O fato do Presidente Marcelo
Marcelo ganhou – e à primeira volta. Foi o candidato do centro e teve votos à esquerda e à direita. Diz que não vai abdicar do seu estilo. E ainda bem. Basta adaptá-lo.
O grande desafio político de Marcelo Rebelo de Sousa começa hoje. Depois de 40 anos na vida pública, vai ter de inventar para si um novo personagem: o do homem que se senta na cadeira de Presidente da República.
Nestas quatro décadas, vimo-lo quase todos os dias. Marcelo foi entertainer e showman; foi popular e estratégico; foi comentador e analista; criticou e elogiou todos; disse tudo e o seu contrário.
Dos muitos fatos que vestiu, nenhum serve agora a Marcelo e Marcelo sabe-o. Como um astronauta que entra em órbita, nos próximos dias vai entrar em descompressão e, enquanto desce à Terra, despirá o fato de “professor”, de “candidato”, de “observador”. Sagaz, Marcelo Rebelo de Sousa já começou o processo de transformação.
No início da noite eleitoral, entrou na sede de campanha em pose institucional, não fazendo comentários para as televisões, nem respondendo a perguntas. No fim da noite, no discurso de vitória, disse que queria deixar cinco “marcas” como Presidente e todas remetiam para uma mesma ideia: unidade nacional.
Marcelo foi o candidato do centro, distanciou-se da direita e prometeu fazer pontes. Agora, já eleito – e à primeira volta – citou António Costa e o Papa Francisco e até a Grândola Vila Morena, e tudo soou a genuíno. Marcelo tem esse dom singular. Comunicador, disse o que todos queremos ouvir de uma forma simples e directa: que será um Presidente para aproximar posições e cicatrizar feridas, para promover convergências políticas e promover a cultura do consenso.
Só errou num ponto. Portugal não precisa de ser “refeito”; precisa de ser constantemente melhorado.
O tom lacónico – para não dizer frio – com que Pedro Passos Coelho comentou a vitória evidencia o facto de esta ter sido acima de tudo uma vitória pessoal. Marcelo não teve apenas os votos da direita. Foi um candidato mais desprendido dos partidos do que o próprio Sampaio da Nóvoa, “o cidadão independente”. Não ficou a dever nada a ninguém nem a nenhum partido. Fez uma campanha solitária e entrará em Belém mais livre do que qualquer dos quatro homens que foram Presidentes da República na democracia portuguesa. Especula-se, com algum divertimento, sobre quem escolherá para a sua equipa nuclear no palácio presidencial e isso é um sinal revelador da sua originalidade e independência. Marcelo é o homem dos gestos simbólicos, que fala dos afectos sem parecer calculista, que consegue ser convincente quando diz, como fez no discurso de vitória, que “é o povo quem mais ordena”. E por isso a sua eleição não só “não tira o sono a António Costa”, para citar o socialista António Vitorino, como poderá ser particularmente útil ao novo Governo.
No domingo à noite, para uma multidão que não incluía nem “personalidades”, nem líderes partidários, elogiou os antigos presidentes por, “cada um à sua maneira”, terem defendido os interesses de Portugal. O que ele queria dizer era o que vinha a seguir: “Não abdicarei do meu próprio estilo.” Ainda bem. Basta adaptá-lo.