Morreu o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, o último dos modernos
Uma das mais destacadas personalidades da arquitectura portuguesa, com uma obra que reequacionou os modelos da habitação social, foi também uma figura decisiva da militância católica contra o Estado Novo.
O arquitecto Nuno Teotónio Pereira morreu esta quarta-feira aos 93 anos, confirmou ao PÚBLICO fonte da família – completaria os 94 no próximo dia 30. Com uma carreira de seis décadas, foi uma das mais destacadas personalidades da arquitectura em Portugal – e, possivelmente, o último dos arquitectos modernos. Pelo seu atelier da rua da Alegria, em Lisboa, que deixou de frequentar definitivamente depois de cegar, passaram sucessivas gerações dos mais importantes arquitectos portugueses, de Gonçalo Byrne a Nuno Portas.
Os seus traços estão espalhados pelo país: da Igreja de Águas (1949-57), em Penamacor, o seu primeiro projecto, construído quando tinha 27 anos, à Moradia Barata dos Santos (1959-63), em Vila Viçosa, já projectada em parceria com Nuno Portas, passando pelos projectos de habitação social que projectou para Braga, Castelo Branco, Barcelos ou Póvoa de Santa Iria. Mas é em Lisboa que está o mais significativo conjunto de obras de Teotónio Pereira: o Bloco das Águas Livres (1953-56), assinado com Bartolomeu Costa Cabral; as torres do bairro de Olivais Norte (1957-67), projecto em co-autoria com Nuno Portas e Pinto de Freitas que ainda hoje é festejado como uma das melhores histórias da habitação social em Portugal; o icónico Edifício Franjinhas (1965-69), com João Braula Reis; e a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, novamente com Nuno Portas – os três últimos vencedores do prémio Valmor.
Será justamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde repetiu a proposta de assembleia em leque já experimentada em Penamacor, que o seu velório terá lugar esta quinta-feira, a partir das 17h. O funeral realiza-se no dia 22, às 13h30, no Cemitério do Lumiar.
Autor de vários artigos e comunicações nas áreas da arquitectura, do urbanismo, do património e do ordenamento do território, manteve também, com outros católicos progressistas, uma militância política extraordinariamente activa, sobretudo durante o regime de Salazar, a que se opôs frontalmente apesar de ter crescido numa família conservadora e afecta ao regime (e de, adolescente, ter desfilado entusiasticamente com a farda da Mocidade Portuguesa). Histórico defensor dos direitos cívicos e políticos durante os anos mais duros do Estado Novo (dinamizou o boletim clandestino Direito à Informação criado em 1963 para fazer a denúncia activa da Guerra Colonial, integrou a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos constituída em finais de 1969), foi um dos mentores e participantes da famosa vigília da Capela do Rato de 30 de Dezembro de 1972, uma greve de fome de 48 horas destinada a promover a reflexão sobre a Guerra Colonial que a polícia acabaria por interromper fazendo várias detenções. Ele próprio seria várias vezes preso (e duramente torturado) pela PIDE. Quando finalmente se deu o 25 de Abril de 1974, estava aliás há vários meses na prisão de Caxias, de onde seria libertado um dia depois da revolução.
Já em democracia, prosseguiu a sua militância, tendo ainda em 1974 sido um dos fundadores (com Jorge Sampaio e Ferro Rodrigues, entre outros) do Movimento de Esquerda Socialista, extinto em 1981.
Na mensagem de condolências que enviou à família de Nuno Teotónio Pereira, Cavaco Silva recordou-o justamente não só como "um dos maiores arquitectos portugueses do século XX", mas também como um "militante empenhado na defesa da liberdade, antes e depois do 25 de Abril de 1974". O Presidente da República sublinhou a "carreira notável" ao longo da qual projectou "edifícios emblemáticos que nos fascinam pela rigorosa beleza do seu traço", e a sua acção como "católico oposicionista" e, mais tarde", "defensor da independência dos povos africanos": "Lutou toda a vida, com uma fé inabalável, contra todas as formas de opressão", dando "o melhor de si ao seu país e à causa dos direitos humanos em todo o mundo".
Também o ministro da Cultura, João Soares, lembrou a "figura maior e inovadora da arquitetura portuguesa" e o "cidadão especialmente corajoso que sempre pugnou pelas liberdades públicas e por uma sociedade mais justa".
Como católico, Nuno Teotónio Pereira foi um dos grandes impulsionadores do Movimento da Renovação da Arte Religiosa (MRAR). A Igreja do Sagrado Coração de Jesus – onde se realizou uma homenagem por ocasião dos seus 90 anos –, classificada como monumento nacional, é disso um exemplo. Pensado com Nuno Portas, este projecto surgiu na sequência da criação, em 1952, do MRAR, de que faziam parte artistas plásticos como José Escada, Jorge Vieira, Cargaleiro, Madalena Cabral ou Eduardo Nery, e arquitectos como Nuno Portas, Luís Cunha, Diogo Lino Pimentel ou Formosinho Sanches.
