É pouco dizer que Cruyff foi um dos melhores
Morreu aos 68 anos o antigo treinador e jogador holandês, provavelmente a figura mais influente no futebol das últimas décadas
Johan Cruyff era um rapaz que vivia ao lado de um estádio de futebol. Ao lado do De Meer, casa do Ajax, que ficava a dois minutos a pé da sua casa e da mercearia dos pais. Aos dez anos, o rapaz que jogava futebol na rua foi fazer desporto para o clube, um desporto com bola, mas não daqueles que se joga com os pés. Cruyff foi primeiro um jogador de basebol, só depois se desviou para o futebol, onde deixou a sua marca e se tornou um dos melhores de sempre. Moderno, provocador, jogador sobredotado, treinador vanguardista, fumador precoce, com medo de alturas e de espaços apertados. Muito do que o futebol é hoje deve-se a ele, um holandês de nascimento e catalão por adopção que parecia demasiado magro e frágil para jogar futebol e que acabou por ser um dos seus melhores intérpretes e ideólogos. Morreu nesta quinta-feira, em Barcelona, aos 68 anos, vítima de cancro do pulmão.
Um ataque cardíaco, a proximidade da morte e um duplo bypass ao coração fizeram-no abandonar o vício em 1991 e a trocar o tabaco por chupa-chupas (conta a lenda que fumava dois cigarros nos intervalos dos jogos). Vinte e cinco anos depois, em Fevereiro passado, dizia que estava a ganhar ao cancro por 2-0 ao intervalo. “O jogo ainda não acabou, mas tenho a certeza que vou ganhar”, dizia o holandês há poucas semanas sobre a doença que lhe diagnosticaram em Outubro.
Jorge Valdano coloca-o na “mesa histórica dos quatro” ao lado de Alfredo di Stéfano, Pelé e Maradona, mas com uma diferença, na opinião do treinador-filósofo argentino: Cruyff foi sempre um ganhador, ao contrário dos seus três companheiros da estratosfera do futebol. “Não houve um Cruyff que viveu depois da glória. Instalou-se na glória e não houve nenhum jogador que tenha tido tanto êxito sendo jogador e treinador”, dizia Valdano ao El País. Prova do que diz Valdano são as dezenas de títulos que conquistou como jogador e treinador (em que teve uma carreira curta, de apenas 11 anos), pelo Ajax, pelo Barcelona e até pelo Feyenoord. Também apaixonou o mundo com a camisola laranja da Holanda, mas aqui faltou-lhe a glória.
Crónica de Rui Miguel Tovar: Cruyff, o insubstituível
Hendrik Johannes Cruyff nasceu em Amesterdão a 25 de Abril de 1947, filho de Hermanus e Petronella. Morava num bairro da periferia da capital holandesa e gostava de jogar à bola na rua, mas a sua vida mudou radicalmente aos 12 anos, com a morte do pai, de ataque cardíaco. A mãe não tinha capacidade para manter a mercearia e foi trabalhar na limpeza dos balneários do estádio do Ajax, onde o pequeno Johan se dividia entre o basebol e o futebol. Aos 15 anos, escolheu definitivamente o futebol e já dava uns toques com a equipa principal. Dois anos depois, o inglês que treinava o Ajax, Vic Buckingham, reparou nele e colocou-o a jogar frente ao Groningen, a 15 de Novembro de 1964. O Ajax perdeu por 3-1, mas foi Cruyff, com 17 anos, que marcou o único golo.
Nessa temporada, o Ajax iria ficar em 13.º no campeonato holandês, mas a época seguinte seria o início de uma nova era no futebol mundial, a era de Cruyff, do Ajax e da Holanda. O “Totaalvoetbal” (“futebol total”) teve os seus princípios em outras latitudes, mas foi refinado por Rinus Michels e implementado com sucesso no Ajax e na selecção holandesa nos anos 1960 e 1970, tendo Cruyff como principal intérprete, um sistema dinâmico de criação, ocupação e gestão de espaço. Todos estavam envolvidos na mesma missão ao mesmo tempo, defender e atacar, do guarda-redes ao avançado. Cruyff aparecia na equipa como avançado, mas, claro, fazia muito mais do que apenas marcar golos.
O domínio do Ajax foi impressionante durante o primeiro período de Cruyff, com seis títulos de campeão holandês em dez temporadas, mais três vitórias consecutivas na Taça dos Campeões Europeus entre 1971 e 1973. A de 1972 foi particularmente simbólica, numa final frente ao Inter de Milão, expoente de uma filosofia de futebol diferente. Com a vitória do Ajax, treinado pelo romeno Stefan Kovacs, declarou-se a morte do “catenaccio” e o triunfo do futebol total. Cruyff marcou os dois golos.
Depois do terceiro título europeu, Cruyff mudou-se da Amsterdão para a Catalaunha, que seria a sua segunda pátria. Até estava prometido ao Real Madrid pelo Ajax, mas o desejo de voltar a jogar com Rinus Michels era mais forte. E ele não era do tipo de aceitar ordens. “Como sempre fui do género ‘não faço o que os outros me dizem’ e tinha as minhas relações em Barcelona, disse a mim próprio: ‘Não vou para Madrid, vou para Barcelona’. Foi uma enorme confusão, os papéis, a transferência, a qualificação da Holanda para o Mundial. O dia em que me estreei foi uma libertação.”
