Destruição do património de Tombuctu chega ao Tribunal Penal Internacional
Ahmad al-Faqi al-Mahdi é acusado de “crimes de guerra” pela destruição de nove mausoléus e uma mesquita na cidade histórica do Norte do Mali. É a primeira vez que Haia se dispõe a sancionar atentados contra o Património da Humanidade.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, capital da Holanda, iniciou esta terça-feira a fase preliminar do julgamento do jihadista tuaregue Ahmad al-Faqi al-Mahdi (também conhecido como Abu Turab), acusado de “crimes de guerra” por ter dirigido e participado na destruição, em Julho de 2012, de vários bens classificados pela Unesco como Património da Humanidade na cidade de Tombuctu, no Norte do Mali.
É um facto histórico para o direito internacional: nunca antes o TPI levara ao banco dos réus um suspeito de atentar contra o Património da Humanidade, facto que adquire especial relevância numa altura em que outros crimes patrimoniais recentemente perpetrados nas ruínas romanas de Palmira, na Síria, pelo auto-proclamado Estado Islâmico continuam a ser notícia, e em que vários anos se passaram desde a destruição dos Budas de Bamyian, dinamitados no Afeganistão pelos talibã.
É também a primeira vez que um jihadista é levado perante a justiça no TPI. A acusação foi proferida pela procuradora-chefe Fatou B. Bensouda, advogada de nacionalidade gambiana, que abriu a audiência dizendo, segundo a AFP: “Temos de agir face à destruição e à mutilação da nossa herança comum." Enumerou depois a série de bens culturais destruídos pelo grupo islamista radical Ansar Dine, associado à Al Qaeda do Magrebe.
Em causa está a destruição perpetrada por este grupo jihadista, entre 30 de Junho e 10 de Julho de 2012 – após a Al Qaeda ter assumido o controlo do Norte do país na Primavera anterior –, de pelo menos nove de 16 mausoléus de santos muçulmanos e da mesquita de Sidi Yahia, conjuntos classificados pela Unesco, em 1988, como Património Mundial da Humanidade.
No decorrer de todo esse ano – e antes que uma coligação militar internacional liderada pela França interviesse em apoio do governo do Mali, em Janeiro de 2013 –, os líderes rebeldes jihadistas não só ameaçaram como mostraram ao mundo imagens das suas acções de destruição daquilo que consideravam testemunhos de idolatria da população, contrários à sharia (lei islâmica).
Foi “um ataque contra uma população inteira e contra a sua identidade cultural”, disse Bensouda, acrescentando tratar-se de estruturas “importantes para o mundo inteiro”, e um gesto que “não pode ficar impune”.
Perante a juíza do TPI, Ahmad al-Faqi al-Mahdi, de 40 anos, apareceu envergando a tradicional túnica branca, e – refere a notícia da AFP – franziu por várias vezes o sobrolho ao ouvir as acusações, que lhe iam sendo traduzidas em árabe. O El País acrescenta que o acusado se apresentou como funcionário do Ministério da Educação na cidade de Tombuctu.
Ahmad al-Faqi al-Mahdi, um dos chefes do grupo Ansar Dine, foi entregue ao TPI pelo governo do Níger, país vizinho do Mali, no dia 26 de Setembro do ano passado, depois da abertura de um inquérito por esta instância internacional em 2013. A 30 de Setembro de 2015, o militante jihadista apresentou-se pela primeira vez perante o tribunal de Haia. Depois da fase preliminar actualmente a decorrer, os juízes deverão fixar uma data para a abertura do julgamento.
A jóia africana
Tombuctu era considerada uma jóia do património de África. Situada nas portas do deserto do Sara, a cerca de mil quilómetros da capital do Mali, Bamako, e fundada por tribos tuaregues, a cidade (que serviu recentemente de cenário ao filme Timbuktu, de Abderrahmane Sissako) viveu o seu tempo de ouro nos séculos XV-XVI, quando se afirmou como um entreposto comercial, ponto de confluência das caravanas, e simultaneamente um grande centro intelectual do Islão. A sua população professava o sufismo, corrente mística do islamismo, e vem daí a designação de “Cidade dos 333 Santos”.
A proliferação de túmulos, mesquitas e documentos religiosos – muitos deles desapareceram também durante a ocupação da Al Qaeda – viria a marcar a história e o património de Tombuctu, que os jihadistas quiseram agora destruir, e em grande parte destruíram mesmo.
No texto de acusação na abertura oficial do inquérito a Ahmad al-Faqi al-Mahdi, ocorrida no passado dia 16 de Janeiro, a procuradora-geral Fatou B. Bensouda avançava já a ideia de que os actos de brutalidade cometidos pelo grupo Ansar Dine poderiam “constituir crimes de guerra”, à luz do Estatuto de Roma, que em 1998 deu origem ao TPI.
“Diversos grupos armados semearam o terror e infligiram sofrimentos à população através da perpetração de actos de extrema violência”, precisava a acusação, elencando, para além dos atentados aos bens patrimoniais, execuções sumárias feitas à margem de qualquer julgamento legal. Mas também violações, ou tentativas de violação, pilhagens, e ainda a utilização de crianças como soldados forçados da causa jihadista.
O TPI “fará tudo para conduzir um inquérito aprofundado e imparcial, e fará justiça às vítimas malianas inquirindo os principais responsáveis pelos alegados crimes”, disse a procuradora-chefe.