Com a guerra instalada em Brasília, Supremo Tribunal faz figura de árbitro
Terça-feira, Brasília desafiou a incredulidade do país três vezes no mesmo dia, com reviravoltas, jogadas políticas e violência física em torno do processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff.
O Brasil não é para principiantes, dizia Tom Jobim. A crise política em Brasília é uma bossa velha, mas terça-feira foi um dia que só não surpreendeu os mais cínicos. Começou com uma "DR" (discussão de relação conjugal) entre Dilma Rousseff e o seu vice e sucessor eventual em caso de impeachment Michel Temer, que se queixou por carta do papel "decorativo" e "acessório" a que ele e o seu partido, o PMDB, têm sido relegados em cinco anos de aliança governativa com o PT.
Enquanto a opinião pública tentava processar mais um desdobramento na crise do impeachment e antecipar vitórias e derrotas, a Câmara dos Deputados deu início a uma votação em clima de faroeste para eleger os parlamentares que irão integrar a comissão especial encarregada de avaliar se existem bases para suspender o mandato presidencial de Dilma.
Por decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – que accionou o processo de impeachment no parlamento motivado pela vingança pessoal –, a votação foi secreta e sem debate, e a oposição ao governo apresentou uma lista alternativa, que acabou por derrotar a lista oficial, indicada pelos líderes partidários, como mandam os regulamentos.
Houve confrontos entre deputados pró e contra o impeachment, que tiveram de ser separados pelos colegas. Urnas electrónicas foram destruídas ou desligadas. Parlamentares pró-governo tentaram obstruir o acesso às cabines de votação. As forças de segurança do Congresso foram chamadas para restituir a ordem. Deputados sorridentes tiraram fotos com um boneco do ex-presidente Lula da Silva vestido com uma farda prisional – o "Pixuleco", como é conhecido, tornou-se presença constante nas manifestações de rua contra o governo e o PT no último ano. Uma massa de parlamentares celebrou a vitória da lista da oposição cantando na sala do plenário. "O dia hoje está ganho, senhor presidente", gritou um deputado ao microfone, dirigindo-se a Eduardo Cunha. "Pode encerrar a sessão. Para o governo assimilar a derrota."
Mas o que aconteceu poucas horas depois, de noite, não corroborou a derrota do governo, e, sim, a volatilidade da realidade política brasileira. Um juiz do Supremo Tribunal Federal suspendeu provisoriamente o processo do impeachment durante uma semana. Brasília desafiou a incredulidade do país três vezes no mesmo dia.
"Ontem foi um dia em que se produziu um encontro de três coisas: a incompetência da Presidência da República em governar, a chantagem do presidente da Câmara e a hiper-competência das instituições de aplicação da lei", resume ao PÚBLICO Oscar Vilhena Vieira, director da Escola de Direito de São Paulo (FGV Direito – SP) e professor de direito constitucional.
O sistema presidencialista brasileiro faz com que seja difícil para qualquer governo ter uma maioria parlamentar consistente e por isso tem de formar alianças. A actual crise política tem origem na forma como o PT, que venceu as eleições presidenciais dos últimos 12 anos, tem aplicado esse modelo de partilha do poder, dizem os analistas.
"Um sistema eleitoral multipartidário e democrático pressupõe quase sempre que você é obrigado a formar coligações em torno de programas e objectivos comuns. Só que a concepção de presidência do PT não aceita isso. Ele aceita o apoio e a submissão de determinados partidos desde que eles se comportem como siglas de aluguer", diz José Augusto Guilhon Albuquerque, professor titular de Ciências Políticas e de Relações Internacionais da Universidade de S. Paulo.
O escândalo do Mensalão, como ficou conhecido o esquema de subornos praticado pelo governo de Lula para comprar os votos de parlamentares, expôs o "fisiologismo" do PT, a prática de trocar favores políticos por dinheiro. A ausência de uma base parlamentar leal explica por que é o governo tem tido tantas dificuldades em encontrar apoio dentro do Congresso quando precisa, como na aprovação de um pacote de medidas de austeridade para tentar controlar o défice, que está paralisado. Isso também explica por que é que Cunha decidiu que a votação de terça-feira não seria aberta: para proteger a base supostamente aliada do governo – "que só está lá por razões fisiológicas", como diz José Augusto Guilhon Albuquerque – de eventuais represálias do Planalto.
Perante a guerra que se instalou entre executivo e legislativo, o poder judicial exerce uma função moderadora, nota Oscar Vilhena Vieira. "O Supremo tem demonstrado capacidade para corrigir os erros dos demais poderes. Não tenho dúvidas de que fará o mesmo agora", diz.
O juiz Luiz Eduardo Fachin suspendeu o andamento do processo de impeachment até à próxima quarta-feira depois de analisar uma providência cautelar interposta pelo Partido Comunista. A decisão final será tomada colegialmente pelos juízes do Supremo na próxima quarta-feira. Apesar de a votação de deputados para a comissão especial do impeachment não ter sido anulada pela decisão do juiz Fachin, é possível que o Supremo determine que todas as votações relacionadas com o processo sejam abertas, e não secretas, o que levaria a uma repetição da eleição de terça-feira.
A decisão do Supremo, defende Oscar Vilhena Vieira, "vai sanear este processo para que possamos navegar em águas juridicamente um pouco mais estáveis".
Processo contra Eduardo Cunha novamente adiado
O presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Eduardo Cunha, conseguiu mais uma vez adiar a abertura de uma investigação parlamentar que poderá levar à suspensão do seu mandato, cuja votação estava prevista para a tarde de quarta-feira.
Durante a reunião do Conselho de Ética encarregado de analisar o processo contra Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados e os seus aliados conseguiram afastar o deputado que estava à frente do processo, Fausto Pinato, do PRB. Fausto Pinato foi substituído por José Geraldo, do PT, o que é mais desvantajoso para Cunha.
Há mais de um mês que o Conselho de Ética tenta dar início ao processo interposto pelos partidos PSOL e Rede pedindo a suspensão do mandato de Cunha, mas as sessões têm sido sucessivamente encurtadas ou adiadas graças a manobras promovidas pelo presidente da Câmara dos Deputados, que é suspeito de envolvimento no escândalo de corrupção da Petrobras e que está a ser investigado pelo Ministério Público.