Esquerda espanhola recusa tomada de posse de Rajoy
Líder do PP vai tentar formar “governo estável”, mas todos os outros grandes garantem que estarão na oposição. Podemos até gostava de voltar a ir a votos.
O futuro imediato da política espanhola continua envolto em todas as dúvidas. Mas a acreditar no que dizem agora os líderes, nem o Partido Socialista nem o Podemos estão dispostos a abster-se para permitir a tomada de posse de Mariano Rajoy. Assim, o líder mais votado no domingo nunca conseguiria ser eleito à primeira, com a maioria absoluta no Congresso.
O problema é que também não seria fácil a Rajoy obter os votos para ser eleito com uma maioria simples – durante dois meses, pode haver votações sucessivas. Se o período se esgotar sem a eleição de um presidente do Governo o Parlamento terá de se dissolver e serão marcadas novas eleições.
Apesar das contas e declarações – os centristas do Cidadãos estão dispostos a abster-se em nome da governabilidade mas garantem que “serão oposição” –, Rajoy diz-se tranquilo, já que “a maioria dos eleitores apoiou formações que partilham a defesa da ordem constitucional, a unidade, a soberania, o papel de Espanha no estrangeiro e a luta antiterrorista”. Espanha “não pode permitir-se um período de indefinição política” e cabe ao PP liderar a formação de um governo que seja “estável”.
Rajoy falou ao início da noite, depois da reunião da comissão executiva do PP onde enfrentou críticas pelos votos perdidos. O ex-primeiro-ministro, José María Aznar, defendeu que o próximo congresso dos conservadores, na Primavera, deve ser aberto. “Vou apresentar-me”, disse o chefe do Governo em funções.
Dirigentes do PP citados pelo El Mundo garantem que os conservadores vão iniciar de imediato contactos com todas as formações, incluindo o PSOE, para evitar uma nova ida às urnas. Ao mesmo tempo, a imprensa escreve que o PSOE terá de contar com a pressão das grandes empresas “Não decidi abrir negociações mas não aceitarei, por exemplo, que se rompa a soberania nacional”, disse Rajoy, referindo-se aos partidos que querem dar aos catalães o direito a votar sobre a permanência em Espanha.
“O PSOE actuará com prudência e responsabilidade, e é o PP que deve tentar formar governo”, afirmara horas antes o secretário da organização dos socialistas, César Luena, repetindo as palavras do líder, Pedro Sánchez, na noite eleitoral. O quer Sánchez deixou por dizer garantiu Luena: “O PSOE vai votar ‘não’ à investidura de Rajoy”.
As esquerdas
O mesmo assegura Pablo Iglesias, líder do Podemos, que na primeira vez que se apresentou numas legislativas, menos de dois anos depois de ter sido criado, se tornou na terceira força política, com 69 deputados no Congresso de 350 – o PP elegeu 123; o PSOE 90. “Não apoiaremos o PP nem activa nem passivamente”, disse o rosto do partido que nasceu do movimento 15M.
Iglesias enviou muitos recados a Sánchez, indicando as suas condições para uma hipotética e muito complexa coligação de esquerda. A mais difícil é o referendo catalão. “Parece que os senhores que mandam no PSOE não entendem que Espanha é um país plurinacional e diverso. Ou se entende isso ou está-se a entregar o governo a Mariano Rajoy e ao PP”, afirmou.
Questionado sobre um eventual acordo com nacionalistas ou partidos que defendem o direito a decidir (como o Podemos, que apelaria ‘não’ num voto sobre a independência), César Luena deixou claro que Sánchez não cederá: “Aos companheiros [preocupados] quero dizer que todos temos muito claro o artigo 2 da Constituição, que defende a unidade de Espanha”.
Face à discrição de Sánchez, é Iglesias que se tenta impor como líder de uma esquerda que tem mais votos que a direita (se juntarmos ao PSOE e ao Podemos a Esquerda Unida, que elegeu dois deputados; a Esquerda Republicana da Catalunha, com os seus nove; mais os dois dos bascos do Bildu) e se aproxima mas não chega à maioria de 176. Para isso teriam de entrar nestas contas um de dois partidos de direita ou centro-direita, o Partido Nacionalista Basco (seis deputados) ou o DiL (antiga Convergência do presidente catalão, Artur Mas, com oito).
Para estudar qualquer pacto, Iglesias, fortalecido por um resultado acima do esperado, exige uma reforma da Constituição que blinde os direitos sociais e estabeleça um mecanismo para os espanhóis poderem votar e demitir o primeiro-ministro a meio do mandato; uma nova lei eleitoral, mais proporcional; a garantia de uma justiça independente e um novo acordo entre Madrid e a Catalunha.
Ao contrário de Rajoy, Iglesias acredita que estes “são consensos que existem” em Espanha. “Penso que todos devemos reflectir muito nas próximas semanas, mas especialmente os partidos velhos do sistema de alternância”, afirmou, descrevendo como “humilhantes” os resultados do PP na Catalunha e no País Basco, onde o Podemos se impôs como primeira força.
Lei eleitoral
A mudança da lei eleitoral é uma das batalhas que o Podemos partilha com o Cidadãos, que esperava ser alternativa ao PP mas acabou com 13,9% e 40 deputados. “Há sítios onde com mais meio ponto o Cidadãos teria obtido dez a 15 lugares mais. Vamos trabalhar por uma lei em que os votos não se percam”, afirmou Albert Rivera, o catalão que lidera um partido nascido para combater a independência da sua região.
De facto, a lei eleitoral prejudica os partidos com voto mais disperso e pouca percentagem em cada círculo e beneficia as formações tradicionais. Com um sistema proporcional puro, o PP baixaria de 123 para 106; o PSOE de 90 para 81. Já o Cidadãos elegeria mais 12 deputados, ficando nos 52, e o Podemos chegaria aos 76. Mas o maior beneficiado seria a Esquerda Unida, que de dois eleitos passaria a 14. Neste cenário, PSOE, Podemos e Esquerda Unida ficariam à frente do conjunto de votos do PP e Cidadãos, e perto da maioria absoluta.
Rivera diz que cabe aos seus 40 deputados liderar agora esta e outras mudanças, mesmo que esta reforma precise do “sim” do Senado, onde o PP mantém a maioria absoluta. “Impossível”, diz Rivera, é “um governo do PSOE com 11 partidos”: “Só vejo o PP a tentar começar a legislatura”.
Tudo em aberto, portanto, numa ressaca eleitoral que será longa e mal começou. Nada garante que termine a 13 de Janeiro, véspera da primeira sessão do Congresso e dia em que o rei deve iniciar “consultas prévias para propor um candidato à presidência do Governo”. Para já, só Iglesias se diz “encantado” com a possibilidade de uma nova ida às urnas. O líder do Podemos afirma até que com “mais uma semana de campanha e um debate” teria vencido.
Com tanta incerteza, houve poucas reacções nas capitais europeias, a maioria para saudar a participação, que subiu e ultrapassou os 73%. O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, foi uma das excepções, defendendo que estes resultados devem servir para a Europa perceber que “a política míope e de austeridade [como a posta em prática por Rajoy] não leva a nenhum lado”.
Na Alemanha, a vice-porta-voz do Governo, Christiane Wirtz, admitiu que a chanceler Angela Merkel ainda não dera os parabéns a Rajoy pela vitória: “Nesta situação não tenho a certeza a quem se pode felicitar”.