As Comédias do Minho declaram guerra ao D. Maria

Durante três semanas, a companhia sediada em Paredes de Coura promove uma invasão pacífica do teatro nacional. Para fazer esquecer as fronteiras da criação artística contemporânea.

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Os Doze Pares de França encena um combate entre a companhia do Alto Minho e o elenco do Teatro Nacional D. Maria II ENRIC VIVES-RUBIO
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Um auto popular que é uma metáfora para as próximas semanas no Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII): são os cristãos, ao serviço do imperador Carlos Magno, que invadem as terras mouras do Almirante Balão, ou é uma companhia de teatro do Alto Minho que invade Lisboa?

O D. Maria II entra em 2016 com as portas abertas, aproximando dois territórios afastados por 400 quilómetros. Até ao próximo dia 21, o Alto Minho vive na capital. Pela primeira vez, as Comédias do Minho (companhia sediada em Paredes de Coura e cujo trabalho se desenvolve em mais quatro concelhos – Melgaço, Monção, Valença e Vila Nova de Cerveira) apresentam-se no teatro nacional. E para inaugurar as três semanas desta Ocupação Minhota estreiam nesta quinta-feira Os Doze Pares de França.

Os invasores surgem na sombra, no escuro: as cortinas estão fechadas e tudo se passa entre o público, como se dele fizessem parte, como se dali tivessem vindo. Por trás das cortinas, estão os outros. Bem apetrechados, bem vestidos, são eles que estão em casa: mouros prestes a serem conquistados à lei da espada, o elenco do D. Maria II. De fora do palco vêm as Comédias do Minho. Não dizemos elenco, porque ali está toda a máquina da companhia de teatro que para esta peça não se restringiu aos seus actores.

“É o cheiro comunitário possível desta operação", diz ao PÚBLICO João Pedro Vaz, director da companhia e encenador de Os Doze Pares de França. "Há alturas em que isto é quase uma saga proto-shakespeariana – guerra, mortos e chacina, uma história de amor pelo meio, enganos e dissimulações – e de repente tem um cheiro a auto popular, porque as quadras entram de maneira mais artificial." Incluir não-actores reforça esse cheiro: “Admito que gosto. Dá mais fragilidade a este exército feito por pessoas que estão dispostas a dar a cara e a camisola. E vai tudo em guerra.”

É uma realidade não muito diferente do dia-a-dia nesta companhia que em 2014 celebrou os seus dez anos. E dá o tom geral ao programa Ocupação Minhota: “É um espectáculo-metáfora a vários níveis. Não é só esta coisa literal da separação dos elencos”, explica o director, acrescentando que o objectivo desta peça é que “os actores das Comédias do Minho também tragam o subtexto daquele território”. “Eles são uma máquina de paisagem que vai invadir uma máquina de cena”, sublinha João Pedro Vaz, para quem a metáfora não se aplica apenas aos contrastes expostos neste espectáculo mas a toda o trabalho da sua companhia.

O encenador recorda como o director do D. Maria II, Tiago Rodrigues, desafiou a companhia, pouco depois de ter tomado posse no ano passado. Logo nessa conversa inicial surgiu a ideia de representar um auto. “Existia uma vontade de puxar para o centro um reportório bastante periférico. Um auto popular tem uma representação muito particular, normalmente não muito apropriada pela criação artística contemporânea”, argumenta João Pedro Vaz, destacando que a possibilidade de contar com parte do elenco do teatro nacional ajudou à escolha de Os Doze Pares de França. “Colocava-se em questão esta dupla experiência de elencos com contextos tão distintos.”

Para Luís Filipe Silva, o cavaleiro Oliveiros que luta em nome do Imperador Carlos Magno, a dualidade entre as duas companhias está sempre presente, mesmo que para o público isso não seja claro. “Eu sou capaz de fazer a peça toda do princípio ao fim com um subtexto em que quase tudo bate certo: efectivamente somos uma companhia do Minho e efectivamente estamos a invadir o Teatro Nacional”, conta o actor que está há nove anos nas Comédias do Minho. “Até na própria representação eles têm uma liberdade para brincar com a coisa e nós temos de trazer sempre uma sinceridade, uma coisa mais contida, mais telúrica.”

