Mais de seis mil mulheres a viver em Portugal submetidas a mutilação genital

Maioria das vítimas pertence à comunidade imigrante da Guiné-Bissau e foram mutiladas no país de origem

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Luisa Ferreira/arquivo

Mais de seis mil mulheres com mais de 15 anos e residentes em Portugal foram submetidas a alguma forma de mutilação genital, indica o primeiro estudo no país sobre o fenómeno.

A maioria destas 6576 mulheres pertence à comunidade imigrante da Guiné-Bissau, explicou uma das coordenadoras do estudo, Dalila Cerejo, a propósito do Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, que se assinala no sábado. De acordo com este trabalho, que durou um ano, seguem-se a Guiné-Conacri (163 casos), o Senegal (111) e o Egipto (55).

No grupo etário entre os zero e os 14 anos, o trabalho encontrou 1830 meninas, nascidas em países praticantes ou filhas de mães de países praticantes, que já foram ou serão submetidas à mutilação genital, afirmou. A maior parte dos inquiridos - 87 mulheres e 37 homens – considera a mutilação genital negativa, tendo afirmado não pretender submeter as filhas a semelhante prática, na maioria dos casos realizada nos países de origem.

A socióloga explicou que "há um efeito da imigração em Portugal, uma diminuição da necessidade da prática de mutilação genital quando estas comunidades" estão no país, "o que é importante para a sua erradicação". Nos países de origem, quando as meninas não são alvo deste tipo de intervenção são rejeitadas pelas comunidades por serem consideradas impuras, "o que significa que não vão conseguir ser aceites por um homem, formar uma família", acrescenta a investigadora. "Assenta em mitos, como o aumento da fertilidade da mulher, facilitar a higiene da mulher, ou diminuir a infidelidade da mulher e aumentar o prazer sexual do homem. É praticada no sentido de adaptar a mulher à relação com o homem, em comunidades com uma ideologia patriarcal muito vincada", explica Dalila Cerejo.

A mutilação genital é "um dos tipos de violência contra a mulher, praticada em mulheres simplesmente por serem mulheres, por depender delas um certo grau de apoio, em todas as esferas, ao homem", diz. "O homem pode ser um actor fundamental na batalha da sua erradicação", sublinha. "Alguns homens jovens entrevistados estão já muito atentos à situação e afirmaram que não se casariam com uma mulher submetida a mutilação genital. Ou seja, há um rompimento com a prática, mas também uma revitimização das mulheres", observa Dalila Cerejo.

Por outro lado, nas comunidades islamizadas estabelece-se uma relação directa entre mutilação genital e religião, apesar de o Alcorão não determinar esta prática, diz também. Além da protecção das vítimas, o estudo recomenda um reforço da prevenção com trabalho em rede, concertado e com estratégias comuns, com mais campanhas de sensibilização, que envolvam de forma activa os homens das comunidades imigrantes.

Estas campanhas devem ser reforçadas na Páscoa, já que os "dados existentes apontam para que, neste período, familiares acompanhem as meninas aos países de origem, onde são submetidas à mutilação genital", aponta Dalila Cerejo. O estudo recomenda a criação de serviços de apoio especializado para as vítimas e, na área da formação, a realização de acções contínuas de formação para profissionais da saúde, educação e polícias, lembrando a necessidade de identificação e registo dos casos na Plataforma de Dados da Saúde da Direcção-Geral de Saúde.

A mutilação genital feminina consiste na remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos (clitóris, pequenos e grandes lábios) e causa lesões físicas e psíquicas graves e permanentes, como hemorragias, infecções, infertilidade e morte.

Estima-se que 140 milhões de mulheres em todo o mundo sejam mutiladas e que três milhões de meninas estejam em risco anualmente. A prática resiste sobretudo em três dezenas de países africanos.