Primeiro-ministro islandês pode ser a primeira vítima política dos Panama Papers
Oposição da Islândia exige explicações ao primeiro-ministro pela empresa num paraíso fiscal que chegou a estar no seu nome.
É provável que o jovem primeiro-ministro islandês se torne na primeira baixa política do escândalo Panama Papers, um pacote brutal de documentos sobre a forma como políticos, empresários, futebolistas… utilizaram paraísos fiscais para fugir ao fisco. Sigmundur Davíð Gunnlaugsson é acusado de ter omitido que foi proprietário, juntamente com a sua mulher, de uma empresa offshore. Aumentam as pressões para eleições antecipadas.
Esta segunda-feira houve uma manifestação convocada através do Facebook para exigir a queda do Governo. Milja Magnusdottir, assistente numa creche de uma localidade de 850 habitantes, preparava-se para partilhar o seu desagrado com os que se juntaram à frente do Parlamento: “Já há muito tempo que acho que há um problema com este Governo, mas quando vi o escândalo eclodir disse para mim própria que tinha chegado a altura de agir”, contou antecipadamente ao Le Monde, que divulgou imagens do protesto publicadas no Twitter. Uma petição no mesmo sentido contava ao início da tarde com 23 mil assinaturas. E o Parlamento anunciou que iria votar uma moção de censura, numa data ainda por definir (nada garante que será aprovada, já que os dois partidos que compõem o Executivo contam com 38 deputados, contra 25 da oposição).
Numa entrevista ao Canal 2, privado, o primeiro-ministro garantiu que não irá demitir-se, uma vez que a coligação “tem tido bons resultados. Tem havido um forte progresso e é importante que o Governo acabe a sua tarefa", cita a Reuters. "Vou ouvir a posição da população nas próximas eleições", marcadas para 2017.
Gunnlaugsson afirmou que a única coisa pela qual deve pedir desculpa é a forma como abandonou intempestivamente uma entrevista onde membros do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (CIJI, que divulgou o escândalo) o interrogavam sobre a empresa offshore da sua mulher. “Tornam suspeito uma coisa que não é”, acusou.
Não está provado que o primeiro-ministro seja culpado de evasão fiscal, mas politicamente a sua posição tornou-se insustentável, refere a AFP. O escândalo trazido pelos Panama Papers faz os islandeses recuar ao “sismo” de há oito anos, quando os três principais bancos islandeses ruíram.
“A coisa mais natural e certa seria ele demitir-se como primeiro-ministro”, comentou à Reuters Birgitta Jonsdottir, líder do Partido dos Piratas, uma das maiores forças da oposição. “Há uma exigência grande e forte por parte da sociedade e ele perdeu toda a confiança e confiabilidade”.
Os críticos apontam para um claro conflito de interesses, já que está em curso uma negociação entre o Governo e os bancos sobre o levantamento do controlo de capitais, o que permitiria às instituições bancárias fazer sair dinheiro da Islândia a troco de um pagamento ao Estado. Ora a empresa detida pela mulher do primeiro-ministro, a Wintris Inc., é um dos credores do Arion Bank (Kaupthing Bank, antes de ser nacionalizado) e do Landsbanki (também nacionalizado depois da crise de 2008). Um porta-voz do gabinete de Gunnlaugsson adiantou que a Wintris reivindica 3,3 milhões de dólares.
Investir a herança
Segundo a investigação conduzida pelo CIJI, que teve acesso aos mais de 11 milhões de documentos da firma de advogados Mossack Fonseca, com sede no Panamá, Gunnlaugsson chegou a ser proprietário de metade da Wintris, com sede em Tortola, nas Ilhas Virgens Britânicas. Criada em 2007, a empresa era detida em partes iguais pelo actual primeiro-ministro e pela sua mulher, Anna Sigurlaug Pálsdóttir.
A Wintris terá sido comprada através da sucursal luxemburguesa do Landsbanki. O casal usava-a para investir uma herança de vários milhões de dólares, justificou no Facebook Anna Sigurlaug Pálsdóttir (filha de um negociante milionário da Islândia, ligado ao consórcio da Toyota no país), depois da entrevista polémica do marido.
Dois anos depois, Gunnlaugsson vendeu a sua metade à mulher por um dólar. O gabinete do primeiro-ministro adiantou que a sua propriedade tinha sido um erro e que “sempre tinha sido claro para ambos que era a mulher do primeiro-ministro quem possuía os bens”, cita o Guardian, um dos jornais associados ao CIJI.
A “venda” foi concretizada a 31 de Dezembro de 2009 – sete meses depois de o líder do Partido do Progresso ser eleito deputado. Mas Gunnlaugsson nunca revelou a sua participação na Wintris no registo de interesses do Parlamento, adianta o jornal britânico, que teve acesso aos documentos. Quando o diário o interrogou se alguma vez tivera uma empresa offshore, a sua resposta foi: “Eu próprio? Não. Bem, as empresas islandesas com quem trabalhei tinham ligações a empresas offshore… Mas posso confirmar que nunca escondi nenhum dos meus bens”.
Sigmundur Davíð Gunnlaugsson, antigo jornalista, com 41 anos, destacou-se à conta de um duro discurso contra a crise que varreu o sistema financeiro e abalou a confiança dos islandeses nas instituições. Prometeu que seriam “os abutres” (os credores dos bancos falidos) a pagar pelo colapso, e que esse dinheiro seria usado para aliviar as hipotecas dos islandeses.
Em 2013, acabaria por chegar à liderança do Governo, depois de uma eleição em que ficou com tantos deputados (embora menos votos) como o Partido da Independência, ambos de centro-direita, e ambos responsabilizados pelo desastre económico. Nesta coligação, o líder rival, Bjarni Benediktsson, acabou a ocupar a pasta das Finanças. Também ele aparece referido nos Panama Papers, como dono de um terço da Falson & Co, uma empresa com sede nas Seychelles.
Queda e recuperação
Na altura em que o sistema financeiro islandês implodiu, os principais bancos detinham activos equivalentes a cerca de 923% do PIB do país – que com a crise decresceu 10%. A recessão levou a um amento brutal do desemprego (nove vezes superior aos valores pré-crise), a uma forte desvalorização da coroa islandesa (80% face ao euro) e à intervenção do Fundo Monetário Internacional.
Mas em 2011, o país já estava em crescimento. O próprio FMI concluiu que a recuperação ficou a dever-se ao compromisso da Islândia para com o seu programa de ajustamento; à decisão de poupar os contribuintes e impor perdas aos credores dos bancos (que entraram em falência depois de as suas dívidas terem atingido 10 vezes a dimensão da economia); e à opção de salvaguardar um Estado social que protege os desempregados da pobreza.
A Islândia foi o único país do mundo a mandar gestores financeiros de topo para a prisão na sequência da crise. Desde 2010, houve 26 condenações de banqueiros e financeiros. Também foi o único a colocar políticos no banco dos réus – o antigo primeiro-ministro Geir Haarde acabou por ser absolvido de três acusações de negligência mas considerado culpado por não ter discutido a crise de imediato e informado os seus ministros sobre o que estava a acontecer (não teve, no entanto, de cumprir pena).
O processo judicial não foi suficiente para fazer os islandeses recuperarem a confiança no sistema político. Um sinal disso é a crescente popularidade do Partido dos Piratas (apoiante da democracia directa), que as sondagens indicam que poderá eleger 19 dos 63 assentos parlamentares nas legislativas do próximo ano.