A cada um a sua dança: três bailarinos recapitulam a de Tino Sehgal em Serralves
Boris Charmatz, Frank Willens e Andrew Hardwidge retomam à vez (Untitled), a peça em que o artista resumiu todo o século XX – antes de se despedir dos palcos para fazer a sua radical entrada no museu.
Em 2000, quando o século XXI estava a iniciar-se e com ele um outro tipo de conversa, menos sectária, entre as artes ditas materiais e as artes ditas vivas, Tino Sehgal (Londres, 1976) quis fazer o seu próprio resumo do século XX. Só se saberia a seguir, mas a peça de 55 minutos em que então compilou 20 momentos fundamentais da história da dança moderna – de Nijinsky a Xavier Le Roy, de Isadora Duncan a Anne Teresa de Keersmaeker –, também foi o fim de uma história artística e o princípio de outra.
Depois de (Untitled), o rapaz que estudou Economia Política em Berlim e Dança em Essen desistiu de ter uma carreira como coreógrafo e bailarino para fazer uma radical entrada noutro circuito, o do museu, com as suas obras totalmente fora dos cânones, impossíveis de pendurar na parede ou de integrar uma colecção particular. Mas “situações construídas” (e jamais documentadas, por vontade expressa do autor) como This objective of that object (2004), em que o visitante, cercado por um grupo de pessoas, é arrastado para a discussão que a obra tem como objectivo provocar, ou The Kiss (2007), em que um casal deitado no chão activa aquilo que nos lembramos de ter visto em obras de Rodin, Klimt e Jeff Koons com Cicciolina, não teriam sido possíveis sem a pré-história que é (Untitled). “Quando cria essa peça, o Tino Sehgal ainda está a tentar imaginar como pôr um museu em cima do palco; a seguir vai levar os saberes e os modos de fazer do palco, e em particular os da dança, para o museu”, sublinha Boris Charmatz, o instigador da tripla revisitação de (Untitled) que pode ser vista este domingo no Auditório de Serralves, a partir das 17h, integrando o ciclo Arquivar a Dança. Com ele estão dois bailarinos das gerações seguintes – Frank Willens, que andará pelos 30, e Andrew Hardwidge, que ainda não terá lá chegado –, que se sucedem em solos de 50 minutos para dar a ver como o mesmo corpus composto e dançado há 15 anos por Tino Sehgal se comporta em três corpos diferentes, cada um com a sua própria história.
Director, desde 2009, do Musée de La Danse – Centre Chorégraphique National de Rennes et de Bretagne, Charmatz tem passado os últimos anos a converter o que devia ser um organismo de produção no “cruzamento contranatura” entre um lugar destinado à conservação e uma arte condenada ao movimento. Naturalmente, quis incluir a peça com que Tino Sehgal se despediu do palco na colecção que começou a construir em Rennes: “É a peça perfeita. Por um lado porque é um pequeno museu da dança – um museu portátil, que se pode levar para qualquer lugar. Por outro, porque é um early work que nos permite reconstituir o percurso muito particular que levou o Tino Sehgal à Bienal de Veneza, à Tate, à Documenta ou mesmo ao Festival de Avignon, que em 2011, quando eu fui o artista associado, coproduziu um trabalho que amo enormemente, This Situation.”
Com (Untitled), é outra história, uma história em que o coreógrafo e bailarino francês se implicou fisicamente – apesar de apenas conhecer a peça “de ouvir falar”. “O que se dizia de (Untitled) é que era um passeio pelo século XX – um passeio que o Tino fazia completamente nu, e ao longo do qual ia encontrando figuras fundadoras como o Nijinski, o Ballanchine, a Trisha Brown, o Jan Fabre, a Pina Bausch e, lá no fim, aqueles que foram os mestres dele, o Jérôme Bel e o Xavier Le Roy… Também se dizia que ele não dançava muito bem.”
Confirma-se. E é mais ou menos irrelevante: “Isto é um corpo individual a dar conta dos vários momentos de uma história colectiva. Se dança ou não muito bem é secundário. Talvez nós dancemos melhor do que ele – mas o que é fundamental nisto é que o dançamos a ele. Não se tratou de retomar o Nijinski, o Ballanchine, a Trisha Brown, o Jan Fabre e a Pina Bausch – tratou-se de retomar o Tino Sehgal que em 2000 os evocava, o Tino Sehgal que em 2000 se apropriava de todas essas referências em parte reais, em parte fantasmáticas.”
