Do Oriente ao Sul: outras latitudes da dança do Mediterrâneo
Os desafios da 1ª edição do Cumplicidades.
Passavam 48 horas sobre o ataque suicida na Praça de Kizilar (Ancara), quando Mihran Tomasyan, turco de ascendência arménia, iniciava o solo na pequena sala da Rua das Gaivotas 6. De velho fato coçado e uma chapa de metal debaixo do braço, retira de uma mala de viagem desgastada, dispondo-os no solo, qual saltimbanco (o público informalmente em redor), objectos reciclados diversos: um velho transístor, gravador de fita, coluna de som, boneco de borracha…. Estende no interior de um rectângulo de luz umas calças e casaco e uma fita de cetim cor de sangue. Depressa ali reconhecemos uma silhueta humana ferida, exangue. You Are not a Fish… [título emprestado de um poema de Oktay Rifat (1914-1988)], sabíamos, evocava o assassínio do jornalista arménio Hrant Dink (Istambul, 2007), e todos os mortos em defesa do diálogo intercultural. Ao ouvi-lo murmurar nomes de nacionalidades várias, percebemos em Tomasyan o compromisso com uma causa, reconstruído num universo poético a suplantar qualquer simplismo militante.
O registo artesanal é encantador. Sob parcimoniosa luminotecnia e sonoplastia fabulosa, revelou-se um intérprete versátil e arrebatado, um prodigioso contador de histórias. Fala-nos não apenas de um país tenso, assolado por conflitos interétnicos, espartilhado entre a Europa e o Médio Oriente, mas de um mundo assimétrico, cada vez mais inseguro; e do quanto a apatia alienada de uns é cúmplice da tragédia de outros.
Hábeis metáforas e algum humor fazem do público testemunha de um micro-estado de guerra: petardos caseiros explodem em coloridos confettis; objectos do quotidiano transfiguram-se em destroços; sons de disparos em rajada confundem-se aos de jogos de computador; gritos ambíguos parecem gargalhadas. Tomasyan senta-se entre a assistência e observa, da nossa perspectiva, a cena devastada; agita a placa metálica, e escutamos o ribombar distante de um ataque aéreo. Desenrola a fita da velha bobine, distribui-a pelo público, assim urdindo uma teia a devolver-nos a percepção de estarmos conectados a um todo.
Esta contemporaneidade incorpora um perfume médio-oriental: criteriosos apontamentos musicais ou alusões ao folclore são expandidos numa linguagem pessoal. Densa e acessível, inventiva e frugal nos meios, esta “peça portátil”, em digressão desde 2010 (amiúde apresentada em performances de rua), nasceu numa residência no porão de um bateau-mouche parisiense.
Contessa (como era conhecida Aicha Kandisha, mulher-animal das lendas magrebinas) de Meryam Jazouli, propunha-nos um solo sobre as ambivalentes representações do feminino na tradição marroquina. Uma figura paradoxal, de pernas nuas, enormes botins de plataforma, e um blusão a cobrir o tronco e face, clara alusão à burka islâmica, desloca-se lentamente na cena obscurecida, e confronta o público, ora contemplativa ora provocadora. A disparidade convoca dicotomias algo óbvias, e é previsível desenvencilhar-se depois da indumentária e revelar rosto e cabelo. Jazouli pouco acrescenta ao impacto inicial da misteriosa personagem e incorre em alguns clichés, ainda que depurados, como colocar pulseiras étnicas ou segredar em árabe. Sem grandes ideias, o movimento final, ao som de Sir Alice, arrasta-se, pese embora tratar-se de uma intérprete focada.
Quando do Magreb nos chegam trabalhos com outra espessura, Contessa expõe-se inevitavelmente a comparações. Os dois solos sumarizam as potencialidades e os desafios da 1ª edição do Cumplicidades. Haverá um balanço a fazer sobre o meritório desígnio de dar visibilidade a novos criadores e a “outras latitudes” da dança contemporânea, e sobre a demarcação de um território numa Lisboa onde (já) não falta oferta cultural.