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A fome e a greve que marcaram São Pedro da Cova em 1946

Há setenta anos, recusando “trabalhar com fome”, os mineiros desta freguesia conseguiram por via da greve impor aumentos salariais de 15%, apesar da repressão.

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Trabalho nas minas em 1940, retratado para um álbum de fotos da companhia DR - Museu Mineiro de São Pedro da Cova
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Trabalho nas minas em 1940, retratado para um álbum de fotos da companhia DR - Museu Mineiro de São Pedro da Cova
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Trabalho nas minas em 1940, retratado para um álbum de fotos da companhia DR - Museu Mineiro de São Pedro da Cova
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notícia do Avante sobre a greve de Março de 1946 DR - Gabinete de Estudos Sociais - Arquivo do PCP
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Documento do processo da PIDE sobre a greve de Março de 1946 Dr - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
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Documento do processo da PIDE sobre a greve de Março de 1946 Dr - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
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Documento do processo da PIDE sobre a greve de Março de 1946 Dr - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
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Documento do processo da PIDE sobre a greve de Março de 1946 Dr - Arquivo Nacional da Torre do Tombo

A guerra tinha acabado, mas dentro da mina não. Sujeitos a mobilização forçada desde 1943, em São Pedro da Cova, Gondomar, os quase 800 homens e mulheres que trabalhavam num dos mais importantes complexos de extracção de carvão do país ganhavam, naqueles anos de chumbo, dos salários mais baixos do sector. Incapazes de trabalhar “com fome”, muitos deles arriscaram, a 27 de Fevereiro de 1946, uma greve que acabaria por se prolongar por seis dias e que viria a obrigar a empresa concessionária a dar-lhes aumentos na ordem dos 15%. Passados 70 anos, um livro fixa, para memória futura, esse importante episódio da resistência de um povo cuja identidade é ainda moldada pelas memórias da exploração mineira.

Não Podiam Trabalhar Com Fome é a transposição, para livro, da tese de mestrado defendida em 2011 por Daniel Vieira, 30 anos, um militante comunista que preside à Junta de São Pedro da Cova, que passou a estar agregada a Fânzeres, desde 2009. Como estudo de caso, a obra, que será lançada na próxima sexta-feira, na véspera de mais um aniversário desse evento, é mais um contributo para a historiografia dos movimentos operários que, com sucessivas greves em vários sectores e pontos do país, abalaram o regime salazarista nos anos 40. Mas serve, principalmente, de testemunho da resistência do povo de São Pedro da Cova, cujo destino se cruzou com a extracção de antracite desde o final do século XVIII.

Em múltiplos aspectos descritos neste livro, a greve de 1946 não difere de outras desse período. Não foi sequer tão forte e participada como a de 1923, que, ao longo das suas dez semanas provocou uma onda de solidariedade nacional e até internacional para com os mineiros de São Pedro da Cova. Aliás, a censura conseguiu que a paralisação, e as detenções e outros esforços violentos para a reprimir, terminassem sem que uma linha fosse escrita na imprensa legalizada, explica Daniel Vieira. Só o clandestino Avante acompanhou, com detalhe, o esforço dos trabalhadores para conseguirem melhores condições, esforço esse que a 16 de Abril desse ano foi compensado, com aumentos salariais que variaram entre os 14 e os 16% para todos os mineiros. Uma das consequências mais relevadas por Daniel Vieira neste livro.

Como recordava a historiadora Irene Pimentel num artigo no PÚBLICO sobre o superavit registado pela economia portuguesa em 1943, um elemento do regime, Daniel Barbosa, ministro da Economia no pós-guerra, calculou que uma família, constituída por um operário, mulher e três filhos, precisaria, em 1943, de um salário mensal de 1650 escudos, para comprar o “estritamente” necessário e "viver com decência e na maior modéstia". Isto significava 64$30 diários, dos quais 28$09 para despesas de alimentação. Mas, nesse ano, o salário médio da maioria dos trabalhadores fabris portugueses era de pouco mais de 15$00 (entre 1941 e 46, a média era de 17$00).

Nos vários escalões, correspondentes a tarefas distintas, os trabalhadores de São Pedro da Cova ganhavam antes da greve precisamente entre 17 e 21 escudos por dia, valores aos quais eram ainda descontadas despesas e taxas para o sindicato corporativo. A exploração salarial, a par das péssimas condições de trabalho e as doenças a que estavam sujeitos os operários são apontados aliás, como motivo para a falta de mão-de-obra de que se vinha queixando a própria administração, que depois do pico de extracção de 1941, ano em que foi a mais importante mina de carvão do país, vinha verificando quedas de produção. Não encontrando, numa vila com fortes ligações a esta profissão e cuja população aumentava, interessados em entrar ao serviço.

Este problema foi parcialmente resolvido em 1943, com a entrada em vigor da mobilização forçada, que tratou como desertor quem não se apresentasse ao trabalho e obrigou mais de 200 antigos mineiros a abandonarem empregos melhor remunerados noutras localidades, e até noutras actividades, para regressarem à empresa, que passou a ser controlada por um delegado do Ministério da Guerra, António Miranda. E é este membro do regime que assume, num relatório, que uma das razões para o protesto que eclodiu no final de Fevereiro de 1946 residiria no incumprimento de “prometida melhoria ou actualização de salários”, que não acompanharam a carestia de vida desses anos da guerra, que fez explodir os preços de bens tão essenciais como o pão ou o peixe, o arroz ou a manteiga, entre muitos outros.

