Ricardo Neves-Neves gosta de ser ridículo
O seu teatro é um lugar lúdico, como prolongamento de uma infância que ficou por rematar. A Noite da Dona Luciana, texto do franco-argentino Copi, continua esse palco feito de prazer e de embalo musical que Ricardo Neves-Neves começou a construir há mais de dez anos.
Na primeira vez que João Mota, fundador do Teatro da Comuna e antecessor de Tiago Rodrigues à frente do Teatro Nacional D. Maria II, assistiu a uma peça de Ricardo Neves-Neves, despediu-se com uma frase que ficou cunhada a fogo na memória do jovem encenador e dramaturgo que então se começava a afirmar: “Você não é absurdo; você é ridículo.” Neves-Neves não deu seguimento à conversa para se certificar que o comentário era tão elogioso quanto lhe parecia. No espaço do seu teatro delirante, a referência a um teatro do absurdo parece coxa para lhe apanhar a passada vivaz e a sensação de que o cinema de animação se barricou no palco. Sobretudo na pele de dramaturgo, mas também enquanto encenador, o seu teatro é um lugar lúdico, como se funcionasse enquanto prolongamento de uma infância que ficou por rematar e o absurdo, não na sua extensão existencialista mas na sua frágil aderência à verosimilhança, espalha-se livremente.
Nesse palco feito de prazer que Ricardo Neves-Neves começou a construir há mais de dez anos com a escrita de O Regresso de Natasha, a sua primeira peça, e de forma mais constante e consistente a partir de 2008 com a formação do Teatro do Eléctrico, ser apelidado de ridículo equivalia, diz ao Ípsilon, a sentir que “tinha passado para o patamar seguinte”. “Fiquei muito contente quando o João Mota me disse aquilo porque o ridículo é um prazer tão grande. E é uma procura dentro do material que temos, que são o texto e os actores, e a partir daí sermos parvos e brincarmos.” Este teatro febril contamina qualquer peça em que o seu nome surja na ficha técnica e tem tendência a agravar-se quantas mais funções acumula – Neves-Neves é encenador e dramaturgo, mas também actor, por vezes em simultâneo. Acresce que todo este desenfreado universo em contacto com a infância nos aparece, quase sempre, embalado por um ritmo e uma musicalidade que se tornaram igualmente imagem de marca das peças que escreve e dirige. Ao lado de uma puerilidade inebriante, há um compasso surdo a que vozes e personagens obedecem, como se cantassem por cima de uma música que o público não ouve mas intui.
É possível que esse pé que inconscientemente marca o ritmo nas suas encenações e a forma como, assume o próprio, as vozes se fazem escutar sempre num artificial tom ligeiramente mais alto do que o normal tenham origem em dois simples factos da sua infância (passada no Algarve). Facto nº1: os seus pais, fãs de Ivone Silva, gravavam os programas televisivos em que a actriz de revista participava, viam-nos com frequência e fizeram dessa voz cantada um modelo natural para o futuro autor. Facto nº2: à excepção de uma cantora chamada Guida que interpretava canções da Disney, os discos que o pai lhe comprava em criança eram exclusivamente de música clássica, tendo crescido a admirar a profusão de notas dos compositores barrocos e o seu som “cheio como um ovo, em que parece que não há momentos de silêncio”.
É também assim o teatro de Neves-Neves: as palavras e as acções encadeiam-se sem grandes pausas, os actores são avisados desde o início que devem inspirar antes de o colega terminar a sua fala e a partitura dramatúrgica tende para a total eliminação de silêncios. “O silêncio”, a existir, “tem de ser um momento. Não gosto de fazer aquele tempo psicológico de chegar a uma conclusão”, justifica. Daí que as vozes das personagens se colem muitas vezes num vórtice próprio da comédia ou da animação, em sequências estonteantes que parecem tomar o público pela mão e rodopiá-lo como num bailado. Com o senão de, por vezes, poder ser complicado acompanhar esse andamento febril que toma conta dos actores e inunda o palco. Quando se viu diante dessa crítica inicial ao seu primeiro texto, O Regresso de Natasha, a forma que Neves-Neves encontrou para não trair o redemoinho de palavras que nos envolve e puxa para o seu interior, foi a de repetir ideias. “Então, quando escrevi a Mary Poppins – A Mulher que Salvou o Mundo, as personagens continuam a falar muito depressa mas dizem a mesma coisa duas vezes, por palavras diferentes. Gosto do texto rápido e ritmado. Não quero abdicar disso, agrada-me a energia lá em cima.”
