Um faz-tudo que vai de aldeia em aldeia

Dentro e fora dos centros urbanos, há cada vez mais idosos. Em vários municípios, reinventam-se modos de lhes fazer chegar serviços. O PÚBLICO foi ver cinco exemplos. Este é o do Guarda.

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Adriano Miranda / Público
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“Até que enfim!”, exclama a mulher enlutada, de cabelos brancos presos num ó, mal abre a porta grande, pesada.  “Vale mais tarde do que nunca”, retorque Américo Santos, com a caixa de ferramentas na mão. “Está tudo bem, dona Fernanda? Posso ir lá ver a cozinha?”, prossegue. “Sim, senhor. Faça favor de entrar. Espere, que eu vou acender aquela luz! Sempre vê melhor.”

Não há que enganar. Na carrinha branca, que ficou estacionada à entrada da aldeia de Mizarela, a 13 quilómetros do centro da Guarda, lê-se: “Brico Solidário”. Aquela é a oficina móvel e aquele é o homem que faz as pequenas reparações em casa de pessoas idosas, dependentes, carenciadas.

Já lá vão mais de sete anos, Américo percorre as sinuosas estradas do concelho como operador da oficina móvel – que começou por ser uma parceria com a Associação de Desenvolvimento Pró-Raia e agora é só um projecto da câmara. Vai apreciando os picos de rocha, os prados, os vales pontuados por castanheiro, carvalho, pinheiro bravo. E sente-se útil – as pequenas reparações que vai fazendo podem trazer conforto, prevenir acidentes, adiar as idas para os lares.

“As aldeias estão desertas”, comentara, ainda a caminho daquela casa, no vale do Caldeirão, na margem esquerda do rio Mondego, já no Parque Natural da Serra da Estrela. “Muitas casas vazias.” A Guarda está a perder gente desde os anos 60 – foram muitos para França, para a Alemanha, para os Estados Unidos, para o Luxemburgo, para as cidades do litoral, a começar por Lisboa. “Temos velhinhos. Às vezes, parece que se lhes abre o coração. Contam-me a vida toda. Há que saber ouvi-los...”

O despovoamento, o envelhecimento e o isolamento são grandes preocupações do executivo camarário liderado por Álvaro Amaro. Já havia 166 idosos por cada 100 jovens em 2014, estimava o Instituto Nacional de Estatística. A vereadora da Acção Social, Ana Isabel Baptista, aponta para os mais críticos: “Este ano, a GNR sinalizou 116 idosos isolados, 232 sozinhos, 70 sozinhos e isolados.” Presta especial atenção a esses 418 residentes no município – fá-lo a um total de 39216 idosos em todo o país.

Fernanda Almeida mora numa aldeia atravessada por uma calçada romana e tem uma torneira a pingar na pia da cozinha. “Isto é uma cozinha antiga”, diz ela. Uma casa do século XVII, a que ela e o marido acrescentaram um piso, com uma sala de jantar/estar e quartos para eles e os filhos.

O marido era electricista, gostava de mexer na caixa de ferramentas. Foi ele quem colocou a canalização da casa que herdaram. Morreu, já lá vão 12 anos. Fernanda ficou deprimida. Ficou ela e ficou o filho que a acompanha. O corpo dela até mingou. Nunca mais voltou ao sítio. É a prova do desgosto. Desde então, precisa de quem lhe “arranje as coisas”. Socorre-se do número grátis do serviço de acção social, que regista o pedido, analisa-o e reencaminha-o a Américo. “Aqui na aldeia não há quem faça isto. Havia um rapaz, mas está na Guarda. O senhor Américo vem cá compor as coisas. Gosto muito dele. Faz as coisas perfeitas.”

Américo não fica à espera que lhe telefonem. “Vou ao encontro das pessoas”, explica. Anda de aldeia em aldeia. Tem dias certos para cada uma. “Uns esquecem-se: ‘Quem é você?’ Outros lembram-se: ‘Ah é o senhor que troca as lâmpadas.’” E vidros partidos, puxadores, fechaduras. Se for preciso, até faz puxadas de luz de um quarto para outro, muda móveis de um sítio para outro dentro de casa. Às vezes, para um idoso ficar em segurança basta garantir uma boa iluminação, alterar a disposição da mobília. Antes mesmo de ali chegar, esteve do outro lado do município, em Gonçalo, em casa de José Henriques, a mudar as lâmpadas da sala.

