O sangue quente que se ouve no jazz português
Uma nova geração de músicos toma o jazz português nas mãos e reclama-o como palco de uma invenção sem limites. São tempos de afirmação destemida que nem a falta de apoios, a escassez de salas e a asfixia do mercado parece deter.
Em Maio, depois de se apresentar enquanto membro da Orquestra de Jazz de Matosinhos que durante seis noites consecutivas actuará ao lado do guitarrista Kurt Rosenwinkel no histórico clube nova-iorquino Blue Note, Susana Santos Silva aproveitará a estada em terras norte-americanas para uma série de outros concertos, alguns por ainda por confirmar, mas em que estará em palco com figuras de topo do jazz mundial como Kris Davis e Mat Maneri. Meses antes de pensar em embarcar, a trompetista muniu-se de coragem, fez contactos, desafiou músicos que admira e recebeu respostas positivas. Há meia-dúzia de anos, entenda-se, o arrojo não teria sequer retorno ou, na melhor das hipóteses, receberia uma simpática mensagem de recusa e encorajamento. Mas as coisas mudaram, o seu nome não é mais um mero aglomerado de letras com resultam numa sonoridade exótica para ouvidos anglófonos, o seu percurso faz já com que não seja barrada na porta de entrada.
Pouco antes, no início de Maio, apresentar-se-á no Showroom of Contemporary Sound em Zagreb, novamente convidada pelo histórico guitarrista Fred Frith a integrar uma das suas formações de concerto. Susana Santos Silva é um caso raro de afirmação internacional de uma instrumentista que, saída de uma cada vez maior multidão de músicos formados por escolas de jazz em Portugal, soube buscar oportunidades, construir pontes com músicos e formações internacionais e habitar com inquietude esse lugar de atenção que foi conquistando com a singularidade da sua linguagem musical. Quando sair de Portugal em Maio para tocar com Frith ou em duo com a soberba pianista eslovena Kaja Draksler, sabe que os meses seguintes a levarão aos Estados Unidos e à Escandinávia, e não deverá voltar a permanecer uma só semana em Portugal antes de Setembro.
“Às vezes sinto vontade de assentar mais”, confessa a trompetista ao Ípsilon. “Mas quando paro começo outra vez a sentir ansiedade de pôr o pé na estrada, de ir para onde os ventos me levam.” Basta atentar nesta frase para se perceber de onde vem o título Impermanence, sinónimo de música quase líquida, belissimamente deixada cair para zona fronteiriça entre estados de consciência e inconsciência que deu forma a um dos mais espantosos discos nacionais de 2015. Mas esse disco, gravado com um quinteto português (naturalizemos, por momentos, o contrabaixista sueco Torbjörn Zetterberg), construído no seio da associação portuense Porta Jazz e gravado ao vivo no Festival de Jazz de Guimarães, seria caso único de uma formação nacional no agitado ano editorial de Susana.
Três dessas edições levam o selo da editora portuguesa Clean Feed, onde Susana lançará este ano o álbum do seu “quinteto escandinavo”. “A Clean Feed tem sido muito importante no processo de o meu trabalho passar a ser conhecido fora daqui”, reconhece, “e portas se abrirem de repente.” Essa mesma ideia é confirmada pelo também trompetista Luís Vicente, tal como Susana ligado sobretudo ao circuito da música improvisada e parte de uma geração que conta ainda com os talentos de Gabriel Ferrandini, João Lobo ou Pedro Sousa. “Para um músico de jazz ou de música criativa é prestigiante ter um disco editado pela Clean Feed. É uma editora bastante respeitada e, para nós, que estamos neste cantinho, é uma forma de obter maior reconhecimento.”
Live at Zaal 100, acabado de lançar, coloca junta-o a John Dikeman, Wilbert de Joode e Onno Govaert, fruto de um encontro procurado pelo trompetista português numa deslocação à Holanda para participar no Festival Paradox e em que aproveitou os três dias anteriores ao concerto para conhecer e tocar com músicos locais. Daí resultou a emergência deste quarteto com o qual Vicente empreenderá uma digressão europeia em Abril, segundo essa lógica cada vez mais essencial à projecção de um músico para fora de portas e na luta pela conquista de um espaço. Portugal é um país de pequena dimensão, mas sobretudo de escassíssimos espaços onde músicos pertencentes a este quadrante do jazz/música improvisada se possam apresentar. O diagnóstico repete-se e é pouco animador: apesar da explosão de músicos formados no jazz, as poucas salas inibem, quase de imediato, o desenvolvimento e a construção de um trajecto. As absolutas e vitais excepções passam pelo Hot Clube de Portugal, pelo ciclo Jazz +351 da Culturgest (comissariado por Pedro Costa), pela Sociedade Musical União Paredense, pelo Salão Brazil (Coimbra), pela Porta Jazz e pela Sonoscopia (Porto) e, uma vez por ano, a Festa do Jazz no São Luiz. Os músicos com quem começou a tocar, recorda Vicente, estão todos fora de cena.
