O futuro da liberdade de expressão: quando al-Wahhab supera Voltaire

Os europeus do século XXI arriscam-se a ser menos livres de expressar o seu pensamento do que Voltaire no século XVIII.

1. Voltaire, pseudónimo de François-Marie Arouet (1694-1778), é incontornável no Iluminismo francês e europeu do século XVIII. A defesa da tolerância religiosa e da liberdade de expressão estão-lhe estreitamente associadas. "Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.” A frase é um poderoso argumento clássico a favor da liberdade de expressão. Ao contrário do que muitos supõem, não se deve a Voltaire. Deve-se à escritora britânica Evelyn Beatrice Hall (1868-1956), que publicava sob o pseudónimo de S. G. Tallentyre, no início do século XX. Surgiu originalmente na obra The Friends of Voltaire / Os Amigos de Voltaire (Londres, Smith, Elder & Co, 1906), onde esta escreveu, no capítulo “Helvécio: a contradição”: “‘I disapprove of what you say, but I will defend to the death your right to say it’ (p. 199). O contexto é o da polémica à volta do filósofo e poeta contemporâneo de Voltaire, conhecido por Helvétius, ou Helvécio (Claude-Adrien Schweitzer). Evelyn Beatrice Hall comentava-a no seu livro. A frase pretendia condensar o pensamento de Voltaire, sobre a polémica à volta do caso Helvécio, que tinha publicado, em 1758, De l’ Esprit / “Do Espírito”. A obra e o seu autor foram atacados pelos meios religiosos da época, devido ao seu pensamento empirista-materialista e afastamento das formas de moralidade baseadas na religião cristã. Em consequência, o privilégio real de publicação foi-lhe retirado e destruídos os exemplares do livro. A propósito desse acontecimento, comentou Evelyn Beatrice Hall (p. 198): “Aquilo que o livro nunca poderia ter feito para si mesmo, ou para o seu autor, fez a perseguição por ambos. Do Espírito não só se tornou o sucesso da temporada, mas um dos livros mais famosos do século. Os homens que o tinham odiado, e não gostavam particularmente de Helvécio, cerraram fileiras à volta dele. Voltaire perdoou-lhe todas as injúrias, intencionais ou não intencionais. ‘Que alarido por causa de uma omeleta’, exclamou quando ouviu falar da queima dos livros. Como é abominavelmente injusto perseguir um homem por uma bagatela arejada como essa!” Apesar das perseguições, já na Europa do século XVIII, a polémica e a proibição também podiam ser boas para a notoriedade do autor e da obra.

2. “O Tratado sobre a Tolerância” de Voltaire, ganhou uma renovada actualidade e interesse do grande público. O atentado terrorista à redacção do Charlie Hebdo, perpetrado por islamistas-jihadistas, a 7/1/2015, fê-lo ressurgir nas livrarias e nas manifestações a favor da liberdade de expressão. Os autores do atentado afirmavam vingar as ofensas ao Islão e ao Profeta Maomé, cometidas por esse jornal satírico. Essa argumentação, em nome do religioso e sagrado, evoca memórias do passado, da Europa de Voltaire no século XVIII. Publicado originalmente em 1763, sob o título Traité sur la tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas, é um escrito panfletário. Tem como contexto histórico um caso judicial ocorrido em França, em 1761-1762: a condenação à morte de um huguenote (protestante) de Toulouse — o comerciante Jean Calas — acusado, injustamente, de matar um dos filhos por se ter convertido ao catolicismo. Na parte final do livro, no capítulo XXII, “Acerca da tolerância universal”, Voltaire deixou uma reflexão poderosa, que soa a actual, numa Europa cada vez mais diversa e multicultural (trad. port., 2.ª ed, Antígona, 2011, pp. 139-140): “Não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê! O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos todos nós filhos do mesmo pai, criaturas do mesmo Deus? Mas esses povos desprezam-nos; chamam-nos idólatras! Pois bem, dir-lhes-ei que o seu erro é grande. Estou em crer que, no mínimo, poderia surpreender a teimosia orgulhosa de um imã ou de um talapão [sacerdote budista da Birmânia e Tailândia], se lhes falasse mais ou menos assim: ‘Este pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos outros globos. Andamos perdidos nessa imensidão. O homem, com uma altura aproximada de cinco pés, é sem dúvida coisa pouca no conjunto da criação. Um desses seres imperceptíveis, na Arábia ou no país dos cafres [ou Cafraria, grosso modo a parte conhecida dos europeus da África Austral], volta-se para alguns dos seus vizinhos e diz: Escutai-me, porque o Deus de todos estes mundos me iluminou: há sobre a terra cem milhões de minúsculas formigas como nós, mas apenas só o meu formigueiro é amado por Deus; todos os outros lhe causam horror eterno; só o formigueiro será feliz e todos os outros sofrerão o infortúnio eterno’. Interromper-me-iam, então, e perguntar-me-iam que louco poderia dizer tamanha tolice. E eu seria obrigado responder-lhes: ‘Sois vós’. Procuraria de seguida apaziguá-los, mas seria muito difícil.” Na Arábia, a prece humanista e ecuménica de Voltaire, do “Tratado sobre a Tolerância”, não parece ter sido ouvida pelo seu contemporâneo, Muhammad ibn Abd al-Wahhab.

