O negócio da Ikea ainda está a ser montado, em Portugal e no mundo
A loja de Braga, a inaugurar dentro de uma semana, é apenas uma parte dos investimentos da Ikea em Portugal. Viagem a Almhult, a cabeça e o coração deste corpo que não tem intenção de parar de crescer a nível global.
O lema está escrito em vários pontos dos 14 edifícios que tomaram conta do centro da cidade de Almhult, no Sul da Suécia, onde há 70 anos Ingvar Kamprad fundou a Ikea. E está escrito, agora em letras garrafais, no “Mums”, um espaço difícil de definir: é um anfiteatro, é um refeitório, é um local de reuniões de trabalho, é um lounge de proporções gigantes e é o coração do Centro de Design Democrático. Num fundo negro, qual quadro de ardósia nas antigas escolas, sobressai o branco das letras a lembrar: “Det mestra ar anu ogjort. Underbara framtid!”. Ou, melhor dizendo: “A maior parte das coisas ainda está por fazer! O futuro está cheio de oportunidades”.
Este é um dos lemas da cartilha de Ingvar Kamprad, o homem que, de objectivo em objectivo, transformou o pequeno vendedor de fósforos que foi (qualquer semelhança com o conto de Hans Christian Andressen será pura coincidência?) no dono de uma das multinacionais mais bem-sucedidas do mundo. A cartilha de Kamprad - ou O testamento de num comerciante de mobiliário, assim se chama a pequena publicação, acessível a cada um dos 138 mil colaboradores directos, em todo o mundo - tem nove lemas. E o que recorda que ainda está tudo por fazer, e que à frente de cada um de nós só pode estar um futuro magnífico, é precisamente o último de todos. Faz sentido que também esteja ali, a assumir a sua omnipresença no ponto mais visível do Mum’s. É ali que designers de todo o mundo pensam e desenvolvem os produtos que vão parar às páginas dos 219 milhões de catálogos, traduzidos em 34 línguas e distribuídos por 49 países.
A importância do catálogo de produtos para a Ikea está bem patente no museu que conta a história da marca (e que a partir deste Verão estará aberto ao mundo em instalações renovadas e ampliadas):o catálogo chegou em 1951, sete anos antes da primeira loja, em 1958. Actualmente, existem 375 lojas espalhadas pelo globo, às quais acorreram mais de 884 milhões de visitantes. Os números podem continuar e nunca deixam de ser impressionantes: a loja online acomodou 1,9 mil milhões de visitas, e a app para aparelhos móveis 58 milhões. A empresa tem quase mil fornecedores de 50 países diferentes, e em 2015 atingiu um volume de negócios de 33,8 mil milhões de euros. Ou seja, facturou num ano quase metade do resgate financeiro que sujeitou Portugal a uma intervenção externa durante três anos.
Os números podem continuar por aqui mesmo, por Portugal. O objectivo é investir 1100 milhões de euros até 2025, e ter dez lojas abertas ao público. Em termos de investimento, a execução já vai em 70%. Em termos de lojas, está mais de metade por fazer: há três abertas (Alfragide, a primeira, abriu em 2004; Matosinhos, em 2007; e Loures, em 2010), duas anunciadas (Braga, dentro de uma semana, e Loulé, no primeiro trimestre de 2017) e outras cinco localizações por escolher. Grande Porto? Grande Lisboa? No centro, Aveiro ou Coimbra? “Os centros urbanos, são sem dúvida mercados muito atractivos e onde queremos estar cada vez mais presentes”, é a resposta oficial, que quase nada diz.
Voltamos, então, ao Mum’s para perceber o que está na cabeça, e no coração, da empresa. Isso significa perceber como é que surge cada um dos produtos que aparecem no catálogo e na exposição e prateleiras das lojas. Tanto os que reaparecem em catálogo desde 1951 (sim, há casos desses!) como os que são criados todos os anos, para alargar as gamas existentes ou arrancar com novas colecções - como as edições limitadas ou as PS Collection, uma espécie de testemunho post-scriptum, que aparece de dois em dois anos com respostas a desafios tão concretos quanto ousados.
Como aquele que foi proposto a James Futcher, há já 15 meses: a pensar nas gerações futuras, que viverão em espaços cada vez menos espaçosos mas cada vez mais fluidos, criar uma cadeira confortável, bonita, que não ocupe muito espaço. “Pensámos nos tecidos técnicos que hoje em dia revestem o calçado de desporto, e trabalhámos uma cadeira sem costuras. Começámos nas fábricas, a conhecer o material, o processo de fabrico, os fornecedores. Só depois passámos para os protótipos, para os ensaios”, explica este designer britânico, que se mudou para a Suécia há nove anos. Esse é outro lema que vamos perceber: na Ikea fala-se sempre no plural, ninguém diz que faz nada sozinho. E não faz. Que entre uma chávena de café, e um espreguiçar nas almofadas há sempre conversas que resultam em ideias. E ideias que se transformam em produtos. E produtos que se materializam em vendas, as vendas em lucros, lucros em reinvestimento.
