Este ano celebramos o grão, o feijão e... o tremoço

As Nações Unidas querem pôr o mundo a comer mais leguminosas e escolheram 2016 para passar essa mensagem. Pouco consumidos no Ocidente, feijão, grão, ervilhas, lentilhas são uma alternativa às proteínas da carne e lacticínios. A indústria alimentar já está a aproveitá-los.

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Há milhares de anos que as leguminosas fazem parte da alimentação humana Miguel Madeira

Gelados feitos com lentilhas ou leite de amêndoa com proteína de ervilha? Sim, já existem, e, se lermos com atenção os rótulos dos alimentos de produção industrial, vamos provavelmente encontrar proteína, fibra ou amido de ervilha ou outras leguminosas incorporado em muito mais produtos do que imaginamos.

“As leguminosas são muito boas para nós, têm muita proteína, muita fibra, baixo teor de gordura, são ricas em micronutrientes [nomeadamente potássio e ferro], ajudam a controlar doenças cardiovasculares, diabetes, cancro e obesidade. Por isso há lugar para um aumento do consumo no mundo”, diz a canadiana Joyce Boye, especialista em ciências alimentares e investigadora no Centre of Agriculture and Agri-Food Canada, que esteve em Portugal a convite da embaixada do seu país.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estabeleceu 2016 como o Ano Internacional das Leguminosas e o Canadá é o maior exportador mundial destes alimentos – apesar de não ser um grande consumidor. O trabalho de Joyce Boye passa precisamente por criar condições para que o consumo de leguminosas – do grão ao feijão, das lentilhas às favas ou às ervilhas – se torne mais fácil.

“Na forma tradicional de cozinhar leguminosas, elas devem ser demolhadas durante algumas horas e isso torna-se difícil para o ritmo de vida actual”, explica a investigadora. “O que é positivo hoje é que já não temos apenas os grãos, temos as farinhas de leguminosa e, além disso, separamos as várias partes, o que torna mais fácil usá-las numa série de produtos e reduz os tempos de preparação.” A indústria alimentar já percebeu este potencial e “está a ser inovadora e criativa na busca de novas formas de desenvolver produtos”. É aí que aparecem, por exemplo, os gelados de lentilhas que, garante Boye, são óptimos.

Se na Índia, na China ou na América do Sul não é preciso ensinar ninguém a usar lentilhas ou grão, na América do Norte as leguminosas nunca tiveram um lugar destacado na alimentação. Por isso, Boye lembra princípios básicos, como o de que elas “não podem ser comidas cruas”, até porque “cozinhá-las aumenta as suas qualidades nutricionais”. Ao serem cozinhadas “aumentam o amido de resistência, que assim se comporta mais como uma fibra”, o que tem um efeito probiótico positivo para as “bactérias boas” dos intestinos.

E não existe o risco de começar a haver um excesso de proteína de leguminosa “escondida” nos alimentos industriais, como acontece com a soja, que há uma década era apresentada como a grande proteína alternativa à carne? Se, somado às leguminosas que comemos em grão, ingerimos proteína ou fibra das mesmas em vários produtos sem termos totalmente noção disso, não haverá um desequilíbrio?

Joyce Boye acredita que não. “As empresas têm de fazer diferentes variedades para que as pessoas possam ter várias escolhas. Mas como existem muitas leguminosas, isso não é um problema.” “[Além disso,] uma das coisas que promovemos é a diversidade no prato e as leguminosas podem ser conjugadas com cereais, por exemplo [, para funcionarem como alternativa à carne]”, sublinha.

Há milhares de anos, desde as antigas sociedades egípcia e grega, que as leguminosas fazem parte da alimentação humana. Mas nas últimas décadas parecem ter entrado num lento esquecimento, ao mesmo tempo que a popularidade de outros alimentos não pára de aumentar. “O consumo de leguminosas tem sofrido um lento mas persistente declínio tanto nos países desenvolvidos como nos países em vias de desenvolvimento”, avisam as Nações Unidas. “Pelo contrário, o consumo de lacticínios e carne tem vindo a crescer e prevê-se que continue a aumentar consideravelmente. Não se prevêem grandes alterações no consumo per capita de leguminosas, com a média mundial a manter-se à volta dos 7kg por pessoa por ano.”

Estas escolhas alimentares reflectem-se, obviamente, na produção: o milho, o trigo, o arroz e a soja (que também é uma leguminosa, mas, tal como o amendoim, pertence ao grupo das oleaginosas e não dos grãos) cresceram muito nos últimos 50 anos. Estas estrelas da chamada "revolução verde" conheceram aumentos de produtividade entre os 200% e os 800%, enquanto as leguminosas tiveram uma expansão de apenas 59%.