O gozo e o credo
À semelhança de Santos Silva, Luís Vicente procurou um espaço no estrangeiro, circulando amiúde por salas no centro da Europa e participando actualmente em dois projectos com um dos mais estimulantes músicos do jazz europeu, o francês Théo Ceccaldi (Deux Maisons e Chamber 4) – circulação e ligações que a vulgarização das companhias aéreas low cost e a facilidade com que actualmente se estabelecem contactos via internet vieram facilitar em grande escala. “A Europa é uma aldeia grande”, diz Vicente, notando a relativa facilidade com que conseguiu transpor fronteiras, depois de um percurso em que tocou em contextos muito diferentes, de bandas grunge e projectos drum’n’bass, a orquestras de world music e música improvisada, até descobrir a sua voz, em 2012, quando se aventurou pela primeira vez como líder.
Foi um caminho descoberto a pouco e pouco, depois de passar por o habitual período formativo em que “tinha de estudar música de que nem sempre gostava”. Essa ideia do gozo é especialmente preciosa para Desidério Lázaro e tenta-a manter viva nos seus alunos, depois de no seu início de carreira o músico de Tavira ter sucumbido a uma depressão por se ver a tocar em todos os projectos que podia – muitas vezes não gostando ostensivamente da música que fazia – e pela forma como “a sociedade ocidental está estratificada e assente no ponto de vista de quem tem de se estar sempre a subir”. Só quando começou a engrossar o seu horário de professor e a conseguir garantir uma sustentação financeira, o saxofonista se pôde oferecer o luxo de limitar as escolhas dos projectos em que se envolve àqueles em que acredita plenamente.
Com o fito de reunir uma comunidade com semelhantes interesses musicais e que se pudesse apoiar mutuamente, Desidério e o guitarrista João Firmino criaram, em 2012, a editora Sintoma Records, onde investiram a sério em gravações e estabelecimento de vários acordos, acreditando no acesso livre à música, disponibilizando-a no site e no bandcamp da editora, libertando-se assim do eventual interesse de terceiros para poderem documentar o seu percurso. O primeiro álbum da casa, Samsara, seria o segundo liderado por Desidério, onde se estrearia pouco depois o contrabaixista João Hasselberg com Whatever it Is You’re Seeking, Won’t Come in the Form You’re Expecting, álbum composto por temas inspirados em clássicos da literatura e que reunia uma selecção perfeita de muitos dos novos talentos a emergir no jazz nacional: Ricardo Toscano, Diogo Duque, Joana Espadinha ou Luís Figueiredo.
Na altura, perguntando-se se queria continuar o resto da vida a tocar standards e/ou a música de outros, Hasselberg respondeu dedicando-se às suas próprias composições, que exclui do universo do jazz (teriam de respeitar a manutenção de uma raiz de elementos de blues e a improvisação, no seu entender) por fundir elementos de folk, pop e clássica, uma abolição de fronteiras estilísticas nos antípodas daquilo que as escolas propõem: “Se tivesse de depender do Conservatório [em Amesterdão] ou das escolas para não afunilar questões musicais, não o teria feito. Passei quatro anos incríveis na Holanda a tocar todos os estilos de música com malta muito boa, mas a escola era só focada no jazz.”
Uma questão de circuitos
Além da Clean Feed e da Carimbo Porta Jazz, o braço editorial da associação dinamizada pelo saxofonista João Pedro Brandão sem a qual, acredita Susana Santos Silva, a cena jazzística do Porto estaria votada a um desalentado marasmo, outras editoras têm contribuído de forma essencial para o saudável momento de efervescência criativa do jazz (em sentido lato) português. No caso da Jazz ao Centro Clube (JACC) Records, sediada em Coimbra, tem muitas vezes funcionado como primeira impulsionadora da discografia de músicos como Desidério Lázaro, Luís Vicente, João Firmino, Elisa Rodrigues ou LUME, ao lado de consagrados como Carlos “Zíngaro”, Maria João e Rodrigo Amado. Por lá se estrearam também em 2015 os Slow Is Possible (SIP), banda formada por antigos alunos da Escola Superior de Música da Beira Interior, na Covilhã, cujo contacto inicial com a JACC visava simplesmente agendar um concerto no Salão Brazil.