Foi essa energia exuberante a inebriar em peças como a cirurgia fina de O Solene Resgate – exímia prova da micro-afinação musical de Neves-Neves numa “peça curta para 40 actores sentados” – ou a longa e preciosa cantilena que é Mary Poppins, a Mulher que Salvou o Mundo. Dois exemplos perfeitos de uma minuciosa direcção de actores que lhes pede para encaixarem falas, movimentos e efeitos sonoros, num imparável carrossel, como um brinquedo a que se dá corda e segue numa marcha imparável. Para a eficácia precisa dessa encenação, tal como observamos agora no ensaio de A Noite da Dona Luciana (24 de Fevereiro a 19 de Março no Teatro da Politécnica, Lisboa), do autor franco-argentino Copi, em que o encenador corrige cada detalhe de tom, ritmo e tempo; para a eficácia precisa dessa encenação, escrevíamos, Ricardo pede sempre aos actores que “façam o esforço extra e que no primeiro ensaio saibam já mais ou menos o texto”. “É uma perda de tempo para todos estarmos a decorar o texto em cena”, diz. “Há actores para quem o texto é para decorar em cena porque em casa têm vícios. Mas essa justificação aqui não funciona porque depois vamos moldar tudo quase palavra a palavra ou frase a frase.”
E, de facto, assim que a actriz Rita Cruz engrena no monólogo inicial da actriz Madame La Rite, metralhando um noticiário intergaláctico com “mensagens de Plutão a Alfa Centauro”, o texto de Copi parece avançar como uma série de peças de dominó que se empurram umas às outras. A partir desse primeiro impulso, somos puxados para dentro de uma peça que se desenrola dentro de outra peça e baloiça numa fronteira difusa entre ficção e realidade, entre ensaio e realidade, entre encenação e realidade, tendo por personagens o encenador, a comediante, o maquinista do teatro (duplicado por Neves-Neves para imprimir o seu efeito coral), a empregada da limpeza e uma stripper transexual que surge como assombração. Ricardo Neves-Neves estava de visita aos pais, no Algarve, quando há dois ou três anos levou consigo os dois Livrinhos do Teatro dos Artistas Unidos com textos de Copi, leu a peça e descobriu no texto “uma leveza, um lado desregrado, mesmo na forma de escrever, e uma estrutura desequilibrada” que logo o seduziram. “E acho que é um autor que não tem medo do ridículo – gosto disso quando escrevo, quando enceno e quando sou actor.”
Copi já andava no seu radar desde que, em 2012, Jorge Silva Melo, durante os ensaios de A Morte de Danton, de Georg Büchner, o desafiou para interpretar o monólogo O Frigorífico, um daqueles projectos que se foi adiando por razões de parte a parte e que, passe a redundância, permanece no congelador. Não está descartado esse monólogo nos Artistas Unidos – companhia para a qual Neves-Neves escreveu e encenou A Batalha de Não Sei Quê, em 2015 –, mas desde a fundação do Teatro do Eléctrico Neves-Neves tem dividido os seus dias entre os textos que escreve, as encenações em que se aventura e as peças (sobretudo dos Primeiros Sintomas) em que tem sido dirigido por Bruno Bravo e Sandra Faleiro. Foi também durante os ensaios de Danton e igualmente por sugestão de Silva Melo que se abalançou a candidatar-se ao encontro de jovens dramaturgos Obrador d’Estíu na Sala Beckett, em Barcelona, de onde saiu o esboço da histriónica preceptora à procura de emprego que imaginou para Mary Poppins e onde o autor inglês Simon Stephens lhe sugeriu que lesse Martin Crimp. Tudo mudou a partir daí.
O encontro com Copi
Ricardo Neves-Neves tomou pela primeira vez contacto com Copi através da apresentação da KARNART de A Dificuldade em se Exprimir – a partir de O Homossexual ou a Dificuldade em se Exprimir –, peça traduzida e encenada por Luís Castro para dois elencos diferentes – primeiro, o palco foi tomado por um trio feminino; algum tempo depois, o texto foi revisto por três homens. “Ficou para futuro, talvez um dia, fazer a terceira parte”, confessa Luís Castro ao Ípsilon, “que seria fazer uma versão com transgéneros – e num quarto espectáculo confrontar estas três leituras simultaneamente.”