O arquitecto foi mesmo o primeiro presidente do MRAR, que se definia como “uma comunidade católica de artistas, com o fim genérico de promover, em todos os domínios da arte religiosa, o encontro de uma verdadeira criação artística com as exigências do espírito cristão”. Este movimento deu um grande contributo para a recepção e para a difusão, em Portugal, das mudanças provocadas pelo Concílio Vaticano II (1962-65), que encetou o movimento de reforma da Igreja Católica.
"O último arquitecto moderno"
Nuno Portas, um dos arquitectos com quem Nuno Teotónio Pereira mais trabalhou no seu atelier, sobretudo entre 1957 e 1971 – e aquele com quem mais gostou de trabalhar –, destaca sobretudo "a força excepcional" com que Teotónio Pereira reorganizou a arquitectura portuguesa (muitas vezes nos bastidores, como convinha ao seu feitio inveteradamente discreto). "Nunca aparecia em público a dizer 'eu fiz', 'eu sei', tínhamos de ser nós a lembrá-lo. E a verdade é que ele esteve em tudo o que foi preciso reorientar: nas igrejas, primeiro, e depois na habitação social, que considero o seu legado mais importante e que nos marcou a todos. Ficámos todos com essa 'doença'", disse ao PÚBLICO o arquitecto, que, enquanto secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo dos primeiros três Governos provisórios lançou as operações do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL).
Além da dívida pessoal ("Foi ele que me convenceu, quando saí da escola e estava a pensar fazer cinema, a ficar no atelier; e creio também que terá sido ele a indicar-me para tratar das questões da arquitectura e de urbanismo no Laboratório Nacional de Engenharia Civil"), Nuno Portas sublinha a dívida colectiva que a classe dos arquitectos tem em relação a Teotónio Pereira, e à sua acção decisiva na organização e na regulação da profissão, primeiro no Sindicato Nacional dos Arquitectos e, já depois do 25 de Abril, na Associação dos Arquitectos Portugueses, que em 1998 daria lugar à actual Ordem dos Arquitectos. "Tinha muito força naquilo que ele próprio desenhava mas também no que organizava com os outros e para os outros. Nunca quis ser só o arquitecto que faz projectos, tal como nunca quis ser só o militante político."
É essa dupla condição de "cidadão e arquitecto exemplar" que Manuel Graça Dias considera melhor definir o percurso de Nuno Teotónio Pereira. "Durante a sua longa vida, nunca deixou de lutar pela causa da liberdade e, como católico, pela renovação da relação da Igreja com a sociedade, que pessoalmente abordou em projectos como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. De resto, o facto de ter sido muito activo como católico e como antifascista não diminuiu minimamente a sua paixão pela arquitectura – manteve sempre um escritório em Lisboa pelo qual passaram imensos arquitectos com quem estabeleceu relações de amizade e de cumplicidade", nota o arquitecto e crítico de arquitectura.
"O rigor que tinha em relação às autorias", acrescenta, também era invulgar: "Não queria para ele os louros das obras que produzia com outros arquitectos e fazia questão de partilhar a assinatura com todos os colaboradores de um projecto. Prova disso é a lápide da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em que o nome de Nuno Portas precede o do próprio Nuno Teotónio Pereira.
Manuel Graça Dias destaca o "brilhantemente executado" Bloco das Águas Livres, "um óptimo exemplar da arquitectura moderna feita na Lisboa dos anos 50, com uma complexidade não muito habitual para um edifício de habitação, e que até hoje permanece muito disputado". Mas também elogia o à época "injustamente maltratado" Edifício Franjinhas, que os jornais então chamaram "mamarracho": "É um edifício muito inteligente, com a sua pele que protege o interior tanto do ponto de vista da temperatura como do excesso de luz. Essas peças brise-soleil são resultado de um desenho bastante trabalhado que curiosamente foi sendo aperfeiçoado na incomodidade da prisão e enviado de Caxias para o atelier."
Foi, defende, "o último dos arquitectos modernos, no sentido do grande profissional que faz escola e deixa uma herança tanto na obra construída como nas pessoas que ajudou a formar" – "o equivalente em Lisboa ao que o Fernando Távora foi no Porto, liderando sem se impor e fazendo nascer à sua volta, mesmo nunca tendo sido professor, o gosto pela arquitectura numa série de discípulos".