Dançar tudo
(Untitled), diz Charmatz, torna-se “outra coisa” nestes corpos que não são o de Sehgal mas que estiveram em contacto com ele durante o processo de transmissão da peça. “Para minha surpresa, a transmissão da peça foi feita da forma mais tradicional possível: foi uma transmissão oral, física, muito próxima dos métodos do ballet clássico, quase como se estivéssemos na Ópera de Paris. Passámos muito tempo com o Tino no estúdio e ele explicou-nos a partitura gesto a gesto. Para alguém que se passou para o circuito da arte contemporânea como ele, estas práticas são bizarramente obsoletas.”
Certo, Tino Sehgal não se passou completamente para o circuito da arte contemporânea. Continua a recusar qualquer registo das suas obras, catálogos incluídos – de resto, como registar um acontecimento inconstante, intangível e multiforme como These Associations, em que pôs 70 intérpretes a interagirem diariamente com os visitantes no Hall das Turbinas da Tate Modern? –, o que as torna ostensivamente inconformes a um mercado definido como os outros por acções de compra e venda (e, no entanto, algumas peças de Tino Sehgal podem ser, e já foram, adquiridas). Mas também é certo que recusa ser chamado “performance artist”: “Nem pensar. O lugar do meu trabalho é no museu.”
(Untitled), sendo o momento imediatamente anterior a essa passagem para o museu que Charmatz acha brilhante como “um cavalo de Tróia”, é já uma colecção particular. “A história da dança que ele apresenta é muito parcial e muito criticável. Não é uma história da dança politicamente correcta que se abre ao pós-colonial, ao queer, ao multicultural; é a afirmação muito consciente de um arquétipo ocidental, branco, masculino, no fundo o arquétipo dominante.” Boris Charmatz faria, claro, outro museu, embora também se reveja parcialmente neste: “Ele escolheu 20 coreógrafos para o século XX, eu escolheria mil. Acredito numa história da dança muito mais colectiva. Mas dançar esta peça é um prazer para um bailarino. Ainda que possamos achar que falta este coreógrafo ou que aquele está a mais... Como intérprete, sempre gostei de me aproximar de todas as formas, mesmo das impossíveis, como o butôh.” Há, explica, fragmentos de (Untitled) que lhe são mais familiares – “Já tinha feito o L’après-midi d’un faune, trabalhei os solos da Isadora Duncan com uma das suas grandes especialistas, a Elizabeth Schwartz… Na verdade é mais complicado quando sei exactamente como fazer: quando chego ao momento Anne Teresa de Keersmaeker, com quem dancei o Partita 2, é terrível para mim, até tenho vergonha…”. Também haverá os momentos que são terríveis para Frank Willens e Andrew Hardwidge – e não coincidem. “O corpus impõe-se ao corpo, mas não totalmente. É estranhíssimo, porque objectivamente fazemos os três a mesma coisas, mas não só sobressaem as diferenças entre os corpos como sobressaem as diferenças entre os cérebros: a forma como cada um entende esta história, como cada um a executa, a partir do lugar de onde vem e daquilo em que se tornou.”
No final dos 50 minutos de cada um dos solos, o que fica é mesmo isso: o tal passeio que cada um tem de fazer sozinho, sabendo que vai fracassar. “O mais admirável aqui é reiterar a vontade que o Tino Sehgal teve de dizer ‘sou eu sozinho a fazer isto, nu, sem meios’ enquanto ao lado talvez haja uma exposição enorme sobre as vanguardas do século XX que custou milhões. O jogo é esse: sozinho, nu, sem meios, sabes que vais falhar. É impossível seres ao mesmo tempo um bom bailarino de butôh, um bom precursor da dança moderna do início do século XX, um bom intérprete de Merce Cunningham e um bom performance artist dos anos 70. É impossível fazer tudo. É impossível dançar tudo”
Museu portátil na mala, trânsito infernal no aeroporto a caminho da porta de embarque do voo que o trará a Serralves, Boris Charmatz continua a adorar ser o agente desta missão impossível.