura e da Mouraria, nota: no primeiro, o envolvimento comunitário que permite o apoio entre os moradores fica exposto quando as pessoas lá vão porque o espaço público é mais uma extensão do espaço privado; já no Martim Moniz essa invasão não será tão forte porque “o espaço é público per si”.
Por outro lado, alerta: “Há uma romantização à volta de percursos de vida que não são bons, de pessoas que saem às 5h para trabalhar….”
Acontece também uma contradição: o empreendedor que aparece para dinamizar o bairro ser uma pessoa de fora e no bairro desenvolverem-se actividades de economia paralela em que não se pode fazer uma cachupa em casa para vender aos visitantes por causa da ASAE. Ou seja, “mitiga-se um determinado tipo de vida à volta desses circuitos, ao mesmo tempo que as políticas públicas censuram o que vem de uma economia doméstica.”
Na Quinta da Fonte é relativamente larga a avenida principal pela qual se distribuem os prédios pintados de uma cor amarelada, blocos de habitação social e outros de cooperativa onde vivem mais de 2500 pessoas, muitos de origem africana e cigana.
É de manhã, e há jovens, em grupos, sentados em muros a conversar.
A “receber” os visitantes está uma enorme fachada com graffiti, fruto do festival O Bairro i o Mundo, uma colaboração entre o Teatro Ibisco (que é mais do que um teatro, tem projecto de emprego, por exemplo) e a Câmara Municipal de Loures, com apoio do programa Escolhas do Alto Comissariado para Migrações. Hoje organizam visitas a esta galeria de arte pública.
Eunice Rocha, produtora do Ibisco, vai contando a história do festival que começou em 2013 neste lugar e que no ano seguinte foi para a Quinta do Mocho, também em Loures. Os dois bairros são conhecidos como sendo rivais e o trabalho do teatro em várias actividades tem conseguido quebrar algumas barreiras. “As pessoas temiam entrar aqui, não se sentiam confortáveis”.
O bairro hoje aparece nos media por bons motivos, mas normalmente era pela “má fama”, rixas e violência. Verdade que muita gente nunca sai do bairro, nem tem noção do que se passa lá fora, admite Carlos, morador. Mas vir gente de fora entrar com mais confiança anima, defende. Eunice complementa: “Só podemos estar aqui se a comunidade nos der essa confiança, porque se houver alguma coisa que não seja do agrado rapidamente somos corridos.”
Estamos em frente de uma parede de um prédio em que há quatro rostos pintados a graffiti, rostos de diferentes “heróis”, entre eles Salgueiro Maia e Che Guevara, desenhados a negro. Houve gruas, pessoas a ajudar e a aproximarem-se, debate, algumas lutas sobre quem colocar ali e negociações. “A equipa de produção escolheu Salgueiro Maia”. Eles queriam Amílcar Cabral. “O Salgueiro Maia não lhes dizia nada”, comenta Eunice Rocha.
Em baixo, noutra fachada, o rosto de Nelson Mandela a preto e branco impõe-se, com algumas citações do líder sul-africano. Atrás de nós há um relvado enorme que circunda este bairro. Há outros graffitis cheios de cor. David Luís, 34 anos, que tem uma empresa de remoção de graffitis, intervém: “Ao princípio muitos deles ficaram desconfiados, é normal. Há cinco anos vocês não podiam estar aqui a tirar fotos, eram assaltados. Hoje não. Há muitos jovens que não saem do seu local de conforto, mas quando saírem vão sentir-se incomodados porque pararam no tempo. Vão à procura de quem esteve a dar formação para irem para fora. Mas também queremos pessoas que venham cá para dentro: pessoas, empresas e tudo mais porque o bairro continua a precisar de ajuda, de manutenção, e até de manutenção psicológica.”
A poucos minutos de carro da Quinta da Fonte está a Quinta do Mocho, com uma maioria de população angolana, cerca de mil famílias. O guia agora é Edilson Nunes, 31 anos - ou Deidei.