"Preocupei-me muito com as pessoas"
Nascido em 1922 e formado na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, em 1949, Teotónio Pereira começou por estagiar com Carlos Ramos (1897-1969), um impulsionador da arquitectura moderna em Portugal.
Apesar do seu "entusiasmo inicial" por Le Corbusier, cuja Unité d'Habitation influenciaria assumidamente projectos como o Bloco das Águas Livres, tinha também uma admiração declarada pela arquitectura vernácula, que aliás ajudaria a inventariar como impulsionador do lendário Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (1955-60) lançado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos. A atenção ao problema da habitação, outro eixo fundamental (e profundamente moderno) da sua obra construída, levou-o a acumular, entre 1948 e 1972, o trabalho no atelier da rua da Alegria com as funções de consultor da Federação das Caixas de Previdência para o programa de casas de renda económica, no âmbito do qual foram projectados (e acompanhados por arquitectos como Fernando Távora, Nuno Portas e Bartolomeu Costa Cabral) conjuntos habitacionais para vários pontos do território nacional.
Essa luta para "encontrar uma linguagem para a arquitectura portuguesa" ajustada à nova realidade de materiais como o cimento e o betão armado e da construção em altura foi outro dos seus legados, frisa Manuel Graça Dias. E isto "no clima muito retrógrado" do pós-guerra, dominado pela visão "anedótica" que o Estado Novo tinha do que seria uma suposta "arquitectura tradicional portuguesa". Nesse aspecto, "o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa foi uma bofetada de luva branca no regime, que subsidia as equipas enviadas pelo país fora para um levantamento rigoroso da arquitectura do país profundo" – como se suspeitava, "não havia 'uma' arquitectura popular portuguesa", apesar de todos os desejos em contrário do discurso oficial.
O Estado reconheceu a sua acção como arquitecto e como cidadão em 1995, concedendo-lhe a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Mais tarde, em 2004, foi também condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante, e em Abril de 2010 a Câmara Municipal de Lisboa atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Municipal. Recebeu o Prémio Nacional de Arquitectura da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1961, e o Prémio da Associação Internacional dos Críticos de Arte, em 1985.
Recebeu por duas vezes o grau de doutor honoris causa: em 2003 pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, e em 2005 pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.
Nos últimos anos, de resto, não lhe faltaram homenagens. Quando, em 2010, somou 60 anos de carreira, a Ordem dos Arquitectos celebrou a sua vida e a sua obra. “Mostra que tive alguma importância na sociedade portuguesa ao longo de mais de meio século no plano profissional e noutros planos”, reagiu então Teotónio Pereira à Lusa, quando soube da homenagem dos seus pares. E lembrou os tempos em que tudo tinha começado: “Quando me formei havia muito poucos arquitectos e tinham pouca importância social. Eram os engenheiros que dominavam a construção, e os arquitectos eram subalternos. Hoje são socialmente muito reconhecidos”, dizia. “Antigamente havia um conceito errado ao recorrer aos arquitectos apenas para criar obras sumptuosas. Hoje, os arquitectos devem fazer desde as obras mais modestas às mais grandiosas."
Dois anos depois, foi a Igreja que lhe reconheceu o trabalho: “Num momento nacional dramático para a arquitectura, profissão que tem sido duramente flagelada pela crise económica, pensamos que a estatura ética e criativa de Nuno Teotónio Pereira representam uma lição de humanidade para todos nós e uma luz oportuníssima para pensar o lugar e o modo da arquitectura reinscrever-se no presente e no futuro.”
O Prémio Árvore da Vida/Padre Manuel Antunes, que lhe foi atribuído pela Igreja Católica, foi pretexto para uma entrevista ao PÚBLICO, na qual defendia que a arquitectura devia assentar em três pilares: a funcionalidade, a resistência ou solidez e a beleza. “A arquitectura tem que se adequar às necessidades das pessoas que habitam as casas ou dos empregados que trabalham numa firma ou dos operários de uma fábrica.” E dava como exemplo o seu edifício Franjinhas, declarado imóvel de interesse municipal: “Preocupei-me muito com as pessoas que passavam ali a maior parte do dia sentadas às secretárias, a trabalhar. As secretárias mais perto da janela recebem a mesma luz das que estão ao fundo da sala, por causa dos efeitos do tecto e das faixas de betão penduradas nas janelas.”
No caso de Teotónio Pereira, reforça Manuel Graça Dias, essa noção de "uma arquitectura pensada para as pessoas que a vão utilizar é muito importante e muito verdadeira": "Há histórias interessantíssimas que se contam desse projecto – como a de às tantas ele perguntar como é que que aquelas janelas se iam limpar por fora. Atestam como a sua arquitectura estava de facto ligada ao real, ao dia-a-dia, e não se limitava à retórica do desenho".