Convidados a realizar uma residência no festival XisJazz e a gravar antes do tal concerto no Salão Brazil, os SIP, com um background na música erudita mas também nas bandas de rock, iniciavam uma aproximação ao circuito do jazz que os seus temas naturalmente sugeriam e rapidamente detectado por Rui Eduardo Paes, crítico e editor do site (e anterior revista) Jazz.pt, canal fundamental para o fortalecimento e valorização de uma cena jazzística portuguesa. Ligação que seria “inesperada” para o grupo no sentido em que não existe propriamente um circuito de jazz na Covilhã e porque a premissa da sua formação era apenas a de fazerem música de que gostassem, independente de filiações estilísticas. “Acho que a nossa música acaba por se inserir um bocadinho em todo o lado”, diz João Clemente, guitarrista do grupo, “até porque nunca andámos a pôr nenhuma vela a nenhuma capelinha nem levamos bandeira alguma do jazz ou de qualquer outra coisa.”
Se uma certa afinidade com a música de John Zorn, juntando uma orquestração e explosão típicas de um jazz familiarizado com o rock sem carga sinfónica à tendência para desenvolver ambientes musicais que pedem a companhia de imagens não escondem as razões pelas quais a presença na Jazz.pt e, mais recentemente, no Jazz +351 e na Festa do Jazz se entendem, a verdade é que os SIP estão longe de integrar um qualquer circuito estabelecido, pouco dispersos por outros projectos com visibilidade. Em Maio, estarão na Casa da Música – sala em que, lamenta Susana Santos Silva, não voltou a conseguir tocar depois de 2009, apesar de ter proposto vários dos seus projectos, entre os quais Impermanence, sem qualquer acolhimento.
Tempo de trabalho
Os sete elementos dos SIP vivem actualmente da música, dividindo-se entre aulas, pequenos projectos para bares ou hotéis, mas o ensino, hipótese para a maioria, está actualmente também saturado e, nalguns casos, como o de João Hasselberg em doses controladas, uma única tarde semanal no Hot Clube. “Gosto muito, mas a para a sanidade mental, falando por mim, era melhor trabalhar no McDonald’s do que dar tantas aulas quanto muita gente dá”, comenta. Em boa parte, acrescenta, porque a maioria dos alunos não dedica o tempo a perceber que entre aprender escalas e descobrir como dar-lhes uso há que investir muito tempo –“mas é muito tempo de trabalho, não é muito tempo a ver televisão”, diz.
A subsistência para Hasselberg, como acontece com muitos, assenta numa agenda que depende de temporadas com artistas num campeonato mais pop, como Luísa Sobral, uma subsistência mais complicada quando os músicos tentam manter-se fiéis à música em que acreditam e insistem em se dedicar à sua razão de ser como músicos, mesmo que a renda de casa teime em ser paga com atraso. Apesar de uma certa euforia, justificada, em torno da abundante criatividade e qualidade que alastra por uma nova geração a pegar no jazz e música improvisada em Portugal, como diz Luís Vicente “o factor tradição pesa e nós não temos tradição, isto é uma coisa de 30 ou mais anos e somos uma percentagem muito pequena da população”. O que se traduz na ideia de que, sem um maior apoio institucional (frequente noutros países europeus, algo que cria ainda um desequilíbrio de forças no espaço internacional que os portugueses tentam conquistar), a precariedade e o mercado crescentemente asfixiado e competitivo, com pouquíssimos escapes, não é nenhum mar de rosas. “Não vejo o futuro disto com muito bons olhos”, diz Susana Santos Silva. “Se calhar exagero na palavra, mas é um bocado dramático, não sei o que vai toda esta gente fazer.”
Dificilmente haverá lugar para todos e, cada vez mais, a exploração de um circuito internacional parece determinante, não apenas como factor de enriquecimento artístico mas de mera sobrevivência para quem queira resistir a assumir uma outra actividade em full time ou part time que pague as contas. Talvez esta notável geração de músicos de enorme qualidade e potencial a germinar em Portugal tenha de pensar em Portugal como um palco ocasional.