3. Voltemos ao século XVIII e às suas histórias paralelas. Na Europa, surgiam o Iluminismo e a actual modernidade secular, marcadas por espíritos racionais e críticos da religião (leia-se do Cristianismo), como Diderot, Rousseau e Voltaire. Na mesma altura, na Península Arábica, ocorria um processo histórico radicalmente diferente. Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792), um nome ainda há pouco tempo desconhecido dos europeus, marcou esse século XVIII paralelo. Teólogo-jurista da escola hanbalita — uma das escolas ortodoxas do Islão sunita —, dedicou-se à propagação da dawa, a mensagem do Islão. Para al-Wahhab, o problema não era o excesso de religião, ou dos seus efeitos perversos, como para Voltaire e os iluministas, mas a falta dela. Na sua óptica, os muçulmanos do seu tempo não entendiam, ou não praticavam de forma correcta, os preceitos fundamentais do Islão. Alá é o único senhor do universo não podendo ter associados, ou parceiros, que partilhem atributos divinos. Ou seja, é o fundamento último — e único — do poder político e legislativo. Para os iluministas europeus, era o próprio fundamento divino do poder político e legislativo que estava sob contestação. Para al-Wahhab, todos os assuntos de governo e de criação de leis pertencem unicamente a Alá. Nenhum ser humano pode fazer leis, nem alterar a Sharia, a lei islâmica. Efectuar isso seria colocar-se no lugar de Alá, substituindo a verdadeira vontade divina. Nada poderia estar mais em rota de colisão com o ideário do Iluminismo e as teorias do contrato social e da soberania popular, se estas se cruzassem no século XVIII. Não ocorreu nessa altura, pela distância entre os dois mundos. Mas al-Wahhab foi mais longe. O seu conceito de tawhid — crença na unicidade de Deus, fé em Deus único —, traduziu-se numa aversão extrema a imagens de figuras religiosas e templos de santos. Não por razões anticlericais ou de obscurantismo religioso, como acontecia com os Iluministas europeus radicais e com os revolucionários jacobinos franceses da época, mas porque eram vistos como uma grave idolatria (shirk), uma manifestação de paganismo. No século XVIII, as primeiras tentativas de al-Wahhab convencer os muçulmanos na Arábia a seguir o “verdadeiro” Islão, originaram perseguições e o exílio. Este via-se, a si próprio, como salafista – designação que evoca o esforço de imitar os antepassados pios (salaf), companheiros do Profeta, no seu modo de vida exemplar. A aliança com a tribo dos Saud (Al Saud), datada de meados do século XVIII, deu-lhe segurança e estatuto oficial. No século XX, com a independência da Arábia Saudita, o wahhabismo tornou-se religião de Estado. A sua forma retrógrada e puritana extrema do Islão, estava confinada ao deserto arábico. No século XX, os recursos financeiros de petróleo, que jorra na Península Arábica, alteraram o rumo da história. Voltaire nunca imaginaria ser superado pelo imã al-Wahhab.

