Bitcoin: À procura de Nakamoto
Duas investigações jornalísticas concluem que o misterioso criador das bitcoins pode ter sido finalmente identificado. Mas a história parece muito longe de ter terminado.
Há histórias que continuam a ser boas mesmo que possam não ser verdade. No início da semana passada, a respeitada revista Wired e o popular site de tecnologia Gizmodo publicaram cada um, com poucas horas de diferença, uma investigação jornalística em que afirmavam poder ter encontrado a identidade por trás de Satoshi Nakamoto, o misterioso criador da divisa digital bitcoin. A bitcoin é uma espécie de moeda que circula online e que já criou milionários, captou a atenção da banca e dos meios financeiros, e chegou a ser vista por alguns como uma possível solução para a falta de liquidez de países sem dinheiro.
Ambas as publicações indicaram que o cérebro responsável pelo complexo sistema em que as bictoins assentam é um australiano chamado Craig Steven Wright, um obscuro empresário e académico de ideais libertários, com uma multiplicidade de mestrados verdadeiros e um doutoramento que parece ter sido inventado. É dono de empresas na área da criptografia e segurança informática, algumas das quais com ligação conhecida às bitcoins. E tem problemas mal resolvidos com o fisco. É o perfil certo para ser Nakamoto. Mesmo que não o seja – como um número crescente de pessoas defendeu numa miríade de artigos publicados nos últimos dias – é uma personagem interessante em qualquer história.
Nem a Wired nem o Gizmodo se atreveram a dar como absolutamente certa a descoberta. A Wired reconheceu logo no texto que muitos dos indícios em que assentam as investigações podem ter sido falsificados e deixados para trás de propósito por Wright. O Gizmodo acabou por dizer, dias depois, que afinal a conclusão a que os jornalistas tinham chegado pode estar mais longe de ser certa do que inicialmente julgavam.
Este tanto pode ser mais um caso de um criador invejoso da fama do seu próprio pseudónimo e a querer quer finalmente dar-se a conhecer, como simplesmente alguém a tentar fazer-se passar por quem não é. O cenário da farsa é o que está a ganhar mais probabilidades de ser o verdadeiro. Se assim for, Wright deu-se a uma enorme quantidade de trabalho para enganar os jornalistas, incluindo a criação de emails com conteúdo falso e a alteração de textos em blogues para que contivessem referências aparentemente antigas à criação das bitcoins.
Esta está longe de ser a primeira procura por Satoshi Nakamoto. Antes disto, várias publicações procuraram desvendar o mistério. A mais famosa tentativa foi a da revista americana Newsweek, que afirmou peremptoriamente tratar-se de um engenheiro informático japonês radicado nos EUA e chamado de facto Satoshi Nakamoto. O homem negou qualquer envolvimento no projecto e ameaçou processar a revista. A investigação jornalística veio rapidamente a revelar-se cheia de problemas e acabou por ser um embaraço para a publicação.
Os dois artigos, mais detalhados e sólidos do que o da Newseek, foram colocados online na terça-feira, (o da Wired primeiro, o do Gizmodo, pouco depois, provavelmente em resposta à concorrência). Os textos deram origem a um frenesim no meio dos entusiastas das bitcoin e da tecnologia, e a uma avalanche de artigos noutras publicações, incluindo os mais respeitados jornais, como o The Guardian e o Financial Times.
Não falta quem tenha lançado dúvidas sobre esta nova descoberta da identidade de Satoshi Nakamoto, que partiu de informação enviada às duas publicações por uma fonte anónima, o que inclui emails em que Wright diz ser Sakamoto. Os trabalhos assentam ainda noutros indícios, como análises aos blogues e redes sociais do académico, e ainda em perguntas feitas ao próprio (que dá respostas crípticas) e a pessoas próximas, incluindo a mulher e a ex-mulher, que dão respostas evasivas, mas nunca desmentem a tese de que Wright tenha inventado a moeda.
A identidade da pessoa (ou pessoas) que lançaram o sistema das bitcoins sob o (suposto) pseudónimo Satoshi Nakamoto é um mistério desde finais de 2008. Foi nessa altura que surgiu, publicado num fórum online, uma descrição, escrita com a estrutura típica de um artigo académico, em que o sistema das bitcoins era explicado em detalhe.
Trata-se de uma divisa digital, que não é emitida por uma estrutura central (contrariamente ao que acontece com as moedas tradicionais) e que pode ser obtida e usada por qualquer pessoa que se ligue à rede. A informação, incluindo o historial de transacções, é registada publicamente e de forma descentralizada em ficheiros nesta rede. Os fundos são guardados em carteiras digitais, que só podem ser usadas com uma espécie de chave digital. Perdida esta chave, os fundos ficam inacessíveis.
De forma simplificada, as emissões de bitcoins são feitas periodicamente, de forma automática e o dinheiro é atribuído ao computador que for mais rápido a resolver uma tarefa computacional que é necessária para manter o próprio funcionamento da rede. A lógica é a de recompensa pelo trabalho prestado: quem aplicar mais recursos neste processo (como capacidade de processamento e a consequente energia eléctrica) é recompensado com bitcoins. A dificuldade da tarefa que os computadores têm de executar é propositadamente difícil e vai sendo adaptada ao tempo que a rede demora a resolvê-los, de forma a garantir um fornecimento regular de moeda.