O impacto dos 50 murais nas fachadas dos prédios é poderoso. O título galeria de arte pública faz jus ao nome: é exactamente essa a sensação que se tem enquanto se circula nas pequenas ruas do bairro: estamos a caminhar numa galeria a céu aberto.
A maioria dos artistas é de fora do bairro e reconhecidos. Deidei mostra-os orgulhoso, passa por murais de artistas como Utopia, Tamara: Vhils é o mais conhecido e desenhou o rosto de um DJ do bairro, Nervoso, causando polémica já que não é figura consensual.
Podemos ver o rosto de Amílcar Cabral, feito por António Alves; a figura de alguém a usar uma máscara, representando o gesto do que era entrar e sair do bairro onde era problemático dizer que se vivia. “Às vezes as pessoas escondem-se quando vão à procura de emprego”, comenta Deidei. Antes o bairro tinha assaltos e “coisas do género”, continua, e isso “era uma forma de gritaria para chamar a atenção da sociedade e dizer que também existíamos”. “Hoje temos pessoas que trabalham para o positivismo. Somos conhecidos pelo que fazemos, pela música.”
Vamos passeando entre a galeria, há até murais com a chanceler alemã Angela Merkel. Deidei vai contando as histórias à volta da pintura de determinados murais - sabe de cor os nomes dos artistas. Os moradores olham indiferentes a nossa passagem. A estender roupa, Gilberto diz-nos que é indiferente abrir a janela e ver a parede da frente pintada com um grande mural. Sentadas junto a uma árvore, duas jovens moradoras, Mariana e Leo, respondem que gostam de ver as pinturas mas uma delas comenta: “Já tem muitos desenhos, depois acaba por ficar esquisito. Não tem graça ficar em todos os prédios.” As visitas ao bairro de turistas é “bom” para “não dar aquela fama”. “Não é um bairro pior que os outros. É normal. Antigamente era mais coiso, agora não se vê tanta confusão.”
A obra de arte número 50 é da mexicana Eva, uma das artistas mais jovens, com 23 anos. A maioria dos artistas são de fora do bairro e fora do país - não são remunerados. “No bairro até existiam artistas mas de tal categoria não”, justifica Deidei. Começaram por 10 artistas, sem nunca pensar que as candidaturas podiam crescer tanto - e a partir daí foram-se oferecendo cada vez mais artistas. Hoje há uma lista de 30 à espera de trepar as paredes dos prédios da Quinta do Mocho.
As intervenções e esta abertura ajudaram o bairro a superar alguns dos problemas. Mas como diz Eunice Rocha: “Não podemos ser demasiado românticos. Estamos a falar de coisas bonitas mas é óbvio que há problemas diários e estamos aqui para ajudar a solucionar esses problemas: como em todo o lado, a pequena criminalidade continua.”
Regressamos à Curraleira, onde por enquanto não há nada de turístico para mostrar, aparentemente. Com o crescimento do turismo em Portugal e em Lisboa o mais natural é que se comecem a explorar cada vez mais os circuitos da diversidade em termos comerciais, prevê António Brito Guterres: a Lisboa do pós-colonialismo, a Lisboa cigana, a Lisboa africana, do bairro excêntrico onde ainda há barracas... “Lisboa é tão segmentada que isso vai ser explorado de certeza. Quem vai ganhar? E como se vai lidar com a incoerência de se ir à procura de um tema e forma de estar, que depois as políticas públicas castigam?”
O paradoxo, continua, é que de repente há uma série de fronteiras que podem ser pacotes turísticos numa cidade que não circula, que tem várias diversidades que não se dão entre si. “A existência desse circuito turístico quase é uma demonstração de que há uma cidade que exclui, que está segmentada.”
Na verdade, os circuitos turísticos acabam por assinalar ainda mais as diferenças: aqui estamos nós, ali estão eles. “Sempre que fazemos um tour desses há uma suspensão da realidade, há muita mediação no meio portanto acabamos por ter uma análise estética, pré-concebida e não aprofundada. Continua a ser um consumo e não é muito diferente de ir ver um espectáculo em que não me relaciono mas consumo.”