No entanto, o Canadá tem vindo a apostar nelas nos últimos 20 anos. “São óptimas como culturas de rotação”, explica Joyce Boye. “Fizemos investigação para perceber quais as melhores variedades e a produção foi aumentando para dar resposta às regiões do mundo onde há muito consumo, mas a produção é insuficiente.”

A explicação para o declínio das leguminosas, segundo as Nações Unidas, está no facto de quando um país se torna mais rico a tendência ser para substituir as proteínas vegetais pelas animais – é o que já está a acontecer na China. Mas há outro fenómeno paralelo a este: em alguns países a população está a crescer a um ritmo superior ao da produção, o que significa que, mesmo com mais gente a comer carne, já não produzem suficientes leguminosas e são obrigados a importar – daí que o comércio se mantenha saudável. A ONU cita o caso da Índia, que é ao mesmo tempo o maior produtor e o maior importador de leguminosas e que está a sofrer um aumento de preços devido às más colheitas deste ano.

A maionese e o Taroço 
Em Portugal, apesar da popularidade de pratos como a feijoada, o feijão frade com atum ou o bacalhau com grão, não se comem leguminosas em quantidade suficiente – dados de 2013 indicam que cada português come em média três quilos de feijão por ano e pouco menos de um quilo de grão. Aquelas deveriam representar 4% do total de alimentos ingeridos e, na realidade, representam apenas 0,6%, muito abaixo do recomendado. Quanto à produção, é de 24 mil toneladas por ano, o que corresponde a 0,04 do total mundial.

Nunca será pela quantidade que Portugal poderá competir, mas há muito trabalho a fazer na identificação e estudo das variedades tradicionais, diz Carlota Vaz Pato, responsável pelo projecto nacional para o estudo do feijão, financiado pela Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia e baptizado como Begeca – Exploiting Bean Genetics for Food Quality and Attractiveness Innovation.

“A cultura do feijão existe em Portugal há muitos séculos e por todo o país. Como é uma produção de pequenos agricultores, isso deu origem a grande diversidade de variedades que não estão a ser bem exploradas para o desenvolvimento de novas”, explica a investigadora portuguesa. “No entanto, os agricultores mantêm-nas na sua produção, para autoconsumo, pelas características de qualidade muito particulares.”

O que o Begeca pretende é caracterizar a qualidade nutricional de cada uma, assim como as qualidades de utilização e transformação. “Temos um estudo genético que nos vai permitir criar novas variedades, idealmente mais produtivas e mais resistentes, e que mantenham a qualidade das tradicionais”, afirma Carlota Vaz Pato. “Só podemos ganhar esta corrida com uma aposta na qualidade, ajudando assim a encontrar um maior equilíbrio entre a produção local e a importação, da qual somos hoje muito dependentes.”

Começam já a surgir no mercado alguns produtos inovadores, integrando uma das leguminosas mais populares em Portugal, o tremoço, e que geralmente é comida apenas como snack. A Maçarico lançou uma maionese de tremoço em 2003 e em 2009 relançou-a “com nova formulação e melhorias significativas”, esclareceu a empresa, sublinhando que é um produto destinado sobretudo ao mercado externo.

“A ideia de preparar um molho a partir do tremoço, matéria-prima que a Maçarico tinha muito disponível, foi uma ambição bem sucedida”, explica Fátima Filipe, responsável pela gestão de qualidade da Maçarico. “Na receita regular de uma maionese tradicional conseguimos substituir a proteína do ovo pela do tremoço.” O resultado é uma “maionese alternativa, com um teor de gordura muito mais baixo do que outras, sem colesterol e de origem totalmente vegetal”, além de permitir contornar “os problemas de segurança alimentar associados à utilização de ovo”.

Por seu lado, um grupo de jovens empreendedores criou há um ano uma marca que baptizou como Taroço e que se propõe fazer produtos à base de tremoço “sem recurso a corantes ou conservantes”, tendo para já lançado três patés feitos com tremoço, um clássico, outro com cebola e um terceiro com pimento verde. A ideia, diz Pedro Baptista, um dos sócios, é vir a criar uma linha de diferentes produtos à base de tremoço, que já estão em estudo.

“Como o tremoço é muito rico em proteína e fibra, não é fácil fazer a moagem e a quebra de ligações para se conseguir a textura pretendida, mas temos uma parceria com uma fábrica que nos permite fazer os testes necessários”, explica. Quanto ao sabor, nos patés apenas o clássico sabe a tremoço. O produto pode ser usado como uma base mais neutra trabalhada com outros ingrediente e especiarias para criar os sabores que se pretendam.

Os criadores do Taroço queriam uma alternativa saudável e vegetal e, ao mesmo tempo, um produto que os consumidores identificassem com Portugal, país onde, segundo Pedro Baptista, já se produziu muito mais esta leguminosa do que se produz hoje. E esperam, claro, que a sua marca venha ajudar a revitalizar a produção nacional de tremoço.

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