Turismo “mais exposto” ao tráfico de pessoas para fins sexuais e laborais
O sector do turismo está em expansão e é especialmente propenso para a exploração sexual e laboral, alertam investigadores dos direitos humanos.
Com a maior atenção das polícias à exploração de pessoas para fins sexuais e o desmantelamento de redes de tráfico de pessoas em bares e discotecas, estas actividades criminosas tendem a passar do espaço público para o privado: das casas de alterne para apartamentos; e mais recentemente dos apartamentos para hotéis ou outro tipo de equipamento hoteleiro.
A privacidade é um valor pelo qual o cliente está disposto a pagar quando dá entrada num hotel. O perigo é quando o cliente é o traficante, dizem os investigadores do instituto de investigação português NSIS (Network of Strategic and International Studies), Cláudia Pedra e Miguel Santos Neves, autores do projecto Tráfico humano no sector do turismo: papel das empresas na prevenção e difusão de boas práticas, que será apresentado em Março, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, e depois na conferência internacional da Organização Mundial de Turismo, em Berlim.
Miguel Santos Neves e Cláudia Pedra, respectivamente presidente e directora do NSIS, estudaram o fenómeno noutros países onde as estratégias do traficante, que adapta os seus métodos para se esquivar ao controlo, sem perder ganhos, coloca em maior risco – de exposição ao tráfico de pessoas – o sector do turismo. Não se trata de prostituição, mas de exploração sexual, forçada.
“Os hotéis não têm consciência do risco e podem ser envolvidos criminalmente”, diz Miguel Santos Neves. Aconteceu em casos pontuais nos Estados Unidos e em países asiáticos.
Em Portugal, a Polícia Judiciária nunca deparou com “nenhum caso com estes contornos”, disse ao PÚBLICO fonte oficial da PJ que se referia a situações em que os próprios responsáveis dos estabelecimentos pudessem ter conhecimento das práticas criminosas. E acrescentou não haver registo nem sinais de que os hotéis em Portugal possam agora estar mais expostos ao risco de se tornarem locais escondidos desses crimes.
Para os especialistas do NSIS, instituto que reúne investigadores do extinto Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), a perspectiva é outra: sendo este um risco global, só estando atento aos sinais e criando regras pode este fenómeno ser prevenido também em Portugal, onde essas regras ainda não estão a ser seguidas.
Situações estranhas
O projecto de investigação, que vai ser apresentado no próximo mês, foi financiado pela EEA Grants (programa de apoios do espaço económico europeu) e pelo programa Cidadania Activa da Fundação Gulbenkian, com aquele objectivo: “contribuir para uma política proactiva de prevenção”, implementar medidas e sensibilizar os profissionais do sector.
No âmbito do projecto, foram organizadas acções de formação nas quais participaram 444 pessoas de seis hotéis nacionais, em Lisboa, Estoril, Cascais, Olhão, e Albufeira, e das escolas de Turismo de Lisboa, Estoril e Portimão. Nessas acções apresentadas situações que, na rotina de um hotel podem passar despercebidas, mas que merecem especial atenção. Como quando, no check-in, só o homem fala e trata de tudo, ficando a mulher ou acompanhante em silêncio; quando a mulher permanece no quarto vários dias sem sair; quando a porta se mantém fechada por vários dias, com o aviso "Não Incomodar" a nunca ser retirado; ou quando é expressamente pedido que a limpeza do quarto não seja feita até à saída dos hóspedes. "São situações que acontecem, que nos foram descritas nas acções de formação. E são sinais. Podem não significar [situações de] tráfico, mas são suspeitos”, diz Cláudia Pedra.
“Existem muitas situações em que o aviso "Não incomodar" [impedindo a entrada de pessoal do hotel no quarto] chega a estar mais de três dias seguidos à porta, e até mais tempo, e isso é aceite”, completa Santos Neves. São sinais perante os quais é preciso estar “alerta”, reforça. Como também nos casos em que o cliente paga elevadas somas em dinheiro ou pede um quarto perto de uma saída de emergência.
É preciso criar um sistema de referenciação interno, para a protecção da vítima, defende o académico: solicitar, em qualquer circunstância, a identificação de crianças trazidas por adultos, tornando esse pedido obrigatório, e não permitir, por exemplo, que seja impedido o acesso a um quarto por mais de 24 horas.
Exploração e agências
No relatório da NSIS de 2012, publicado em 2013, Tráfico humano: A protecção dos direitos humanos e as vítimas de tráfico de pessoas, concluía-se que, das pessoas que tinham sido traficadas para Portugal, e de que havia conhecimento, 11% tinham uma ligação ao turismo: através da exploração sexual. Mas não só. Também através da exploração laboral em hotéis ou restaurantes, na medida em que alguns recorrem a agências de trabalho temporário.
Neste último caso, o aliciamento pode tomar a forma de pacotes propostos por agências de viagens, que tratam dos passaportes e vistos, da viagem e alojamento inicial, e prometem trabalho em locais de destino. São as “dívidas de servidão” que as pessoas ficam a pagar, durante anos, não se conseguindo libertar, descreve Cláudia Pedra, que explica que, por ter encontrado essa ligação ao turismo em 11% dos casos, de pessoas traficadas para Portugal, o NSIS sentiu “a necessidade de fazer este projecto”.
Em muitos destes casos, diz a investigadora, as pessoas são recrutadas para trabalhar no turismo, mas quando chegam ao destino “são colocadas em vários tipos de exploração, contra a sua vontade e sem liberdade de movimentos”.
Dados internacionais de 2012 apontavam para a existência de mil milhões de turistas no mundo inteiro, um número em crescimento, acentua Miguel Santos Neves. “Se o turismo está em crescimento e uma parte desse turismo é turismo sexual, quer dizer que a procura do turismo sexual também aumenta”, explica. “Isso leva a um aumento do tráfico associado [ao turismo sexual] para dar resposta a essa procura.” E conclui: “Isto só não acontecerá, se houver uma política de prevenção.”
O investigador doutorado pela London School of Economics aponta outro “fenómeno em crescimento” nalguns países: “a compra de hotéis por traficantes”. “Os traficantes investem os seus lucros para melhor gerirem o processo. Nesses casos, o hotel é todo ele utilizado esse fim, para as várias tipologias de tráfico: exploração laboral, exploração sexual e tráfico de órgãos.”