4. 1989, duzentos anos após a Revolução Francesa de 1789, muçulmanos britânicos, em Bradford, num “auto de fé”, queimaram publicamente “Os Versículos Satânicos”, de Salman Rushdie. Acusavam o autor e a sua obra de blasfémia contra o Profeta Maomé e o Islão. A fatwa do Ayatollah Khomeini teve um efeito similar a uma sentença de morte, a qual deveria ser executada por qualquer muçulmano. Rushdie viveu escondido, sob protecção policial, durante vários anos. Não foi um caso isolado. Em 2005, o jornal dinamarquês, Jyllands-Posten, publicou várias caricaturas que satirizavam o Profeta Maomé. Um pouco por toda a imprensa europeia e ocidental, e noutras partes do mundo, estas foram também reproduzidas. Entre os muçulmanos, a publicação originou forte indignação e protestos, alguns dos quais violentos. Ocorreram um pouco por toda a Europa, onde há substanciais comunidades muçulmanas e nos países islâmicos. Os principais visados foram os autores das caricaturas, o Jyllands-Posten e outros jornais que as divulgaram. A Dinamarca, país de origem do jornal, teve as suas embaixadas ameaçadas em vários países islâmicos. A França ficou também no centro da contestação. A sua imprensa, especialmente o jornal satírico Charlie Hebdo, foram dos que mais contribuíram para a difusão das caricaturas do Jyllands-Posten. Estes episódios trazem à mente as lutas intelectuais e políticas em que Voltaire esteve envolvido no século XVIII europeu. Na fórmula propagandística celebrizada pelos iluministas, tratava-se de um combate das luzes contra obscurantismo; da razão e do progresso contra a religião e a tradição. O contexto era o de uma Europa que dava os primeiros passos no processo de secularização, na separação do religioso do político, em sociedades profundamente cristãs, católicas ou protestantes. Mas era também o de uma Europa segura de si própria, orgulhosa dos seus valores, e em expansão.

5. A Europa de hoje é secular e está a descristianizar-se. A Europa perdeu o seu zelo missionário, primeiro religioso e cristão, depois, a partir do iluminismo, civilizacional e secular. Não tem a capacidade do passado, de influenciar o resto do mundo, pela atracção da sua cultura, ou pela força. Os actuais valores europeus não se espalham universalmente, como acreditavam os iluministas. Enfrentam contestação cultural e religiosa, no seu próprio terreno histórico, pelas crescentes populações tradicionalistas, oriundas das migrações extra-europeias. Apesar das resistências no passado histórico dos últimos dois séculos e meio – os panfletos de Voltaire evidenciam-nas –, a Igreja Católica encontra-se hoje retirada da esfera política, confinada, essencialmente, à crença espiritual e privada. A partir dos anos 1960, no Concílio Vaticano II, fez um esforço assinalável de adaptação às condições da modernidade secular. Para os europeus, a vitória do espírito de Voltaire parecia total. A ironia é que pode não ser mais do que um breve período histórico. Em vez de um “fim da história” de paz secular e de tolerância, pode-se ter criado um vazio de convicções profundas, o qual abre portas aos seus inimigos, no interior da Europa e fora dela. Os valores da tolerância e liberdade de expressão nunca estão adquiridos, são uma luta perpétua. Num mundo globalizado e cada vez menos europeu, é o seu contemporâneo do Islão século XVIII, al-Wahhab, que hoje projecta as suas ideias religiosas salafistas e anti-iluministas na Europa secular, não o inverso. Os jovens islamistas-jihadistas que perpetraram os atentados terroristas de Paris, a 13/11/2015, são, de alguma forma, resultado (violento) de uma visão do mundo similar à de al-Wahhab e de outros radicalismos. O medo, a pressão social e a autocensura ressurgiram, sob outras formas, instalaram-se na consciência colectiva. Os europeus do século XXI arriscam-se a ser menos livres de expressar o seu pensamento do que Voltaire no século XVIII.

Investigador

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