O Ronaldinho, o Mateus e outros dadores (animais) que salvam vidas
No Porto, há um dos bancos de sangue animal mais evoluídos da Europa. Criado há cinco anos por Rui Ferreira, tem já 500 dadores cães e quase 350 gatos. Agora, o médico veterinário abriu uma filial em Barcelona. Em breve, o banco alarga-se aos coelhos
No momento em que Rui Ferreira dá a picada, Inês Cardoso ensaia uma festinha mais vigorosa e sopra ligeiramente para o focinho de Ronaldinho, como quem atenua a dor. As orelhas achatadas do gato malhado, porte de respeito, denunciam alguma tensão, mas menos de dez minutos depois o processo está concluído: o Banco de Sangue Animal (BSA) recebeu mais uma dádiva e Ronaldinho junta um novo item a um processo de dador com já quatro anos. É dos mais antigos, dos mais regulares — e também dos mais bem comportados. Em quase cinco anos, o banco de sangue criado no Porto terá ajudado uns 10 mil cães e gatos. Em Janeiro abriu uma filial em Barcelona e nos próximos meses deve alargar o banco aos coelhos.
Há uma década, este cenário seria, no mínimo, improvável. Rui Ferreira, o médico veterinário criador do projecto, acabava de concluir a licenciatura no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e estreava-se no mundo do trabalho no Hospital Veterinário do Porto. Por lá, começou a aperceber-se de uma “lacuna” no tratamento dos animais: em situações de urgência, havia falta de sangue para fazer transfusões. Durante muitos anos, as recolhas eram feitas apenas no momento em que um problema surgia — e isso nem sempre dava os resultados desejados. Quando o imprevisto surgia a um domingo, durante as madrugadas ou quando a situação era muito urgente, a batalha era frequentemente perdida.
Em 2011, com um doutoramento na área de medicina transfusional em cães concluído, Rui Ferreira inaugurou o BSA, agora instalado no Hospital Veterinário da Universidade do Porto (UPVet). Foi o segundo a surgir em Portugal — o primeiro, no hospital onde Rui teve o primeiro emprego, foi também criado com a ajuda dele — e é, na Europa, aquele que tem "mais dadores e uma estrutura mais especializada".
Na lista de dadores há já 500 cães e entre 300 e 350 gatos, números elevados “tendo em conta a dimensão do país”. Em Portugal, congratula-se Rui Ferreira, a solidariedade dos donos dos animais é manifesta: “Somos bastante mais altruístas do que noutros países.” Por serem voluntários, os animais têm direito a vacina gratuita e ainda a análises completas, disponibilizadas online aos donos. Mas o mais importante — e, acredita Rui, aquilo que leva tanta gente a querer juntar-se ao projecto — é o que acontece depois: com o sangue doado, o BSA ajuda uma média de 200 animais por mês, o que multiplicando por quase cinco anos de trabalho significa 10 mil animais salvos.
O gato Mateus é também um dador frequente há já dois anos. Como Ronaldinho, não precisa de qualquer sedação e leva na ficha a nota de “bem comportado”. Em cada dádiva, que pode ser feita a cada três meses, um gato ou cão podem doar cerca de 10 por cento do volume total de sangue. Ao contrário das pessoas, não se sentem fracos e recuperam com muita celeridade. Mas nem todos podem ser dadores. Os felinos devem ser saudáveis, ter entre um e oito anos, mais de 3,5 quilos e viver numa casa, sem contacto com gatos de rua. Os cães, além de serem saudáveis e terem entre um e oito anos, devem ter um peso superior a 25 quilos e tolerar a manipulação.
Depois de recolhido, o sangue segue em bolsas para o laboratório onde a equipa de médicos veterinários do BSA faz a separação dos componentes com uma centrífuga. No caso dos gatos acompanhados pelo PÚBLICO, separou-se plasma (que pode ser congelado e tem uma validade de cinco anos) e concentrado de eritrócitos (com uma validade de apenas seis semanas). E esta divisão, explica Rui Ferreira, permite salvar mais animais. O banco tem já dois laboratórios — um no Porto e um em Linda-a-Velha — e cerca de 30 clínicas e hospitais espalhados pelo país, o que permite, numa situação de emergência, disponibilizar sangue em qualquer local em menos de uma hora.
A medicina veterinária nesta área “evoluiu imenso” na última década. Descobriu-se, por exemplo, que os gatos têm três tipos de sangue (A, B e AB), nenhum deles universal, e que não há “positivos e negativos”. Nos cães há oito grupos de sangue, mas curiosamente é mais fácil encontrar compatibilidades “porque clinicamente só um é importante”. As compatibilidades sanguíneas nada têm a ver com raças: um labrador pode doar sangue a um caniche ou um persa pode ser ajuda para um siamês.
A internacionalização
Foi quando Rui Ferreira terminou o doutoramento que o convite de um professor da Universidade Autónoma de Barcelona surgiu. Queria que o portuense fizesse em Espanha o que tinha feito em Portugal. E Rui aceitou. Há pouco mais de um mês o banco de sangue começou a funcionar plenamente na Catalunha, depois de um período de formação e de angariação de dadores. “Conseguimos já um número estável, que permite fazer face aos pedidos”, contou ao P3 acrescentando que no capítulo da internacionalização o BSA também faz envio de sangue para outros países como Itália, França ou Inglaterra (uma aposta que equivale a 15 a 20% do volume de negócios).
Quando abriu no Porto, o banco tinha apenas 15% de pedidos para gatos. Agora, a balança equilibrou: “Percebeu-se que se podem salvar muitos gatos. Eles melhoram muito rapidamente. E apesar de a transfusão em si não ser um tratamento é uma forma de manter o animal vivo para o tratamento fazer efeito”, explica. Agora, com o doutoramento da médica veterinária Inês Cardoso como base, o BSA vai começar a ter disponíveis, “em poucos meses”, unidades de sangue de coelhos. E possivelmente de furões.
Ver mais em p3.publico.pt