O sítio onde Columbano retratou Antero
Quem está na Rua das Taipas vê um edifício com três andares e águas-furtadas, com duas portas, sendo a da esquerda, com o número 55 a que permite a entrada na Vila Martel. Através desse portão, temos acesso a um túnel, o qual por sua vez dá entrada para um pátio interior com pequenos quintais e inserido numa elevação, no topo do qual se encontra uma fileira de treze casas. É um percurso de escadaria em ascensão, que foi descrito, em 1944, por Rocha Martins, do seguinte modo: «Sobe-se ao encontro da glória por aqueles cinquenta degraus, íngremes e difíceis, mas merece bem a pena, porque não só a vista que se goza é admirável, mas porque nos pomos em contacto com as recordações de grandes mortos, da sua obra e dos ainda vivos que ali lidaram, sofreram, sonharam e realizaram parte dos sonhos (…).» (Diário de Notícias, 10 de Janeiro de 1944).
A origem da Vila é devida José Campelo Trigueiros de Martel (1852-1888), proprietário e jornalista republicano, que foi um dos fundadores do jornal O Século. Em 1883, ele destinou o anexo traseiro da sua casa, situada na Rua D. Pedro V, para a construção de um Pátio, que serviria para casas e ateliers de artistas. Inicialmente foram construídas apenas 11 casas, sendo as duas das extremidades destinadas a ateliers, com grandes janelas na fachada principal e na cobertura, para a entrada de luz natural. Em 1884, foram construídas mais duas casas nas extremidades e, posteriormente (1887, 1900 e 1951), fizeram-se outras alterações. Contudo, de uma forma geral, o conjunto preservou o desenho original, sendo visível, sobretudo na fachada do prédio que dá para a Rua das Taipas, a influência do “efeito Pombalino”.
Testemunhando o seu inicial cariz popular, o lugar começou por se chamar Pátio do Martel, em homenagem ao seu fundador. Em 1900, sendo proprietário o engenheiro Simão Trigueiros de Martel (1879-1946), sobrinho de José Campelo, o Pátio mudou de designação, passando a apelidar-se de Villa Martel.
Que se saiba, estes foram os primeiros ateliers de artistas que houve em Lisboa. Muitos foram aqueles que aqui tiveram oficina, sendo de realçar também as outras pessoas ilustres que por aqui passaram, quer apenas como visitantes, quer para serem retratadas. Entre os artistas são de mencionar os irmãos Rafael (1846-1905), Maria Augusta (1841-1915) e Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Neste lugar, Columbano pintou numerosos retratos, entre os quais o de Antero de Quental (1889), e realizou a sua primeira exposição individual, onde apresentou as pinturas que concebera para a sala de Baile do Conde Valenças (1891). Também José Malhoa (1855-1933) terá adquirido um ateliê no Pátio, tendo apresentado na Exposição do Grupo do Leão, desse ano, uma pintura intitulada O Pátio do Martel. Mas outros artistas tiveram aqui atelier, como Carlos Reis (1863-1940), Leandro Braga (1839-1897), Francisco Franco (1885-1955) e José Campas (1888-1971).
Mais recentemente, em 1956, o pintor Nikias Skapinakis (n. 1931) teve o seu atelier nesta Vila, que manteve até 2015. Skapinakis partilhou inicialmente o espaço com os pintores Rolando Sá Nogueira (1921-2002) e Bartolomeu Cid dos Santos (1931-2008), tendo os três realizado, em 1957, uma exposição na galeria do Diário de Notícias, intitulada «Exposição Atelier da Vila Martel». Um ano antes, em 1956, Skapinakis pintou Quintais de Lisboa, que corresponde à vista de Lisboa com que se deparou quando chegou à Vila. Entre outras obras, foi neste lugar que Skapinakis retratou, em 1958, o pintor Almada Negreiros (1893-1970).
Pretende-se agora edificar no seu espaço um conjunto arquitectónico e urbanístico, que prevê manter dois dos ateliers (nomeadamente o que foi de Columbano), mas que irá pressupor grandes alterações no restante conjunto. Apesar da Vila Martel não se encontrar classificada e do novo projecto pretender revalorizar e reabilitar esta área da cidade, é de salientar que este é um espaço identificado na Carta Municipal do Património e está graduado como Bem de Valor Patrimonial. Poderá necessitar de recuperação, mas não se encontra em estado de ruína.
O seu valor vai para além da tipologia de Vila, ou dos ateliers que eram conhecidos pelo facto de serem dotados de uma luz notável. O seu valor está também na história que guarda, pois esta Vila foi também espaço de liberdade. Durante o Estado Novo, cerca de 1958, aqui se realizaram as reuniões iniciais da Junta Patriótica de Salvação Nacional, organismo clandestino que reunia representantes das correntes oposicionistas.
Não só os ateliers, mas todo o conjunto guarda uma parte da história cultural e artística lisboeta. Será um perda para o nosso património que a Vila Martel seja alvo de demolições, mesmo que se mantenham os ateliers no extremo nascente, pois é como um todo que este espaço tem maior significado patrimonial. Quase como uma aldeia dentro da cidade, a sua localização, arquitectura e história são únicas e não têm paralelo em qualquer outro lugar da capital.
Doutorada em História da Arte. Colaboradora do Instituto de História da Arte