Luís Castro fora testemunha do histórico espectáculo Eva Perón com que Filipe La Féria agitara a cidade de Lisboa em 1984 (depois de proibida, em 75, a sua tentativa de apresentar a peça com Mário Viegas no lugar da protagonista, avançaria quase dez anos depois com Teresa Roby), logo após ter feito A Paixão Segundo Pier Paolo Pasolini. “Eva Perón era um espectáculo visualmente muito forte, com nus, os urinóis que deitavam sangue, tinha imagens fortíssimas e era tudo muito violento e muito exposto; o La Féria fazia aquilo brilhantemente”, recorda. Mas Copi ficara adormecido na memória de Luís Castro até que, muitos anos depois, um amigo vindo de Paris lhe ofereceu um livro com a peça O Homossexual... Copi tinha-se tornado, na altura, um autor que, embora de uma existência algo subterrânea, trabalhava “assuntos sérios com um imenso apelo e potencial populares”, diz o director da KARNART. Foi também por aí que o conquistou: “Achei que a peça era muito leve, tocando coisas muito pesadas, e era plasticamente muito sugestiva. Era um texto super interventivo do ponto de vista social, com a temática muito actual da sexualidade e da transexualidade, e de um grande humor.” Mesmo na Argentina, confidencia o autor Rafael Spregelburd ao Ípsilon, as peças de Copi raras vezes são levadas a palco, mantendo-se uma aura de “autor vanguardista e arriscado”.
A “confusão” fervorosa que reinava em A Dificuldade em Exprimir-se encantou então Neves-Neves pela forma desregrada com que tudo se lhe apresentava. Mas estando ainda a terminar o Conservatório, em 2005, não lhe passava pela cabeça que “pudesse sequer vir a encenar de todo”. Fazendo coincidir grande parte das suas encenações com a sua própria escrita para palco, Neves-Neves dirigiu no Teatro do Eléctrico A Festa, de Spiro Scimone, e Menos Emergências, de Martin Crimp (ainda em digressão), escolhas que, à semelhança de Copi, não reflectem qualquer preocupação de reportório. Não anda a farejar clássicos nem contemporâneos, autores mais ou menos subversivos, mais associados a esta ou àquela causa ou corrente, nem faz contas aos anos que estão ausentes dos palcos portugueses. “Não são questões que me preocupem”, afirma. “Não escolho um autor porque está na moda ou faz parte de uma cultura underground ou de uma cultura pop. Tanto estou a encenar Copi como um dia, mais tarde, gostaria de encenar um clássico – não estou ainda nessa fase –, como nos próximos dois anos me apetece fazer uma peça de um autor mais comercial. Não é o autor que conta, são os textos em si e se quando os leio acho que posso dar algum contributo com a minha encenação.”
Claro que, depois, a pesquisa sobre o autor ajuda a definir muita coisa em cada espectáculo. Nunca permitindo que roube importância ao texto e àquilo que o texto naturalmente lhe desperta, Neves-Neves não finge depois ignorar que Martin Crimp é britânico, que escreveu as três peças de Menos Emergências num determinado período, que o seu percurso aponta num certo sentido, que Copi era franco-argentino, que tendo nascido na Argentina viveu em Paris numa época de grande agitação cultural, que trabalhou como ilustrador e era defensor das causas LGBT ou que as fotografias das encenações dos seus próprios textos deixam adivinhar uma elevada carga sexual à solta em palco.
Neves-Neves não foge às naturais sugestões da sexualidade que o texto naturalmente transborda, mas só depois de ter começado a ensaiar com os actores é que se apercebeu da frequente a opção de Copi ser levado à cena com homens no papel de mulheres, misturando e confundindo os géneros, arrasando convenções. Simplesmente a leitura do texto não lhe soprou essas imagens e, portanto, foi tacteando o próprio caminho por entre aquelas palavras, sem ter de obedecer a qualquer figurino ou ideia tomada de empréstimo. Até porque, em vez de tentar valer-se de talentos divinatórios que lhe permitam entrever o que “deve ser feito ou realizar um género de projecção”, o encenador acha que facilita o seu trabalho e dos actores se todos tentarem fazer de cada espectáculo tão-somente “aquilo que gostam de ver no teatro”.
