Tribunais arbitrais já podem anular decisões da Administração Pública
Mudança ignorou dúvidas de constitucionalidade levantadas pelos dois conselhos superiores dos tribunais, pela associação sindical dos juízes e pela Ordem dos Advogados.
Imagine que tem um terreno onde quer construir uma casa ou até um hotel. Pede as licenças respectivas às autoridades públicas, que negam o seu pedido. Este acto da Administração Pública de indeferir o licenciamento pode agora ser anulado por um tribunal arbitral, não sendo, por isso, necessário recorrer para os tribunais administrativos para cancelar a decisão. A novidade, contestada por juízes e advogados, surge na sequência da revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que entrou em vigor no início do mês.
A lei que estava em vigor já admitia o recurso à arbitragem - forma de resolver litígios com recurso não a juízes de carreira mas a árbitros escoilhidos pelas partes - para resolver conflitos respeitantes a contratos públicos, questões de responsabilidade civil extracontratual e alguns litígios emergentes de relações jurídicas de emprego público. A última alteração veio alargar este rol passando a abarcar “questões respeitantes à validade de actos administrativos”, ressalvando que pode haver determinação legal que impeça o recurso à arbitragem.
A solução passou, apesar da oposição dos conselhos superiores dos tribunais administrativos e Fiscais e da magistratura, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e da Ordem dos Advogados. Nas reservas levantadas existem dúvidas quanto à constitucionalidade da medida. Apesar de ver aspectos positivos no recurso à arbitragem, o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) apresenta, num parecer pedido pela Assembleia da República, “reservas de índole constitucional”, recordando a posição já assumida na lei que regulou a arbitragem em litígios tributários. “No fundo aceita-se a arbitragem em domínios em que, atenta a sua natureza intrínseca, esta se devia ter por inadmissível”, defende o conselho que tutela os tribunais administrativos e fiscais. Ao colocar na disponibilidades das parte a possibilidade de recurso à arbitragem, o CSTAF entende que se “torna a legalidade num valor livremente disponível ou transaccionável”.
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) também tem dúvidas sobre a constitucionalidade de os tribunais arbitrais passarem a poder decidir questões relacionadas com a validade de actos da Administração. “Trata-se de matéria que constitui o núcleo central das competências da jurisdição administrativa e que se pretende alterar sem qualquer discussão prévia sobre a fronteira entre a justiça dos tribunais do Estado e a justiça arbitral, quando é certo que o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o direito ao acesso aos tribunais e a um juiz com as garantias previstas na Constituição determina a existência de um núcleo inalienável da função jurisdicional do Estado, que aqui pode ser posto em causa”, lê-se num parecer sobre a proposta de lei, antes da respectiva aprovação. O projecto acabou, contudo, por ter luz verde do Parlamento, sem alterações a este nível.
A ASJP realça ainda como agravante a circunstância de a lei já reconhecer ao cidadão o direito de “exigir da Administração a celebração de compromisso arbitral”, ou seja, que os organismos públicos aceitem submeter os litígios ao tribunais arbitrais. “Trata-se aqui de estabelecer casos de arbitragem obrigatória para a Administração, o que só se afigura admissível se tais casos estiverem concretamente identificados. Ora essa limitação não existe aqui, pois, pelo contrário, parece admitir-se a obrigatoriedade da arbitragem em todo e qualquer caso, desde que previsto em lei cujo teor ainda se desconhece”, realçam os juízes.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão superior dos juízes que trabalham nos tribunais comuns, também vê “com alguma reserva” a possibilidade de afastar a competência dos tribunais administrativos e fiscais em determinadas matérias. “Acima de tudo, a alteração não parece ditada pelo resultado de uma reflexão profunda sobre o âmbito da jurisdição administrativa, como deveria ser, mas antes por um critério de oportunidade que não leva em consideração a função material dos tribunais administrativos e fiscais”, defende o CSM, noutro parecer.
A própria Ordem dos Advogados, que representa a classe que, para muitos, fez lobbying por esta mudança, também critica o alargar do leque de matérias que podem ser decididas pelos tribunais arbitrais e até o facto de estes já poderem apreciar algumas outras. “Dado o interesse público de tais matérias e o brocardo latino de que 'à mulher de César não basta ser séria, mas também é preciso parecê-lo’, tais matérias deverão permanecer na reserva da competência dos tribunais”, sustenta.
Luís de Sousa Fábrica, membro do CSTAF, considera que o ideal seria os tribunais darem resposta a estes litígios, mas constata que, infelizmente, estes estão submersos em processos e incapazes de dar uma resposta rápida aos mesmos. “É urgente dotar de meios adequados a justiça administrativa”, sublinha, lembrando que existem milhares de litígios envolvendo dezenas de milhões de euros há muito a aguardar desfecho.
O presidente da comissão que propôs esta mudança, o professor catedrático Fausto Quadros, defende a constitucionalidade da mudança e lembra que o texto fundamental “concede igual dignidade aos tribunais do Estado e aos tribunais arbitrais” que exercem justiça pública e não privada. “Num país em que a justiça, inclusivamente a justiça administrativa, é assustadoramente lenta e exige muitas vezes uma elevada especialização, a arbitragem em Direito Administrativo pode ser um importante meio alternativo de solução de litígios”, acredita o catedrático, que acrescenta que o crescimento da arbitragem no plano europeu e internacional tem sido uma constante.
Recorde-se que, em Outubro passado, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, alertou, na cerimónia de abertura do ano judicial, para a subtracção dos grandes interesses económico-financeiros aos tribunais comuns e para o enfraquecimento do Estado de direito. "Numa palavra, um caminho para a privatização da justiça, que quer realizar a utopia neoliberal de dispensar o juiz, ficando os tribunais da República numa função residual”, afirmou.