Se calhar vou ficar sozinho
Diz o ditado que quando a esmola é muita o pobre desconfia. E algumas pessoas têm tendência a desconfiar de quem se dispõe a não cobrar para arranjar ou substituir torneiras, canos, chuveiros, sanitas, lavatórios, autoclismos, portas, janelas, estores, persianas, esquentadores, cilindros, tomadas eléctricas, casquilhos, interruptores. “Hoje vêem na televisão falar num casal de velhinhos assaltado, amanhã ouvem falar num casal de velhinhos enganado”, compreende Américo. Quantos, com “boa aparência” e “conversa convincente e cativante”, andam para aí a fazer-se passar por funcionários da câmara, da Segurança Social, dos CTT, da EDP?

Não está inundado de pedidos. Lida com 350 a 370 por ano. “Muitos idosos têm necessidades, mas não têm a iniciativa de pedir ajuda”, já elucidara Alfredo Madeira, o chefe de divisão do departamento de desenvolvimento humano e social. “Muitas vezes, são os presidentes de junta ou as pessoas do serviço domiciliário que identificam: a torneira que está a pingar, o vidro que está partido e deixa entrar frio…”

Um estudo sobre políticas municipais – publicado no ano passado na Revista Portuguesa de Saúde Pública – chama a atenção para as precárias condições de habitabilidade dos idosos. Não só pela degradação, também pelas características das casas rurais, tendo em conta os excessos do Inverno e do Verão. Referindo-se ao Brico Solidário, as autoras desse estudo, Maria João Bárrios e Ana Alexandre Fernandes, notam que faz coincidir população maior de 65 anos com população carenciada. Não é tomar a parte pelo todo, é saber que muitos idosos gerem reformas mínimas, fruto de vidas inteiras dedicadas ao trabalho agrícola, sem descontar ou descontando muito pouco para o sistema de Segurança Social, esclarece Alfredo Madeira.

Em muitos outros municípios têm sido desenvolvidos serviços semelhantes: Figueira de Castelo Rodrigo, Vila Real, Sintra, Almada, Amadora, por exemplo. E há serviços que vão mais longe na lógica de preparar as casas de quem já foi apanhado pelo envelhecimento. A própria Guarda tem um. Se fosse preciso adaptar um quarto de banho, instalar um corrimão ou uma rampa de acesso, alargar umas portas para passar uma cadeira de rodas, Américo avisaria o serviço de acção social. Não abraça tais empreitadas. Dá lugar ao Casa+, com um apoio que pode ir até aos 3200 euros.

Da última vez que esteve em casa de Fernanda, Américo tratou de uma torneira do quarto de banho. “Olhe, quando for preciso outra já tenho”, diz-lhe agora. A missão dele é reparar. Quando é preciso substituir, a ordem é para a pessoa comprar, a menos que não possa. “Nós reciclamos. Não deitamos nada fora. Esta foi uma torneira que trouxe aí de uma casa…. A senhora quis meter uma coisa mais moderna. Eu disse: vou aproveitar, vou guardar, porque vai aparecer alguém que precisa.”

A mulher, de 62 anos, puxa Américo para o quintal, onde outra torneira verte. “Ali a sua prima anda bem?”, pergunta-lhe ele, a  descer as escadas de cimento. “Tá! Já anda à azeitona e tudo. Está a fazer fisioterapia.” Fernanda também já andou. “Apanhei uma azeitoninha, apanhei. Há lagar perto. Um senhor leva-me e traz-me o azeite. Fiz 55 litros. Ainda cá tenho mais.”

Param em frente à torneira. “Faz-me jeito no Verão”, explica ela. “Isso está só a pingar e depois o contador… caramba. Não sei. Gasto tanta água e tanta luz e não sei aonde”, continua. Ele dá um jeitinho. “Para já, não pinta. Está a ver? Mas não quero que as suas contas de água sejam muito grandes. Fica prometido que venho cá.” Ela acena com a cabeça.

Todos os gastos importam no orçamento de Fernanda. “Tenho só [pensão de sobrevivência] do meu marido. Quando ele faleceu, fiquei a receber 188 euros. Agora recebo 200. O meu filho já o meu marido o tinha reformado. É deficiente. Vivemos só com isso. E semeio a minha batatita mais o meu filho. Ponho uma hortita – couves, pimento. Apanho uma azeitoninha.”

Américo despede-se da mulher, apenas dois anos mais velha. “Então não preciso de telefonar para lá!”, diz-lhe ela. “Não, não precisa”, ri-se ele. “Afeiçoei-me muito a isto”, comenta, já a afastar-se. “A gente afeiçoa-se às pessoas. Vê-as uma vez, vê-as outra, fala com elas. Às vezes, penso: Se calhar a minha vida vai ser assim. Se calhar vou ficar sozinho. Será que alguma alma caridosa me vai dar a mão?”

Próximo domingo: Serviço descentralizado de saúde em Vinhais

Ir ao encontro das necessidades de cada idoso

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