Em Salvador da Bahia, mostrou-se o cante como ele é
O cante dos Camponeses de Pias continuou a misturar-se com a capoeira e as baianas. “Há três anos, ninguém sabia no Brasil que o cante existia”, disse o coordenador Feliciano de Mira. Depois desta semana, percorreu um pouco mais de caminho.
É quarta-feira e estamos no centro da zona histórica de Salvador da Bahia, Largo do Pelourinho a dois passos, a ser guiados pela vila alentejana de Pias. Caminhamos pela galeria Solar Ferrão, instalada no espaço com o mesmo nome. É um edifício senhorial construído entre o final do século XVII e início do século XVIII e que hoje, recuperado, alberga vários espaços dispostos pelos diversos andares do edifício, onde se encontram exposições permanentes de arte africana, de instrumentos musicais tradicionais ou de instrumentos inventados, livremente inspirados na tradição, por Walter Smetak, um suíço há muito instalado em Salvador.
Ali vemos e ouvimos o grupo de capoeira de Mestre Cyborg, porque a capoeira vê-se e ouve-se naquela dança que é arte marcial sem choque, harmonioso diálogo de corpos que não se tocam, tudo ritmado a canto, berimbau, chocalho e pandeiro. Ali se ouvirá o cante, frente a frente com os capoeiristas. E mais abaixo, descendo as escadarias, chegaremos ao pátio nas traseiras do edifício, onde esses mesmo capoeiristas cantarão o clássico Marinheiro só – “Eu sou da Bahia / marinheiro só / de São Salvador” – enquanto as baianas dançam nas suas saias de roda e, quando já nada há de institucional no momento, é mesmo festa popular regada com o bom vinho da Sociedade Agrícola de Pias e com os queijos da Queijaria Guilherme, de Serpa, disponíveis para o paladar português que tão bem o conhece e para o paladar baiano que perguntará “de que é o queijo?” – é de ovelha.
Não tardará até que os Camponeses de Pias se juntem em roda para cantar em improviso (é sempre assim e assim é que está bem), quando capoeiristas e baianas já não se surpreendem com as vozes, “limitam-se” a apreciá-las neste modo mais livres. Os restantes presentes na exposição e prova de vinhos, forma de unir a cultura cantada à cultura gastronómica (e uma não vive sem a outra, como sabemos), deixam-se viajar com o que ouvem, como o casal francês em viagem à volta do mundo que se afadiga a registar a boa surpresa que a chegada à Bahia lhes proporcionou.
“Estamos juntos”, escrevemos há poucos dias quando relatámos a início da participação do Grupo Coral e Etnográfico Camponeses de Pias no primeiro Simpósio Internacional Patrimónios Imateriais: do Alentejo à Bahia. E é mesmo verdade. Todos juntos: cantadores, baianas, candomblé, capoeiristas; portugueses e brasileiros; vinho e queijo alentejanos e acarajé de Salvador (os bolos criados pelas baianas, feitos de massa de feijão-frade, cebola e sal, que são património imaterial do estado da Bahia). Mas, através da exposição na Solar Ferrão, essa frase ganhou outra dimensão.
Aníbal Carrasco, o veterano entre o grupo dos Camponeses de Pias que vieram a Salvador, homem alto que, apesar disso, já ouvimos queixar-se, entre risos, de ficar demasiadas vezes encoberto na última fila da formação do grupo nas fotografias, aponta as imagens dispostas na parede da galeria Solar Ferrão. Naquelas fotografias de António Cunha, registadas em 1985, vemos o património humano da vila alentejana. Aníbal aponta o velho tanoeiro, artífice de um ofício que já não se pratica em Pias. Fala-nos de Amândio Ferrador ou de Romão Moita Mariano, antigo ferreiro, hoje octogenário, de uma “grande cultura revolucionária”, um “homem do teatro” e de múltiplos talentos. Tudo reunido: os cantadores e os baianos, os pienses de hoje e de ontem.
Na Solar Ferrão, seguindo Aníbal Carrasco, conhecemos as pessoas por trás dos rostos, vemos as gentes e vemos as pias escavadas no granito, vemos o céu amplo e a paisagem a perder de vista da planície. Tomé Pires, presidente da Câmara Municipal de Serpa, natural de Pias, confessaria no dia seguinte, fazendo eco do sentimento da comitiva, que o emocionou ver tão longe de casa aqueles rostos e paisagem que tão bem conhece. Na Solar Ferrão, vemos pienses a fotografar na Bahia as fotos da terra alentejana em que nasceram. Vemos mais.
Prestamos atenção às imagens de altares montados no interior das casas com folhas de faia como forro, vários tipos de ervas como moldura, balões coloridos como decoração e quadros de santos rodeando o altar, sempre dedicado a São João Baptista. Representam o Jordão de Pias: sincretismo pagão e religioso manifestado de forma exuberante, numa tradição cumprida por altura do São João e que subsiste na vila, de acordo com os registos conhecidos, há pelo menos um século – a origem, imagina-se, será bem anterior.
Dessa tradição falara na manhã de quarta-feira António Lebre, presidente do Grupo dos Camponeses de Pias, na última conferência, realizada no Espaço Cultural da Barroquinha, do Simpósio Internacional Patrimónios Imateriais: do Alentejo à Bahia, organizado pelo GP Sedes (Grupo de Pesquisa em Socioeconomia do Desenvolvimento Sustentável) e pelo Opará (Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação), organismos da Universidade da Bahia.
