Oficial de justiça acusado de deixar pai e tia à fome, ao frio e às escuras

Homem, de 85 anos, morreu em Fevereiro do ano passado. Mulher, de 87, foi pouco depois encontrada com hematomas na testa e à volta dos olhos. Julgamento continua esta quinta-feira no Tribunal Criminal do Porto.

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Ministério Público acusa arguido de recusa de ajuda de familiares e profissionais para tratar do pai e da tia Nelson Garrido

Um oficial de justiça do Departamento de Investigação e Acção Penal senta-se esta quinta-feira no banco dos réus do Tribunal Criminal do Porto por dois crimes de violência doméstica na forma agravada. Na sala, poderá estar a tia, não o pai. O pai morreu, aos 85 anos, subnutrido, imundo, desidratado, com hipotermia.

Vítor S., agora com 58 anos, retornou à casa paterna, na zona Oriental do Porto, quando se separou. Para além do pai, Luís Basílio, também lá morava a tia, Cármen Adelaide, que sofrera meningite ainda pequena e desde então tinha dificuldade em compreender e em fazer-se compreender.  

O pai estava muito doente. Sofrera um enfarte agudo do miocárdio em 2006. Mais ou menos por essa altura, fora-lhe diagnosticada uma demência. Cada vez estava mais desorientado, menos autónomo. Cada vez precisava de mais ajuda para desempenhar as tarefas mais básicas. E a cunhada, tia do arguido, pouco podia fazer. Tivera um acidente vascular cerebral. Já nada via de um olho. Custava-lhe muito andar.

Não é claro, no processo, quando é que Vítor tornou à casa paterna. Percebe-se que, até Abril de 2014, uma prima ainda lá ia organizar a vida dos idosos. A partir daí, Vítor terá recusado a ajuda de qualquer familiar, a prestação de serviço domiciliário ou a integração do pai e da tia num centro de dia.

Alega o Ministério Público que o oficial de justiça não levava comida para casa. Limitava-se a contratar o serviço de um restaurante para entregar almoço e lanche ao pai e apenas almoço à tia. Se alguém o confrontasse com a fome dela, diria que ela “comia tudo num ápice, que parecia ‘uma coelha’”.

Às segundas-feiras, dia de encerramento semanal do restaurante, Luís Basílio e Cármen Adelaide nada tinham para levar à boca. Nesses dias, quando ainda conseguia andar, o pai ia lá fora, desgrenhado, barbudo, sujo, e  “pedia comida” a quem lhe aparecia à frente, “surripiava fruta”.

Luís Basílio só podia sair pelas traseiras, que o obrigavam a “vencer uma escadaria”. O filho não terá consertado a porta principal. Nem substituído os electrodomésticos avariados, alegando que consumiam demasiada energia. Tão-pouco terá arranjado o sistema eléctrico, que se desligava amiúde. Luís Basílio e Cármen Adelaide ficavam “longas horas às escuras, com o decorrente perigo de queda”.

 O oficial de justiça passaria o dia fora – trabalhava no centro da cidade. Só apareceria para dormir e tomar banho. Os idosos ficariam sozinhos o dia inteiro, sem um telefone que pudessem usar em caso de maior aflição. Vítor alegaria que, se tivessem um telefone à mão, se entreteriam a fazer chamadas “sem nexo”.

A 26 de Janeiro de 2015, a pedido da Segurança Social, a médica de família bateu à porta. O cheiro – a suor, a urina, a fezes – seria insuportável. A mulher que lá ia uma vez por semana fazer limpeza deixara de aparecer. Vitor deixara de lhe pagar. O arguido nem terá saído do quarto para conversar com a médica, que recomendou que os idosos fossem com urgência integrados num lar ou centro de dia.

O frio moía. No dia 6 de Fevereiro, a temperatura do ar, ali, oscilou entre os 4 e os 11 graus. Naquela manhã, Luís Basílio caiu e não conseguiu levantar-se. Ficou “prostrado no chão, a sangrar”. Cármen Adelaide desatou a gritar. Os vizinhos acudiram-nos: chamaram a ambulância.

No sábado, o frio continuou. A temperatura andou entre 1,2 e 12,1 graus. Vitor terá prendido os pés do pai com um cinto e terá saindo. Luís Basílio terá ficado “deitado, nu da cintura para baixo, com a janela do quarto aberta”. No domingo, o mesmo frio, o mesmo escuro, o mesmo abandono.

Na segunda-feira, 9 de Fevereiro, a temperatura subiu um pouco, andou entre os 5.1 e os 15.1 graus. Luís Basílio terá permanecido na cama, a tremer. No corpo teria apenas a parte de cima de um pijama de Verão. E Cármen Adelaide terá permanecido na cama dela, numa “espécie de dispensa, sem luz natural, à data sem qualquer tipo de iluminação”, com “um pijama sujo”, “sem roupa de cama suficiente”.

Familiares que por ali passaram chamaram os bombeiros. Luís Basílio estava subnutrido, imundo, desidratado, com hipotermia. Morreu no dia seguinte. Vítor só terá aparecido no Hospital de São João depois de o óbito ter sido declarado. Antes terá ido ao banco levantar 7500 euros da conta do pai. Não terá conseguido porque àquela hora já o banco recebera a informação da morte.

O Ministério Público esforça-se agora para provar que não terá sido por carência económica que Vitor terá negado cuidados ao pai e à tia. Auferia um salário líquido de 1807 euros e tinha livre acesso à conta bancária do pai. Desde Dezembro de 2013, faria levantamentos sucessivos. Alegando que o pai não tomava os medicamentos, nem lhos comprava. Insultá-lo-ia à frente dele ou nas suas costas.

Uma semana depois de Luís Basílio morrer, a cunhada continuava no mesmo sítio. A PSP encontrou-a na cama com “hematomas em ambos os olhos e na parte esquerda da testa”. Embora tenha anuído, perante os agentes, que o sobrinho lhe batera, disse que as marcas tinham sido provocadas por uma queda. Tinha 87 anos, apesar de ferida, não recebera cuidado médico ou farmacêutico.

Na acusação, o Ministério Público recorda que o arguido era a única pessoa a viver com os dois idosos, que, pelas suas patologias físicas e mentais, dele dependiam. Apesar de recusar apoio de familiares ou de profissionais, “não cuidou minimamente do bem-estar físico e emocional” do pai e da tia, “sujeitando-os, inclusive, a situações de risco para a vida e para a integridade física, a humilhações, tratando-os – pessoal e publicamente – como um ‘fardo’ e como uma ‘despesa’”. Acusa-o então de dois crimes de violência doméstica agravada.

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