Comecemos pelas obras mais inesperadas nesta exposição: uma série de panos bordados a branco sobre fundo preto, pendurados do tecto de uma das salas da Fundação Carmona e Costa. Diz-nos a ficha técnica que se trata de bordado a fio de seda sobre tecido de seda, o que de imediato nos remete para longínquas artes domésticas hoje talvez caídas em mais desuso que uso, que Ilda David’ aqui cita. E, contudo, o facto de estes panos estarem pendurados do tecto leva a que de imediato se possa comparar o avesso com o direito, sabendo qualquer mulher que a perfeição do trabalho se deve apreciar pelo avesso e não pelo engano da fachada, da montra, da maquilhagem visível. Contudo, neste caso preciso, os bordados de Ilda David’, cujo avesso em tudo nega simetricamente o direito, acabam por destruir de imediato qualquer associação que pudessemos ter feito anteriormente com antigas prendas femininas.
E é bom que assim seja. Porque o que fica, será a evidência do trabalho do tempo que estes desenhos demoraram a fazer. As linhas quebradas recordam o traço característico em outros desenhos e pinturas de Ilda David’, um desenho que também aqui se fez demoradamente, de modo que o que releva é afinal o tempo, essa dimensão que em geral está ausente da pintura, da escultura e do desenho, disciplinas que privilegiam sempre uma imagem final, definitiva, que se dá a ver. Este, o desenho de Ilda David’, é um desenho do tempo, exactamente como na sua pintura a intervenção do tempo – através de métodos estudados para interromper a secagem ou provocar acidentes durante a construção de determinada obra – é fundamental.
Um dos núcleos presentes na exposição, uma série de 12 desenhos não datados, feitos a esferográfica, tinta de escrever e guache sobre papel, mostram frases escritas ao lado de uma personagem que talvez (mas não há certezas) seja Van Gogh. Há de resto homenagem a dois outros artistas pelo menos nestas obras, Monet et Beuys, o que nos leva a tentar esta interpretação. As frases remetem às vezes para esse tempo de que falávamos: “do desenho, e como ele se detinha na contemplação de cada anjo”, “desenhou com lentidão”, “frases breves e passos breves”, ou seja, convocam esta dimensão quase sempre ignorada que também é aquela de um pensamento visual que apenas necessita deste balbuciar para se concretizar.
E, contudo, não se pense que a obra de Ilda David’ é muda, porque ela vive também das palavras e dos livros que a artista traz consigo para o trabalho. No livro que acompanha esta exposição reproduzem-se textos e poemas de autores que vão desde o Cântico dos Cânticos, S. João da Cruz, Dante, Lawrence, Benjamin, Tagore e outros, e Nuno Faria, o curador da exposição, fala dos encontros entre palavras e imagens que se passam fora do tempo, fora da história, no exterior de uma qualquer narração com princípio, meio e fim, e avança com o deleuziano rizoma para comentar um trabalho que se prefere dar a ver na profundidade dos tempos da sua construção do que na linearidade que avança para uma conclusão que, afinal, nunca existe.
Os desenhos de Ilda David’ parecem sempre dever qualquer coisa a esse mundo da imaginação que as manchas de tinta aguada e estalada fazem surgir no espírito de quem vê. Figurinhas, colecções de resíduos arqueológicos, silhuetas de pré-históricas esculturas, pedras, árvores e montes sugerem uma inventariação do visível que apenas é possível numa espécie de grau zero da representação. Há mesmo um pequenissimo desenho que, através da água que, mais que o lápis, parece ser o medium de eleição da artista, faz aparecer a forma de um pequeno bule. Interrogada, Ilda David’ explica que se trata de uma das peças mais antigas que aqui estão expostas. E que sim, é o bule do chá que Alice toma com um coelho e um chapeleiro louco, porque as referências que Ilda David’ traz para a sua obra não são exclusivamente eruditas. Porque nada do que aqui vemos tem a ver com a precisão científica do desenho documental. Bem pelo contrário, tudo vive naquela fronteira mutável e inconstante que existe entre representação e imaginação.