O cadeirão idealizado por Futcher e a sua equipa vai estar nas prateleiras em 2017. A gama de Mette Nielsen, a responsável criativa da colecção Tillfälle, já está neste momento nas lojas. É uma edição limitada, que chegou às lojas em Fevereiro, porventura para uma existência relâmpago - as unidades de produção e unidades vendidas de cada artigo nunca são reveladas.
Trata-se uma colecção que mistura a simplicidade escandinava com a exuberância brasileira. “Porque há coisas em comum entre as tradições escandinavas e brasileiras, e porque há diferenças ainda mais intrigantes”, explica Mette Nielsen, que atribui os padrões que desenhou nos tecidos, por exemplo, na arte de rua que viu nas ruas de São Paulo, e “nas calçadas que há no Brasil e que vocês também têm em Portugal”. As referências a Portugal não se ficaram por aqui: “Há uma ligação clara entre Portugal e o Brasil. E os fornecedores de cortiça e de cerâmica desta colecção estão em Portugal”, termina.
O serviço de mesa e todos os elementos em faiança da colecção Tillfälle leva o selo Made in Portugal. E uma grande parte das portas de cozinha, ou das mesas Lack que todos os anos a Ikea entrega em todo o mundo também. São feitas na fábrica de Paços de Ferreira, que exporta 85% da sua produção. A mesa Lack, um quadrado de 55x55 assente em quatro pernas, que em Portugal já foi vendida em 14 cores diferentes, é imbatível no mercado português. Quando entrou no mercado em 2004,e vendeu logo centenas de milhares de unidades, custava cerca de 9,95 euros e hoje custa 6,99. Quando foi lançada, na Suécia, no final dos anos 80, custava 200 coroas suecas. Hoje custa 49. E é um dos produtos estrelas do Museu da Ikea, porque foi com a Lack que experimentaram a técnica do Board on Frame, substituindo de vez a utilização de madeira maciça: o interior é feito em material reciclado, disposto como se fosse uma colmeia para lhe dar resistência e durabilidade. Mesmo assim, fica muito leve. É o que na Ikea chamam um BTI – Breath Taken Item – por conseguir oferecer funcionalidade, design e sustentabilidade a um preço muito acessível.
As ideias não são sempre brilhantes, e nem todas correm bem. E isso também pode ser visto no Museu. Como a colecção AiR desenvolvida nos anos 90, a partir da ideia de que as pessoas gostariam de ter mobiliário insuflável, que seria prático poder levantar o sofá sem esforço para aspirar o pó se este fosse confortável e resistente. “Confortável era, resistente nem tanto. Mas, sobretudo, acho que as pessoas não gostaram da ideia e pronto”, explica Per-Olof Svenssons, o primeiro, de entre os nossos interlocutores, que é nado e criado em Almhult e que já foi muita coisa na Ikea. Actualmente é guia no museu, em visitas onde gosta de frisar que toda a gente aprende com os erros. Esse é outro ponto que também está inscrito na cartilha de Kamprad: “Cometer erros é o privilégio de uma pessoa activa. Cometer erros é a raiz da burocracia e inimigo da evolução”.
Luís Pires, que estudou design de produto em Lisboa, foi trabalhar para Barcelona, e estava em Munique antes de arranjar emprego na Ikea como product developer, diz que as regras claras do “design democrático" que são seguidas na casa ajudam a atingir todos os objectivos - e a errar menos. “É isso que eu faço aqui, na área do dining (mesas e cadeiras de refeição): tenho de garantir que todos os produtos que chegam à loja cumprem os critérios de preço acessível, design apelativo, são produzidos com qualidade e sustentabilidade e cumprem bem a sua função. E isso faz os nossos clientes felizes”.
Luís Pires já tinha saído de Portugal há demasiado tempo para dizer que esbarrou de frente com clima sueco. O mesmo não pode dizer Leandro Teixeira, que se mudou de Paços de Ferreira para Almhult em pleno pico de Inverno, para assumir cargos de gestão na cadeia de fornecedores do grupo. “Comecei na pior altura. A partir daí só melhorou”, brinca. Trabalhar no sítio exacto onde pulsa o coração de um gigante como a Ikea foi um desafio profissional irrecusável.
“A oportunidade de trabalhar com gente de quase 50 países, lado a lado, nos mesmos corredores. Aprende-se muito”, diz Leandro. Alexandre Oliveira, que passava por um desses corredores (é mesmo verdade, onde anda um português, encontram-se sempre dois ou três), trabalha na Ikea há quase 20 anos (desde 1998, em Matosinhos, primeiro no contacto com fornecedores, bem antes de abrir a primeira loja a Norte de Portugal) e tem mudado de “corredores” quase de três em três. Esteve cinco anos em Matosinhos, quatro em Suíça, três na Alemanha, três na China, três na Índia (onde este ano o Ikea vai abrir a primeira loja), até que “aterrou” na sede, em Almuhlt, com mulher e filhas, - uma nascida na Alemanha, outra na China, ambas criadas no mundo. Até ao desafio seguinte. Porque, na Ikea, uma grande parte das coisas ainda está por fazer.
O PÚBLICO viajou a convite da Ikea