E se parássemos para conversar com um refugiado sírio?

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Dois holandeses chegam a uma ilha grega e reúnem um sírio e um alemão à conversa. Não é o início de uma anedota. Na verdade, não podia estar mais distante disso. É o ponto de partida de um dos encontros do projecto The Island of All Together, criado por um casal de holandeses, na ilha de Lesbos.

Tilmann é alemão e consultor financeiro em Estugarda. Ghanem é sírio e era um rei quando vivia em Damasco. A descrição deixa o alemão, de férias com a família em Lesbos, surpreendido. “Um rei?”, pergunta hesitante enquanto olha para o homem de 65 anos com metade do seu tamanho que está sentado ao seu lado. “Sim, trabalhava como carpinteiro, tinha a minha própria carpintaria e toda a família à minha volta. Tinha tudo!” Foi a guerra que pôs fim ao seu reinado.

Agora está a caminho da Alemanha, onde se vai encontrar com um filho. “Espero que nos encontremos lá”, diz a Tilmann. “Sim, se vier a Estugarda ligue-me”, responde o alemão. Riem juntos.

São pequenos diálogos como este que o casal Marieke van der Kelden, fotógrafa, e Philip Brink, director de arte, ambos holandeses, registaram durante as duas semanas que passaram na ilha grega – que, desde há vários meses, tem visto chegar em pequenos botes centenas de millhares de refugiados e migrantes rumo à Europa.

No início de 2015 viajaram para o Líbano onde fotografaram alguns dos cerca de milhão e meio de sírios que ali procuraram segurança. Conversaram com eles, conheceram-nos, fizeram-lhes perguntas. De regresso à Holanda, descobriram que um dos sírios com quem tinham falado chegara à Grécia através do mar e seguiram o percurso dele através da Europa. Para eles, a crise dos refugiados passou a ter uma cara. “Isso tornou tudo muito mais pessoal”, revelam em entrevista por e-mail ao PÚBLICO.

Decidiram fazer um projecto sobre as pessoas que todos os dias vemos chegar ao território europeu em pequenos barcos e Lesbos, que é simultaneamente um popular destino turístico, foi o local escolhido. “Tivemos a ideia de fazer um documentário em que turistas e refugiados se conheciam. Queríamos que as pessoas se conhecessem a sério. Pessoalmente”, afirmam. Nasceu o projecto The Island of All Together, um título que remete para aquela ilha onde todos chegam, turistas ou refugiados, de férias ou em fuga. O projecto acabou por desdobrar-se num portefólio fotográfico e num documentário com cerca de 22 minutos.

Seet (54), professora em Veghel, Países Baixos, com Mayada (43), proprietária de um salão de beleza em Al Hasakah, Síria Marieke van der
Mohamed (51), padeiro de Damasco, Síria, com Otis (19), aluno na escola náutica de Roterdão, Holanda Marieke van der
Selma (24), estudante de medicina em Hannover, Alemanha, Husam (26), advogado de Damasco, Síria Marieke van der
Sohila (20), estudante universitária em Damasco, Síria, Petra (45), terapeuta em Ridderkerk, Países Baixos Marieke van der
Alaa (11), aluno na escola primária em Damasco, Síria, Finn (9), aluno na escola primária em Jersey, Reino Unido Marieke van der
Ghanem (65), carpinteiro em Damasco, Síria, Tilmann (50), consultor financeiro em Estugarda, Alemanha Marieke van der
Marcel (56), músico em Veghel, Países Baixos, e Hasan (33),professor em Deraa, Síria Marieke van der
Mohamed (50), gerente de um restaurante em Aleppo, Síria, Jan (52), d Weert, Países Baixos Marieke van der
Wissam (6), aluno na escola primária em Damasco, Síria, Archie (5), aluno na escola primária em Jersey, Reino Unido Marieke van der
Safi (30), designer de moda em Aleppo, Síria, e Kea (24), estudante de psicologia de Aurich, Alemanha Marieke van der
Joana (7), aluno na escola primária em Aleppo, Síria, Monique (54), professora primária em Weert, Países Baixos Marieke van der
Annemarijn (14), estudante de Weert, Países Baixos, e Brivan (24), arqueóloga de Aleppo, Síria Marieke van der
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Seet (54), professora em Veghel, Países Baixos, com Mayada (43), proprietária de um salão de beleza em Al Hasakah, Síria Marieke van der

O ponto de partida é simples: um turista de férias na ilha senta-se com um refugiado sírio, também de passagem por ali, mas deixando o seu país para trás. A partir daí só têm de conversar, em diálogos que cruzam idiomas, experiências e expectativas.

Num baloiço, Alaa, um rapaz sírio de 11 anos, conversa com Finn, inglês e dois anos mais novo. Ambos têm boas notas a Matemática. O filme preferido de Alaa é O Hobbit, já Finn prefere Música no Coração. O sírio é fã de Cristiano Ronaldo, o inglês prefere Bastian Schweinsteiger. Tanto um como outro gostam de rap. As diferenças não são um entrave para a conversa. Estimulam-na, como num diálogo entre duas pessoas que se conhecem pela primeira vez.

Marieke e Philip não partiram para este projecto com expectativas concretas. Movia-os a curiosidade de saber sobre o que é que estas pessoas iriam falar umas com as outras. Mas acabaram surpreendidos, sobretudo com histórias que aconteceram do lado de cá da câmara. Enquanto Alaa e Finn falavam no baloiço, o pai do rapaz sírio começou a chorar. “Estamos tão cansados e esta viagem tem sido tão difícil”, desabafou com a equipa. “Tivemos de desistir de tudo.” Pouco tempo depois, a emoção já tinha contagiado o pai de Finn e o resto da equipa.

“A vida quotidiana e a interação são muitas vezes deixadas de lado”, argumenta a dupla de holandeses, que em 2014 esteve no Afeganistão, com o projecto A Monday in Kabul, para perguntar aos locais qual o seu lugar favorito na capital afegã. Com estes projectos, Marieke e Philip querem alcançar outro patamar de entendimento. “É importante humanizar o debate público.”

Ainda hoje continuam em contacto com todos os participantes deste último projecto. Todos conseguiram chegar à Alemanha uma ou duas semanas depois, com excepção de um deles, que decidiu ficar pela Áustria. E muitos continuam a falar entre si, dizem os criadores. Selma, alemã de 24 anos, e Husam, sírio de 26, tornaram-se amigos e ela tem-no ajudado a preencher os formulários necessários. E pode ser que Ghanem e Tilmann sempre se encontrem em Estugarda.

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