Angola: uma sentença juridicamente repugnante

O caso é político e só será resolvido politicamente.

Só consegui ter acesso a uma gravação da leitura pelo juiz Januário Domingos José da sentença que, em Luanda, condenou a pesadas penas de prisão efectiva os jovens animadores do denominado “Curso de Activismo sobre as Ferramentas para destruição do Ditador e Evitar Nova Ditadura”.

Embora a gravação não registe na íntegra a leitura da sentença, há pelo menos duas coisas evidentes nesta decisão judicial: a primeira é que é juridicamente repugnante e a segunda é que é politicamente eficaz.

É repugnante em termos jurídicos porque consegue enquadrar o facto de os arguidos serem opositores radicais do regime e terem frequentado e ministrado um curso teórico de técnicas de combate político não violento no Instituto Luandense de Línguas e Informática, num crime de delito comum – a associação de malfeitores – que se destina a punir severamente a criminalidade mais grave, quando os criminosos, para além dos crimes que praticam ou vão praticar, se estruturam numa organização com uma identidade autónoma de cada um deles.

Foi no local desse curso que muitos dos arguidos foram detidos quando, nas palavras do tribunal, “estudavam estratégia para destituir e substituir o actual presidente da República, os membros do Governo e os titulares dos distintos órgãos de soberania do Estado por pessoas da confiança e conveniência deles”. Aí se realizavam as sessões abertas a todo o público interessado, sendo o local acessível a quem quisesse participar, tal como foi reconhecido pelo próprio tribunal na sentença. Uma associação de malfeitores, pelo menos, sui generis...

A acusadora pública, segundo li, apontou nas suas alegações finais alguns comportamentos dos arguidos que indiciavam também a existência de uma associação de malfeitores: iam descalços para a sala de audiências, vestiram-se de camisolas brancas, interferiram com os depoimentos dos declarantes e – rainha das provas – não responderam às perguntas que lhes foram colocadas. Para a representante do Ministério Público angolano, estava-se, indiscutivelmente, perante um grupo coordenado com uma conduta comprovadamente criminosa. Uma verdadeira e perigosa associação de malfeitores.

Esta nova acusação só suscitada no fim do julgamento e que o tribunal acolheu sem hesitações, resultou da total falta de prova com que se deparou o Ministério Público angolano quanto ao principal crime de que estavam acusados os arguidos: actos preparatórios de atentado contra a vida do Presidente da República. E face a esse ameaçador vazio condenatório que tornaria os arguidos em vitoriosas vítimas, a acusação, nas alegações finais, desencantou este crime de última hora para permitir as pesadas condenações que, politicamente, o tribunal estava obrigado a aplicar. E que, naturalmente, aplicou.

O enquadramento da actuação dos arguidos neste crime de associação de malfeitores só não é de gargalhada em termos jurídicos porque é perversa: sacrifica a liberdade de um grupo de jovens aos objectivos políticos do regime. Objetivos que parecem ser claros: punir os arguidos e intimidar todos os cidadãos angolanos que tenham a veleidade de querer opor-se abertamente à associação de benfeitores que tomou conta do poder político e económico em Angola. Depois destas pesadas condenações, o aviso está feito e ainda mais evidente se tornou a profunda ingenuidade destes jovens activistas angolanos.

Para além da repugnância jurídica e da eficácia política da sentença, também me parece evidente que o Tribunal Supremo não vai revogar a condenação pelo crime de associação de malfeitores. Não porque não saibam os juízes do Supremo o absurdo legal da mesma mas porque desautorizar o tribunal de 1.ª instância, num processo político e mediático como é este, seria para o regime angolano um inaceitável perder de face.

As possibilidades de ser feita justiça e reposto um mínimo de legalidade, dentro do aparelho judicial, num processo deste tipo são praticamente nulas. Caberá, pois, à Política resolver o assunto. Assim, admitindo que o regime angolano chegará à conclusão que não vale a pena ou não compensa manter muito tempo estas condenações, será pelo lado político que as mesmas poderão ser atenuadas e os jovens revus restituídos à liberdade.

Para isso será necessário que em termos internacionais, seja transmitida ao regime angolano uma mensagem clara de condenação por esta violação dos direitos humanos. As instituições europeias, para além do que têm feito, têm um importante papel a desempenhar após a decisão do Supremo. Do lado do parlamento português já se percebeu que os obscuros interesses ideológicos e económicos da coligação PCP/PSD/CDS não permitem acalentar grandes esperanças. Mas espera-se que o governo português não deixe de, pelos canais próprios, transmitir veementemente a sua preocupação com esta situação. Daqui a algum tempo, e caso o regime angolano não tenha medo, poderá, então, conceder uma amnistia ou decidir pela aplicação de uma qualquer outra válvula de escape do sistema. Quanto mais cedo, melhor, claro.

 

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