Durante o dia falo com os meus amigos sobre David Bowie e é como se estivéssemos a falar de pessoas diferentes.
Como se chama a um artista que consegue aparecer junto de cada espectador como se aparecesse e cantasse só para ele?
Um génio.
Bowie era um génio. Era um génio com um jeito desconcertante para parecer normal.
Por isso era tão descaradamente artificial. As invenções dele nunca escondiam, nem por um segundo, a invenção. Escondiam era o inventor: ele.
Bowie gostava de fingir que não havia ninguém de especial por baixo daqueles fatos. Que era uma pessoa como qualquer outra.
Mas não era. Bowie era especial. Bowie era um génio musical.
Bowie era um génio antigo que sabia que a música não chega. É preciso um mistério. É preciso espectáculo. É preciso incompreensão.
Bowie sabia espalhar a confusão. Espalhando a confusão deixa crescer as fantasias de cada espectador. Cada um fica com a liberdade de completar Bowie, de fazer um Bowie pessoal, só para ele.
Nenhum outro artista musical deu tanta força ao público dele. Bowie era inspirador, porque sabia que o mistério faz criar.
A fantasia básica era: "Eu sou apenas um inglês tímido que pode ser tudo o que sou mais tudo aquilo que eu quiser ser."
O poder encantatório vinha do pensamento secreto: "Tu também podes ser eu; eu também posso ser tu; isto é tudo tão mágico quanto quisermos."
Bowie foi uma força do bem. Não há qualquer exagero na expressão. Graças a ele milhões de pessoas perderam o medo, a vergonha, a resignação.
Mas nada teria funcionado e durado tanto tempo, incluindo um futuro cujo fim ainda não se vê, sem a música.
Bowie era um génio da música. Era um compositor genial e um letrista genial. Era um grande cantor, com uma voz emocionante. Era um grande produtor. Tinha uma versatilidade que só os génios podem ter. E como se isto tudo não bastasse Bowie era inteligentíssimo. Sabia escolher as pessoas. Sabia escolher as modas. Sabia escolher os tempos.
O que é um grande artista? É um grande manipulador. Há artistas que nos esmagam, que nos dão tudo já feito e que apenas nos resta admirar e amar. E há outros, como Bowie, que nos dão a ilusão da colaboração, a liberdade de tornarmos nossa aquela música, aquela atitude, aquela majestade, aquela indiferença à mediania.
Nunca mais vai haver David Bowie. Mas vai sempre haver quem aprenda com Bowie a ser não só aquilo que é, mas aquilo que gostaria de ser, fingindo e fazendo da vontade de ser verdade uma versão artística da convicção.
Mas nunca mais vai haver David Bowie. O melhor David Bowie de todos era, afinal, o único David Bowie. Aquele que morreu.