Terá Shakespeare perdido a cabeça em Stratford-Upon-Avon?
Uma nova investigação defende que o crânio de Shakespeare terá sido roubado em 1794 da sua sepultura. Um documentário a exibir este sábado no Channel 4 contará toda a história.
A ser verdade, pode ter originado o gesto teatral supremo: recriar a cena em que Hamlet, segurando na mão a caveira de Yorick, reflecte sobre a grandiosa efemeridade da vida quando colocada perante a certeza da morte, mas agora olhos nas órbitas do próprio Shakespeare. Não sabemos se foi isso que aconteceu no final do século XVIII, mas, neste 2016 em que se celebram 400 anos exactos sobre a morte do mestre inglês da dramaturgia, podemos especular. Permite-nos fazê-lo a investigação que será apresentada este sábado, às 20h, num documentário da Channel 4, Secret History: Shakespeare’s Tomb, onde se defende que a tumba de Shakespeare foi violada e o seu crânio levado para longe da Igreja da Sagrada Trindade, em Stratford-Upon-Avon, em que foi sepultado.
A história não é nova. Em 1879 a revista The Argosy publicou um artigo afirmando que o crânio do dramaturgo fora roubado em 1794 por um médico da localidade, Frank Chambers, isto numa altura em que a frenologia ou a craniometria ganhavam espaço no universo científico. Hoje desacreditadas como pseudociências, eram vistas então como forma de, através do estudo da forma ou do peso do crânio, por exemplo, determinar as características que definiam a inteligência e o génio. Naquele contexto, o crânio do genial Shakespeare só poderia ser alvo de especial cobiça.
O artigo da The Argosy nunca foi levado a sério, mas Kevin Colls, do Centro de Arqueologia da Universidade do Strattfordshire e líder da equipa responsável pela investigação acompanhada em Secret History: Shakespeare’s Tomb, diz agora que “se o relato do assalto à sepultura é uma história inventada, então é inacreditavelmente precisa em todos os detalhes”. Segundo contou ao New York Times, bate certo a profundidade a que os profanadores escavaram, bem como o percurso seguido pelos ajudantes de Frank Chambers antes e depois da profanação, reconstituído através da investigação dos registos das pousadas em que terão pernoitado.
A motivação de Chambers residiria, segundo Colls, numa aposta feita pelo conde Horace Walpole, político, historiador de arte e autor do romance gótico The Castle of Otranto. Se alguém lhe trouxesse o crânio de William Shakespeare, ele pagar-lhe-ia 300 libras – é aqui que podemos começar a imaginar o conde Walpole num salão da sua mansão em estilo gótico erguida, naturalmente, em Strawberry Hill, Twickenham, Sudoeste de Londres, a recriar a famosa cena de Hamlet. Podemos imaginá-lo, mas nem todos nos levarão a sério.
No supracitado New York Times, Alison Findlay, da British Shakespeare Association, contrapõe as certezas de Kevin Colls à sua: o artigo da The Argosy é “conscientemente uma paródia”, sentencia. Porém, Findlay não põe em causa os resultados do georradar. Georradar? Sim, não é certo que tenha sido o médico Chambers a levar consigo o crânio de Shakespeare, mas os dados científicos parecem indicar que o Shakespeare sepultado perdeu de facto a cabeça.
Viver com o mistério
Em 2014, após vencer resistências iniciais dos responsáveis pela Igreja da Sagrada Trindade, Kevin Colls e a geofísica Erica Utsi começaram a investigar o espaço onde William Shakespeare foi sepultado ao lado da sua mulher, Anne Hathaway. O cenário revelado pelas ondas de radar provou serem falsas velhas histórias: a de que o dramaturgo teria sido enterrado na posição vertical, a que defendia que o corpo se encontrava sepultado a uma profundidade de cinco metros ou que repousaria numa tumba familiar. Tudo isso foi desmentido pelo georradar. O corpo encontra-se cerca de um metro abaixo do solo, sem caixão, envolvido numa mortalha. E, aparentemente, sem crânio. “Deparámo-nos com esta coisa bizarra, estranha, na zona da cabeça”, declarou Kevin Colls ao Guardian. “Era óbvio, em toda a informação que estávamos a recolher, que havia qualquer coisa de diferente naquele local. Concluímos que são sinais de perturbação, de material que foi escavado e voltado a colocar no interior."
O mapa visual produzido pelas ondas radar indica que a parte inferior do corpo se apresenta em estado semelhante aos dos restantes enterrados na igreja. A cabeça, essa, acreditam os investigadores, já não estará lá. Essa convicção levou-os a deslocarem-se à Igreja de São Leonardo, na localidade de Beoley, Worcestershire, a 24 quilómetros de distância. Segundo ainda outra lenda da mitologia shakespeariana, era ali que o crânio do bardo estaria enterrado. Não é: o crânio pertencia a uma mulher septuagenária e a equipa de Kevin Colls fez mesmo uma reconstituição do rosto da idosa incógnita para o provar.
As celebrações dos 400 anos de Shakespeare continuarão por toda a Inglaterra ao longo do ano, ou não fosse o inglês autor de Otelo o mais célebre dramaturgo mundiall, verdadeiro símbolo da língua e da identidade anglo-saxónica – e a dúvida manter-se-á. Onde estará o crânio? O reverendo Patrick Taylor, pastor da Igreja de Strattford-Upon-Avon onde Shakespeare nasceu em 1564, e centro de toda a investigação, não tem certezas de nada. Até pode estar onde se encontrava no dia de Abril de 1616 em que o mestre foi enterrado, ao contrário do que aponta a investigação de Kevin Colls. “É nossa intenção continuar a respeitar a santidade da sua sepultura, de acordo com os desejos de Shakespeare, e não permitir que seja perturbado”, declarou ao Guardian. “Teremos de continuar a viver com o mistério de não conhecermos na totalidade o que se encontra sob a pedra."
A sepultura não se encontra identificada com o nome de Shakespeare. Nela vemos apenas uma inscrição. “Bom amigo, por amor a Jesus abstém-te de escavar o pó aqui encerrado. Abençoado seja o homem que poupe estas pedras e amaldiçoado aquele que remova os meus ossos." Quando for resolvido sem margem para qualquer dúvida o mistério do crânio desaparecido, um novo surgirá no seu lugar: haverá, à semelhança da de Tutankhamon, uma maldição de Shakespeare? E, se sim, que fim terão tido os profanadores?