Tetraplégico recupera movimentos da mão com bypass neurológico
Pela primeira vez, um homem de 24 anos que partiu o pescoço e ficou paralisado mexeu a mão enquanto pensava em mexer a mão. Os cientistas usaram um implante, um computador e uma manga de estímulos eléctricos para fazer o bypass entre o cérebro e os músculos.
Há coisas muito simples que fazemos todos os dias e que tomamos por garantido. Gestos como pegar num copo ou passar um cartão numa máquina para fazer um pagamento, por exemplo. Como a maioria das pessoas, Ian Burkhart não perdia um segundo a pensar nestes movimentos. Porém, há seis anos, um acidente nas férias com a família deixou-o tetraplégico. Ian tem 24 anos e passou os últimos muitos meses envolvido num projecto que permitiu que recuperasse alguns dos gestos mais simples da mão e que faziam parte da sua vida. O artigo que explica como isso foi possível é publicado esta quinta-feira na revista Nature.
Após o acidente, os médicos disseram a Ian Burkhart que “tinha partido o pescoço”. A lesão na medula, ao nível da vértebra C5, deixou-o tetraplégico. De um momento para outro, as ordens que o cérebro dava ao corpo para que mexesse os músculos bloqueavam na espinal medula, no local da lesão, como se batessem num muro.
O que os cientistas da Universidade Estadual do Ohio e do Instituto Battelle (ambos no EUA) afirmam ter feito – num meticuloso trabalho que esta semana publicam na Nature – foi um bypass entre o cérebro e os músculos da mão de Ian Burkhart, usando um computador que decifrou os sinais neuronais, traduzindo-os em impulsos eléctricos que descarregam numa manga no braço.
Com este bypass, Ian Burkhart usou “apenas” os seus pensamentos (o “poder da mente”) para mexer a mão em tempo real. Até agora, houve outros projectos que relataram resultados encorajadores recorrendo também a sistemas que conseguiam traduzir a actividade cerebral em sinais motores mas para aparelhos como braços robóticos ou activando músculos em macacos. Este novo artigo mostra que a abordagem do bypass pode resultar em tempo real para recuperar um movimento numa pessoa. Algo que ainda não sido feito em pessoas.
“Pela primeira vez, a recuperação do movimento dos dedos, da mão e do pulso numa pessoa paralisada foi conseguida usando os sinais registados no córtex motor do doente”, resume o comunicado de imprensa da Nature que divulgou ainda dois vídeos, um dos quais com o testemunho de Ian Burkhart, sobre o trabalho de físicos e neurocientistas. “Foi um choque quando ligaram tudo pela primeira vez e consegui mexer a minha mão”, conta Ian num dos vídeos.
Para chegar até aqui, foi preciso primeiro decifrar o que dizia o cérebro quando Ian pensava em mexer a mão. Como? Em Abril de 2014, após uma cirurgia que demorou três horas, foi colocado um pequeno implante (mais pequeno do que uma ervilha) no seu cérebro, no córtex motor. Junto ao crânio foi colocado um aparelho que recebia os sinais e os transmitia ao computador. “Uma ligação que funcionou com uma janela para a actividade neuronal de Ian”, explica Chad Bouton, primeiro autor do artigo científico e investigador no Instituto Battelle. Durante meses, o computador tentou decifrar o código que o cérebro usava para os movimentos da mão e, num treino intenso de três sessões por semana durante 15 meses, Ian reaprendeu a pensar em mexer a mão (com a ajuda de imagens desses movimentos). Enquanto isso, exercitou também os músculos num dos braços que estava parado há mais de três anos.
O sistema do computador estava ligado a um outro aparelho de alta resolução para estimulação eléctrica neuromuscular – uma espécie de manga feita de fitas e colocada no braço – que fornece sinais aos músculos da mão. “Sem este sistema e esta tecnologia, Ian não consegue agarrar objectos”, prossegue Chad Bouton. Com o sistema, Ian Burkhart consegue abrir e fechar a mão, agarra numa garrafa, segura objectos mais pequenos como um lápis ou uma colher, toca guitarra num jogo de vídeo ou segura um telefone junto à orelha… No total, o sistema conseguiu garantir o controlo de seis movimentos da mão e do pulso.
“Estamos numa fase inicial, ainda a trabalhar no laboratório, mas esperamos que um dia seja possível levar esta tecnologia até um ponto em que não só beneficie lesionados medulares mas também vítimas de enfarte ou de outro tipo de traumatismo craniano”, antecipa Chad Bouton.
“Estamos a mostrar pela primeira vez que um tetraplégico é capaz de melhorar a sua função motora e movimentos da mão”, diz Ali Rezai, neurocirurgião da Universidade Estadual do Ohio, que espera que “um dia” esta tecnologia esteja apoiada num sistema wireless “que ligue os sinais do cérebro e pensamentos ao mundo cá fora para melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência”. “Um dos objectivos mais importantes é conseguir que seja possível que estas pessoas usem isto nas suas casas.”
O trabalho de colaboração entre a Universidade Estadual do Ohio e o Instituto Battelle (que se dedica à neuromodulação e a dispositivos médicos) começou há cerca de quatro anos mas a equipa do Battelle já trabalha nesta tecnologia (quer no software do computador e o algoritmo, quer na manga) há mais de uma década. Ian Burkhart foi o primeiro de cinco prováveis participantes no estudo clínico. O segundo doente já foi identificado e deverá começar os treinos este Verão.
Para Burkhart, a participação no projecto foi algo de fantástico. Num dos vídeos, Ian desabafa: “Valorizo muito a independência que tinha antes do acidente. Se pudermos ajudar a devolver nem que seja só um bocadinho dessa independência a alguém já será algo extraordinário.”