Não seria como jogador que Cruyff deixaria a sua maior marca no Barcelona, mas, com ele, o Barcelona conseguiu ganhar o seu primeiro título em 14 temporadas de domínio quase absoluto das equipas de Madrid. Foi a única vez que Cruyff foi campeão com os “culé” enquanto jogador e só voltaria a ganhar um título na sua última época, a Taça do Rei em 1978. Quando deixou a Catalunha pela primeira vez, Cruyff foi, como tantas outras “estrelas” da altura, atraído por uma loucura americana chamada North-American Soccer League, futebol de exigência baixa e ordenado alto.
No meio desta aventura americana, uma bizarra (e lucrativa) passagem pelo segundo escalão do futebol espanhol, quatro meses turbulentos ao serviço do Levante. Após este episódio, Cruyff ainda recuperou alguma relevância futebolística no seu regresso ao futebol holandês, com três temporadas produtivas, duas no Ajax e uma (a última) no Feyenoord. Foi campeão em todas elas. Números finais da carreira de Cruyff-jogador: 709 jogos, 402 golos; nove vezes campeão da Holanda, uma vez campeão de Espanha; cinco Taças da Holanda e uma Taça de Espanha; três vezes vencedor da Taça dos Campeões Europeus, uma vez da Supertaça Europeia e da Taça Intercontinental.
Faltou a Cruyff um título pela selecção holandesa, que, com ele ficou conhecida como a “Laranja Mecânica”. Com Michels no comando e muitos dos seus colegas do Ajax, Cruyff levou a Holanda até à final em 1974, para defrontar a Alemanha de Franz Beckenbauer. O primeiro minuto desse jogo em Munique foi a síntese perfeita do “futebol total”. Cruyff, com o n.º 14 nas costas, dá o toque de saída. A bola circula pela defesa vai até perto da área alemã e volta para trás, onde estava Cruyff para receber, dentro do círculo central. Daqui, o holandês arranca para a área germânica é travado em falta por Uli Hoeness , na conversão do penálti, Neeskens faz o 1-0, uma vantagem que Breitner e Muller se encarregariam de anular ainda na primeira parte.
Quatro anos depois, Cruyff nem sequer foi à Argentina, onde a selecção anfitriã derrotou a Holanda na final. Na altura pensou-se que poderia ser uma forma de Cruyff protestar contra a ditadura de Jorge Videla, mas, muito anos depois, Cruyff revelou a verdadeira razão da ausência. Estava preocupado com a sua própria segurança e da sua família. “Tive alguns problemas aqui [em Barcelona] no final da minha carreira. [No final de 1977], fui amarrado e tive uma pistola apontada à cabeça e fizeram o mesmo à minha mulher, em frente aos nossos filhos. E isto mudou o meu ponto de vista sobre muitas coisas. Depois disto, não fazia sentido ir ao Mundial”, contou numa entrevista à Rádio Catalunha.
O que foi como jogador Cruyff transportou para a sua vida de treinador. A mesma filosofia e o mesmo sucesso. A aprendizagem no Ajax rendeu duas Taças da Holanda e uma Taça das Taças em três épocas, seguindo-se uma mudança inevitável para o Barcelona, que atravessava um novo período longo sem títulos. Neste regresso à Catalunha em 1988, Cruyff construiu uma equipa que ficaria conhecida como o “Dream Team”, com jogadores como Koeman, Romário, Bakero, Salinas, Zubizarreta, Laudrup e Guardiola, entre outros. E o Barça voltou a ganhar. Quatro títulos consecutivos entre 1991 e 1994 e, entre outros troféus, a primeira Taça dos Campeões europeus para o gigante catalão em 1992 frente à Sampdória, graças a um grande pontapé de outro holandês, Ronald Koeman.
Como todos os treinadores, Cruyff, com toda a sua aura, também é refém dos resultados e, depois de dois anos sem qualquer título, foi despedido pelo presidente do Barcelona em 1996. Cruyff tinha 48 anos quando deixou de ser treinador, mas continuou a viver na Catalunha (chegou a ser seleccionador de uma equipa da região) e dedicou-se a outras coisas. Mas a sua influência não desapareceu. La Masia, a famosa academia do Barça, desenvolveu-se de acordo com os princípios da academia do Ajax que Cruyff levou para a Catalunha e tornou-se na maior fábrica de jogadores do planeta.
Mas o seu maior legado é a filosofia. Cruyff era/é um deus do futebol e tem apóstolos em todo o mundo. Guardiola é o seu maior seguidor e herdeiro, mas a sua influência sente-se também em homens como Luis Enrique, que está a conduzir o Barça em mais uma época dourada, ou até no português Jorge Jesus, que estagiou com ele no início da carreira. É por causa de Cruyff que Guardiola nunca quis assumir a 100% a paternidade daquela que muitos consideram ser a melhor equipa de sempre, o Barcelona que juntou Messi, Xavi, Iniesta e tantos outros e que também rendeu frutos à selecção espanhola. Palavra a Guardiola: “Durante a minha carreira, apenas tentei aplicar o que aprendi com Cruyff. Ele foi a maior influência no futebol, mais do que qualquer outro, como jogador e como treinador. Cruyff construiu a catedral, o nosso trabalho é cuidar dela.”