O sistema está desenhado para que, quando for atingido um determinado montante, deixem de ser feitas emissões. As bitcoins são um bem finito. O processo é, por isso, mais semelhante às escavações em busca de um metal precioso (uma metáfora que é usada frequentemente no meio) do que às emissões de dinheiro feitas por um banco central.
As bitcoins são também altamente voláteis. Cada uma vale, à hora em que estas linhas foram escritas, cerca de 375 euros, segundo o índice criado pelos gémeos Winklevoss (os que acusaram Mark Zuckerberg de lhes ter roubado a ideia para o Facebook e que são grandes investidores em bitcons – e esta seria toda uma outra história). Quando o leitor estiver a ler este parágrafo, o valor poderá ser muito diferente. Em 2014, em plena euforia em torno da divisa, atingiu-se um pico, que chegou ultrapassar os mil dólares.
A moeda ganhou atenção mundial na altura da crise bancária no Chipre, quando as taxas sobre os depósitos levaram a que corresse a notícia de que muitas pessoas estariam a converter dinheiro em bitcoins. Por seu lado, o ex-ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, embora crítico da divisa, chegou afirmar que um sistema semelhante seria uma solução de recurso para países como a Grécia, onde a falta de liquidez poderia ser mitigada com formas de pagamento alternativas ao dinheiro convencional.
O uso da moeda está longe da massificação, mas já é aceite por muitos negócios, de cafés a sites ilegais de venda de armas e drogas. Há até máquinas semelhantes às do multibanco que permitem trocar dinheiro por bitcoins. Algumas bolsas, incluindo a de Nova Iorque, passaram a publicar o valor das bitcoins. Embora não esteja particularmente interessada nesta forma de dinheiro alternativo, também a banca está atenta ao potencial da tecnologia por trás do sistema.
As bitcoins – e o conceito de fundos que podem ser transferidos online com recurso a tecnologia de criptografia – é tema de várias conferências. Numa delas, em Outubro, Wright foi um dos participantes. Falou por Skype, com a sua imagem projectada a grandes dimensões atrás da mesa de oradores. Quando a moderadora lhe perguntou exactamente quem ele era, hesitou por uns segundos, antes de dizer. “Estive envolvido nisto tudo durante muito tempo”.
Na descrição da Wired e do Gizmodo, o australiano terá desenvolvido o sistema das bitcoins com a ajuda de um amigo americano, Dave Kleiman, um ex-militar que se dedicou à informática e que morreu em 2013. O corpo foi encontrado em decomposição na cama, junto a garrafas de bebidas alcóolicas e a uma arma. Kleiman estava falido, apesar de um documento indicar que controlava um fundo com 1,1 milhões de bitcoins, que valem mais de 400 milhões de euros.
Aquela fortuna é semelhante a um montante de bictoins que é publicamente visível para quem está na rede e que se julga pertencer a Nakamoto, já que a obtenção daquela quantidade de moedas era significativamente mais fácil no início do processo. Os fundos nunca foram movimentados.
Os jornalistas da Wired enviaram um email a Wright a questioná-lo sobre os indícios que tinham descoberto e os emails e cópias de conversas online que tinham. A resposta, que chegou através de um email temporário, é digna de ficção: “Vocês estão a escavar, a questão é quão fundo estão?”. O endereço de email era Tessier-Ashpool@AnonymousSpeech.com, uma referência a uma família de uma série de novelas de ficção científica a que Wright fazia referência na sua conta de Twitter (que depois das perguntas dos jornalistas se tornou privada). Poucas horas depois, um segundo email dizia “Este nome [no email] foi escolhido por um motivo. Eu agora tenho recursos. Ainda estou na fase inicial de descobrir quais são as minhas capacidades. Por isso, mesmo agora, com recursos, continuo vulnerável. Vocês parecem saber algumas coisas. Mais do que deveriam.”
Na quarta-feira passada, um dia após a publicação dos dois artigos, a polícia australiana fez buscas à vivenda arrendada por Wright e a mulher num subúrbio de Sidney, bem como aos escritórios de uma das suas empresas. Segundo declarações das autoridades, as buscas estão relacionadas com problemas fiscais (que Wright tem há anos) e não “com as notícias recentes nos media sobre a divisa digital bitcoin”.
A agência Reuters falou com o proprietário da casa, que afirmou que Wright deixará de ser inquilino antes do final do mês e tem planos para se mudar para o Reino Unido. Um vizinho disse ao jornal The Guardian que um grande contentor de mudanças tinha estado no local um mês antes. Parte da presença online de Wright também se esfumou. O blogue, cujos textos ajudaram às conclusões dos jornalistas, foi apagado.
Nenhuma boa história, contudo, termina sem uma surpresa final. Na quinta-feira, foi enviada uma mensagem para uma mailing list dedicada às bitcoins. O remetente era o email satoshi@vistomail.com, um dos que tem sido associado ao inventor da divisa. O texto era curto: “Eu não sou o Craig Wright. Somo todos Satoshi.”
Na Internet, há quem esteja a duvidar da veracidade deste email.