“Quero fazer teatro pelo teatro”, afirma. “Aquela coisa de se lhe dar uma função – o teatro tem de ser educativo, o teatro e a comunidade ou o teatro tem de falar agora sobre os refugiados – é uma coisa que me aborrece muito. Não quero ter essa missão, porque a partir do momento em que alguém entra em cena já estamos a pensar.” A referência aos refugiados não surge de forma gratuita. No início deste mês, o Teatro do Eléctrico levou até ao Porto Menos Emergências, retrato de uma burguesia fleumática que parece estar sempre a ajeitar-se na moldura à espera do clique fotográfico, e que em pose de cantores de ópera que mantêm a postura para impor a sua voz aos restantes, comenta como a vida se leva bem melhor depois de o país ter expulsado mexicanos e sérvios, estrangulado bebés dos imigrantes e instalado uma mais eficaz iluminação urbana. “O Martin Crimp escreveu a peça há 15 anos e tenho muitas dúvidas que tenha pensado nos refugiados vindos do Mediterrâneo – ou tinha uma bola de cristal ou andava a ler jornais que eu não leio”, comenta. “Acho que as pessoas vêem e vão buscar temáticas de uma forma natural, sem eu precisar de sublinhar. Da mesma forma que quando estamos apaixonados começamos a ver a cara dessa pessoa em todo o lado, quando estamos obcecados com uma temática acontece a mesma coisa.”
Acorde menor
Madame La Rite propõe ao encenador/autor que prescinda da personagem de Deus, esse Deus que se apresenta com o seu noivo, um rato fantoche de mão. Madame La Rite acha que em vez de Deus, talvez fosse preferível a personagem de Deus ser trocada por um fato de animal, talvez de canguru, que é coisa de vanguarda, algo que para Ricardo Neves-Neves está assinalado como uma possível crítica de Copi ao teatro pós-dramático. Mas se há visão escarninha que identifica de facto na peça é a caminhada para um final em que a empregada da limpeza do teatro que existe em palco, a Dona Luciana, faz desabar a sua ira sobre as restantes personagens, como se quem mandasse naquele teatro e no teatro em geral fosse, afinal, aquele que não veste outra pele, não recebe os aplausos, não faz ideia do que está a acontecer para lá da bilheteira. “Acho que o Copi deixa no ar um certo vislumbre de que os empresários que gerem hoje os teatros, na verdade, não conhecem teatro”, defende. “E leva a situação ao extremo. Quase que o imagino a dizer ‘Qualquer dia são as mulheres da limpeza que mandam nisto!’, sem qualquer menosprezo pelas senhoras da limpeza.”
Nas peças a que Ricardo Neves-Neves dá vida manda sobretudo a intuição e a vontade de fazer. Em mais do que uma ocasião, os seus textos foram escritos na sequência de ter de avançar um título para efeitos de programação, antes sequer de ter uma linha rabiscada ou uma ideia formada do que pretendia fazer, e viu-se então forçado a desenvolver um texto a partir de um título com que se comprometera. Na peça de Copi, sente-se igualmente um pulsar de incerteza, de uma ideia que se vai descobrindo à medida que o texto avança meio desgovernado, sem freios, mas também sem precisar de se balizar ou criar regras. Avança com a mesma despreocupação que Neves-Neves insiste em ter por companheira, boicotada apenas por “no início ter sido tão mais fácil porque não devia nada a ninguém e não havia teorias nem pré-conceitos”. “Agora sinto mais responsabilidade e isso cansa-me um bocadinho porque gera alguma tensão que é totalmente agreste a qualquer tipo de pensamento e criatividade. Não sei como é que posso ultrapassar essa constante preocupação derivada da confiança que depositam no meu trabalho. Não quero desiludir e isso transforma-se em sofrimento, ficando o prazer um pouco de fora. Tenho pensado em como consigo ter novamente completo prazer no que estou a fazer.”
Ao assistir a A Noite da Dona Luciana, ninguém diria que o prazer está comprometido. Mas seguindo o resto musical que parece possuir as suas encenações, os desfechos escorregam quase sempre para um tom menor, sombrio, invadido pela morte e pela angústia do fim. Como o poema do fado Medo, de Amália Rodrigues, que Neves-Neves cita, perturbado pela ideia “horrível de saber que o último sentimento que se vai ter na vida é medo”. “Só que se calhar o fim do espectáculo é sempre o fim de qualquer coisa na nossa vida. Se calhar, para mim, há qualquer coisa muito mal contada nisto de se morrer. Quando se vive com a consciência da morte vive-se sempre de forma incompleta e numa curva descendente muito clara.” Se calhar, acrescentamos, é precisamente por isso que todo o restante espectáculo está sempre tão impregnado de vida, de ausência de silêncios, da celebração do ridículo, de uma alegria feroz que tenta não parar de rodopiar e luta euforicamente contra qualquer paragem. Só que até a euforia se esgota. E quando isso acontece aquilo que se ouve não deixa grandes dúvidas – é um acorde menor.