Outros dos objectivos de Daniel Vieira foi perceber até que ponto esta greve teve influência do PCP, como assumido em 2000 pelo antropólogo Jaime Moreira Guedes, na sua tese “Minas e Mineiros em São Pedro da Cova”. Ao PÚBLICO, no ano passado, um antigo responsável da organização central do PCP no distrito do Porto, José Carlos Almeida, garante que já nesse ano, “as pessoas mais activas não eram espontâneas, estavam organizadas partidariamente”, e que o “PCP tinha uma célula em São Pedro da Cova”. Mas após a análise de várias fontes escritas e orais, Daniel Vieira considerou não ser possível concluir que houve “uma acção determinante do PCP” na realização desta greve de classe, a que não aderiram capatazes ou outros trabalhadores de categorias superiores, e que teve como protagonistas gente com muito baixa instrução ou, na sua maioria, analfabetos.

Dos relatórios dos inquéritos aos 31 detidos pela PIDE, Daniel Vieira denota nos trabalhadores um esforço para vincar as motivações económicas do protesto. Numa entrevista que fez, para a tese, ainda em 2008, Serafim Marques, o Moliceira, activista do PCP que já trabalhava naqueles anos, disse-lhe que a questão da fome foi quase uma palavra-chave, a explicação que lhe foi dada à chegada à mina, no primeiro dia de paralisação. "A greve andava-se a formar. Tinha-se falado e a gente falava a este e àquele (…) eu já sabia, cheguei à mina e andavam alguns cá fora e eu perguntei: - O que é que se passa? E responderam: - É greve, é fome. E eu disse: - Então se é fome, eu também tenho fome, até nem almocei. E sentei-me a conversar”.  

A opção, tomada pela “maioria”, como assumiu a empresa, e que segundo os documentos do arquivo do PCP terá sido seguida até por trabalhadores das instalações da empresa em Rio tinto (Gondomar) e no Monte Aventino (Porto), foi duramente reprimida. Chamada pelo delegado do Ministério da Guerra, a GNR passou a patrulhar a vila a cavalo, ia buscar os homens a casa e há relatos de espancamentos. Os detidos, que não tinham qualquer cadastro por antecendentes de contestação, passaram ainda a contar com ficha na PIDE e uma vigilância mais atenta da polícia política. E terminado o conflito, com a influência do PCP a crescer, a agressividade no trabalho, recrudesceu, à chicotada.

Se não instigou o arranque da greve – tese que o autor não põe de lado – o PCP, muito bem informado sobre as condições de trabalho e os salários praticados, acompanhou-a, como se verifica numa notícia do Avante, de Abril desse ano. E incentivou os trabalhadores das minas a prosseguirem o protesto, distribuindo um panfleto nos primeiros dias de Março onde se liam apelos à solidariedade dos portugueses para com os grevistas. “Que todos os portugueses apoiem esta luta, exigindo que parte dos lucros fabulosos da Companhia das Minas de São Pedro da Cova seja repartida pelos mineiros explorados. Os valentes mineiros precisam da ajuda de todos os portugueses honestos! Escrevam cartas de protesto às autoridades contra a exploração feita aos mineiros”, lia-se nesse prospecto clandestino.

A atenção do PCP, e o envolvimento do partido com esta comunidade mineira, foi, então, o prenúncio da politização desta comunidade e de uma ligação intensa que permanece até aos dias que correm e explica que o partido tenha aqui um raro bastião eleitoral no distrito. Mas ao contrário do que acontecera em 1923, em que famílias da cidade do Porto chegaram a cuidar dos filhos dos mineiros durante a longa paralização, em 1946 não houve nenhum movimento de solidariedade e a pressão policial, a par das dificuldades económicas e do medo de represálias, ditou o regresso, paulatino, dos grevistas ao trabalho. Sem o saberem, voltaram ao fundo das minas com uma vitória que haveria de lhes aparecer nas folhas salariais um mês depois.

Obra sobre a greve de 1923 a caminho  
A frequentar neste momento o doutoramento em Ciência Política em Aveiro – com uma investigação em torno do efeito do efeito da austeridade no reaprofundamento das clivagens ideológicas no discurso político – Daniel Vieira promete não abandonar o seu interesse pela história local. O autarca de São Pedro da Cova e Fânzeres espera publicar um trabalho sobre a greve de 1923 nas minas, e vai acompanhando com atenção o que se vai escrevendo sobre a vila, cujo museu acaba de receber um exemplar de um álbum fotográfico do início da década de 40, mandado fazer, na altura, pelos donos da companhia (ver fotos). Para já, este neto de operários da mina e de um chapeleiro comunista e antigo preso político de São João da Madeira lança Não Podiam Trabalhar com Fome” na próxima sexta-feira, pelas 21h30, no Auditório da Escola Profissional de Gondomar, junto ao Museu Mineiro. A obra, editada pela chancela Lugar da Palavra, será apresentada por Manuel Loff, historiador, professor universitário e orientador da tese que deu origem ao livro. 

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