Subvenções vitalícias, o jackpot dos políticos
A linguagem repolhuda e farfalhuda, como diria Camilo Castelo Branco, não esconde a fragilidade dos argumentos do TC
Há leis que deveriam ser afixadas à porta do Parlamento para que sempre que os deputados entrassem na Assembleia baixassem a cabeça, não por reverência, mas por vergonha. Uma delas é a que permitiu a Assunção Esteves reformar-se aos 42 anos, recebendo 7255 euros de pensão por dez anos de trabalho como juíza do Tribunal Constitucional (TC). Há outra que contava a dobrar o tempo para efeitos de reforma e que possibilitou a autarcas, como uma de Palmela, reformar-se aos 47 anos. Há outra ainda, de 1985, que permitia a ex-titulares de cargos políticos trabalhar apenas oito anos (12 anos, a partir de 1995) e receber uma subvenção para o resto da vida.
Esta última lei, cozinhada pelo Bloco Central, pretendia compensar os gestores, advogados, economistas, médicos, engenheiros, etc… por abdicarem da sua actividade profissional e dedicarem-se à coisa pública. Na altura, a lei gerou polémica e muitos votos contra, mas acabou por passar.
É difícil, e se calhar até injusto, julgar a bondade de uma lei de há 30 anos aos olhos de hoje. Mas convenhamos que com o passar do tempo o legislador foi percebendo, e bem, que o dinheiro não cai do céu e que tal benesse era desproporcional face àquilo de que abdicavam os titulares de cargos políticos. Este jackpot político foi deixando de fazer sentido sobretudo no caso dos deputados, já que muitos optam pelo regime de não exclusividade.
Justiça (no sentido figurado) seja feita a José Sócrates, que em 2005 teve o bom senso de acabar com esta lei, mas quem na altura já reunisse condições para ter a dita subvenção manteve o direito. Depois, Passos Coelho, para ajudar a moralizar a austeridade, cortou o valor dessas subvenções vitalícias, impondo a chamada “condição de recurso”, o que na prática suspendia o pagamento dessas subvenções a ex-titulares de cargos políticos cujo rendimento do agregado familiar fosse superior a 2 mil euros. Se fosse menor, atribuía-se a tal subvenção, até o rendimento perfazer os 2 mil euros/mês.
Esta semana, o TC decidiu chumbar esse corte, com o argumento de que essa alteração à lei viola o “princípio da protecção da confiança”. A polémica foi tal que Joaquim de Sousa Ribeiro sentiu necessidade de vir dar a cara pela decisão. Diz o presidente do TC que “o que esteve aqui em causa do ponto de vista constitucional era uma questão típica da tutela da confiança e a tutela da confiança para ajuizar este tipo de questões não pode olhar só para o presente, temos de olhar para o passado e apreciar as implicações condicionantes”. E depois remete para o acórdão que nos elucida que “deverá ser igualmente tido em conta o indispensável contrapólo valorativo, que, no caso das normas questionadas, se consubstancia no interesse público que as fundamenta”. Percebeu? Eu também não.
A linguagem repolhuda e farfalhuda, como diria Camilo Castelo Branco, de Joaquim de Sousa Ribeiro não esconde a fragilidade dos argumentos do TC para perpetuar uma benesse injustificada. Faz lembrar aquele famoso diálogo entre o Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda e o seu colega deputado Libório de Meireles no romance satírico A Queda Dum Anjo. A páginas tantas, Benevides de Barbuda vira-se para o presidente da Assembleia e diz: “A suprema verdade, Sr. presidente, a verdade que os arrebiques da retórica não sofismam, é que, à medida que os impérios antigos se locupletavam, […] os cimentos das nações estremeceram.”
As pessoas não entendem e não aceitam que numa nação que está longe de se locupletar, haja deputados a receber uma subvenção vitalícia por terem estado apenas oito ou 12 anos no Parlamento. E os três principais argumentos do TC para chumbar o corte das subvenções são relativamente fáceis de desmontar.
Dizem os juízes que a imposição da condição de recurso transformaria uma prestação que serve para recompensar o empenho na coisa pública numa “prestação de cariz assistencial, simplesmente destinadas a fazer face a situações de carência”. Então 2 mil euros/mês num país como Portugal só permite satisfazer situações de carência? Em que país vivem estes senhores? Um dos juízes que votaram vencidos argumenta, e bem, na declaração de voto, que o corte, “à luz do contexto económico-social português, não é incompatível com a autonomia patrimonial ou um nível de vida satisfatório”.
O outro argumento do TC para o chumbo é ainda mais esdrúxulo; diz que a imposição da condição de recurso não deveria ter em conta o rendimento global de um agregado familiar, já que a prestação da subvenção se deve a “uma actividade pessoal” e não, imagine-se, familiar. É preciso ter em conta que a subvenção vitalícia tem uma natureza não contributiva (não se desconta para se ter direito a ela) e é cumulável com a pensão de aposentação ou de reforma. Como tal (e como sucede na atribuição das prestações sociais não contributivas), faz sentido colocar um tecto ou impor a condição de recurso. Como argumenta um outro juiz que votou vencido, a transmissão mortis causa do direito da subvenção revela que o beneficiário não é apenas o ex-titular de cargo político, mas também pode ser o seu agregado familiar. E assim se desmonta outro argumento do TC.
Há ainda juízes que lembram que o corte na subvenção seria uma solução temporária, já que a norma fazia parte do Orçamento do Estado para 2015 e que ia caducar quando este deixasse de vigorar. Lembram ainda, e bem, que se em 2015 continuou a haver cortes salariais na administração pública, por que razão é que a prestação não contributiva vitalícia não haveria de sofrer também um corte? Expurgando o acórdão do TC de todo o vernáculo e de toda a linguagem repolhuda, que argumentos sobram para justificar tão grande disparate?