Quando perguntamos, tanto ao actor como ao encenador, qual a importância para uma companhia como as Comédias do Minho de se apresentar no D. Maria II, as respostas são quase sincronizadas: é tão importante para a companhia como para o TNDMII. “Obviamente que é sempre um reconhecimento, mas acho que é um reconhecimento dos dois lados”, aponta Luís Filipe Silva. “Nós existimos porque existe uma responsabilidade de equilibrar as coisas.” 

João Pedro Vaz explica: “Nós temos reforçado muito esta ideia de que a centralidade e a periferia são conceitos a discutir e a rever. Queremos chamar a atenção também para este facto de o TNDMII de repente ir a espaços que são totalmente periféricos à área de actuação normal de um teatro nacional. Portanto: isto também é político.”

O director destaca o impacto da companhia na zona onde actua. “É avassalador, nós chegamos todos os anos a um quarto da população residente nos meses de época baixa”, diz, defendendo que este projecto, pensado para os locais, “é uma inversão total da lógica hierárquica grande/pequeno, central/periférico”. Luís Filipe Silva destaca ainda a forma como a companhia tem trabalhado no Alto Minho, “sem concessões”. “Quando chegámos ao Minho, as pessoas não estavam habituadas a ter uma oferta cultural, não estavam habituadas a ver teatro, mas nem por isso são desprovidas de sensibilidade ou inteligência”, defende, explicando que teria sido mais simples “ceder a uma certa coisa comercial”. Nunca aconteceu: “Fomos sempre apostando por outras coisa: já apresentámos espectáculos de dança contemporânea, espectáculos mais conceptuais e também coisas mais directas. Temos a responsabilidade de trazer uma diversidade de estéticas.”

E é essa diversidade que a Ocupação Minhota reproduzir em Lisboa. Além de Os Doze Pares de França, vai ser possível ver o espectáculo de marionetas Não Lugar e a peça infantil Tudo se Transforma; uma oficina, Criação e Território, abordará em profundidade todo o trabalho a que a companhia se dedica a tempo inteiro, quando Lisboa não está a ver.

Depois do teatro nacional, as aldeias

Nenhum trabalho das Comédias do Minho pode ser dissociado do território onde actuam. E por isso o espectáculo que nesta quinta-feira estreiam no Teatro Nacional D. Maria II é só uma versão daquele que se apresentará no universo a que a companhia pertence, o das aldeias minhotas. Depois da estreia em Lisboa, Os Doze Pares de França segue para a sua habitual digressão pelos cincos concelhos do Alto Minho que financiam as Comédias (Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença, Vila Nova de Cerveira), de 25 de Fevereiro a 2 de Abril. “É uma dupla experiência: o que é inédito para nós aqui será inédito para eles lá”, diz o director e encenador João Pedro Vaz. “O espectáculo vai ter uma escala completamente diferente. Aquilo que no D. Maria fica como uma imagem de outro lugar identifica-se lá com as pessoas”, explica, contando que nas sessões minhotas os não-actores serão substituídos por espectadores. “O público vai participar deste exército, há-de ser uma coisa muito mais 'serão de teatro' do que o espectáculo de Lisboa.”

Mas este é apenas um dos destaques da programação para esta temporada, que a companhia apresenta também esta quinta-feira em Lisboa. Uma programação que continuará a aposta feita em 2015 de apresentar espectáculos dos seus criadores residentes – os actores da companhia. “Todos eles vão ter uma criação e por isso estes dois anos serão no fundo uma revisão da matéria dada”, explica João Pedro Vaz. “Fizemos os dez anos e agora temos uma bolsa de artistas que tem conhecimento do território. São dois anos em que se projecta o futuro. É uma espécie de aposta para a segunda década."

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