No mesmo dia à tarde, enquanto na Solar Ferrão se finalizava a montagem da exposição que ficará patente até Maio, Luís Figueira, do Instituto do Património Artístico Cultural da Bahia, entrara porta dentro e, parando o olhar nas fotos que registam os Jordões de Pias, comentara com Feliciano de Mira, o professor na Universidade da Bahia, nascido em Arraiolos, que coordenou o simpósio, que havia neles uma grande semelhança com os altares de candomblé baianos – continentes diferentes, o mesmo sincretismo católico-pagão (isto anda tudo ligado).
O cante abre portas
Horas depois, Feliciano de Mira dizia que o simpósio e o que envolveu provaram “que é possível pôr a imaginação e a criatividade ao serviço da ligação da investigação universitária com manifestações populares”. Destacou outro pormenor importante. A presença do grupo em Salvador resultará em relatórios de investigadores do Sedes e Opará vindos de Paulo Afonso para acompanhar o simpósio, o que se junta ao trabalho de um outro investigador que dedicará ao cante o seu doutoramento. Isto quando, “há três anos, ninguém sabia no Brasil que o cante existia”.
Na manhã do último dia do simpósio, sexta-feira, Tomé Pires declarava ao PÚBLICO que os objectivos a que a Câmara Municipal de Serpa se propusera como parceira da iniciativa foram cumpridos. “Divulgar o cante, motivando e valorizando os seus cantadores, em ligação com a produção agro-industrial do concelho”, presente através da supracitada Sociedade Agrícola de Pias e da Queijaria Guilherme, que em conjunto asseguram mais de uma centena de postos de trabalho no Alentejo. “O cante abre a porta para outras formas de desenvolvimento económico, provando que o investimento que se faz culturalmente permite esse retorno”. Refere ainda que a viagem contribuirá para a preservação do cante de uma forma menos óbvia. “Muitos destes homens nunca tinham saído do país. Há uma semana estavam no campo, estavam a trabalhar nas suas profissões. Levarão esta história consigo.” Uma história que viveram através do cante, cantando, e que contarão aos bisnetos. “À volta daquilo que, entre aspas, é uma simples viagem, reforçam a sua identidade. Isto também contribui para a salvaguarda do cante”, reforça o presidente da Câmara de Serpa.
Floriza Sena é vice-presidente do Opará e uma das organizadoras do simpósio. Enquanto o cante e a capoeira se revezavam no pátio da Solar Ferrão, declarava ao PÚBLICO que “o encontro cultural entre os três grupos [o simpósio reuniu os Camponeses de Pias ao grupo de Capoeira de Mestre Cyborg e ao candomblé das baianas do acarajé] foi o mais importante” destes dias de actividade. “Há uma identificação na defesa das suas tradições e na luta que representam.” Pela ruralidade que envolve a prática do cante, imagina que o grupo geraria uma empatia imediata com o povo do sertão brasileiro, caso tivesse avançado território dentro da costeira Salvador para a cidade de Paulo Afonso, no interior, onde Floriza desenvolve o seu trabalho, quer como professora quer junto das comunidades indígenas. Não sabemos o que diriam os camponeses do interior da Bahia das pequenas casas sobre o granito de Pias, da torre da igreja com ninho de cegonha, das fotografias dos saberes tradicionais, da paisagem natural e urbana que, da apanha da azeitona registada pela lente de José Manuel Rodrigues ou do impecável fato domingueiro que um dos cantadores, Luís Ferreira, veste no grupo e que, diz-nos ele e nós quase desconfiamos porque parece inacreditável, conta um longo século de existência. Porque vimos, porque estivemos em Salvador, sabemos outras coisas.
Na comitiva encontramos Paulo Ribeiro, que prepara o seu novo álbum a solo enquanto continua a divulgar os seus Tais Quais, onde se reúne a Vitorino, Jorge Palma, Celina da Piedade, João Gil ou Tim. Na tarde de sexta-feira, participou no encerramento do simpósio, assinalado com o lançamento de Colectânea, dos Camponeses de Pias, e com actuações do grupo ou com a performance Cante Acusmático de Pias, criada por Feliciano de Mira com o músico Vítor Rua e o realizador António Duarte. Paulo Ribeiro nasceu em Beja, não em Pias. Mas é Camponês de Pias honorário.
Quando registou o seu primeiro álbum, Aqui tão perto do Sol, editado em 2002, gravou com os Camponeses de Pias Cantiga do tempo novo. Gravou-o em Pias, na sede do grupo, entre o trabalho a sério musical e o trabalho igualmente sério da conversa e cantoria entre bons petiscos e generosos copos de vinho. Paulo Ribeiro é um deles. Essa facilidade na aproximação ao outro, esse gosto no convívio é marca determinante no cante, no geral, e no grupo dos Camponeses de Pias, em particular. Em Salvador da Bahia, acompanhámos, convivemos e vimos conviver os ex-bancários, serralheiros, pequenos empresários ou antigos funcionários públicos que os formam. Vimo-los cantar o cante no avião que os transportou até à Bahia, cantá-lo à porta de botecos ou à porta do hotel, cantá-lo em formação num centro cultural ou numa igreja repleta durante uma missa. Vimos baianos sorrirem e comentarem que, se ficasse por Salvador mais uma semana, Domingos Pires, o Cachimbinho, já seria amigo de toda a população do Pelourinho.
Para preservar e divulgar o cante sem ceder à tentação de uma comercialização desvirtuadora, é necessário assegurar “eventos com qualidade”, “ajudar os grupos” e assegurar que os cantadores são sempre ouvidos no processo e os seus “primeiros beneficiários”, defende Tomé Pires. “É preciso mostrar o cante como ele é”, resumiu. Em Salvador da Bahia, o cante mostrou-se como ele é. Enriqueceu e enriqueceu-se mais um pouco. Missão cumprida.
O PÚBLICO viajou a convite da Câmara Municipal de Serpa