Putin acusa Turquia de ser "cúmplice de terroristas" ao abater caça russo
Aviões turcos abateram um Su-24 da Rússia na fronteira com a Síria. Ancara diz que o caça violou o seu espaço aéreo e Moscovo garante que o aparelho não saiu da Síria.
O caos na Síria provocado por anos de uma brutal guerra civil e meses de bombardeamentos aéreos lançados por vários países, com motivações distintas, atingiu esta terça-feira um novo ponto de tensão com consequências imprevisíveis.
Nas primeiras horas da manhã, dois aviões F-16 turcos abateram um caça Su-24 russo na fronteira entre a Turquia e a Síria, e o resto do dia transformou-se num rodopio de reuniões de emergência e conversas com diplomatas um pouco por todo o mundo, num esforço para impedir a abertura de um novo conflito que pode comprometer de vez os pedidos do Presidente francês, François Hollande, para uma frente comum contra o autoproclamado Estado Islâmico, após os atentados terroristas de 13 de Novembro em Paris.
Foi o primeiro caça russo a ser abatido naquela região desde o início da campanha de bombardeamentos na Síria ordenada pelo Presidente Vladimir Putin, em Setembro, mas essa nota passa para segundo plano quando se percebe que foi, acima de tudo, um ataque de um membro da NATO contra um avião militar da Rússia – o primeiro de que há registo, pelo menos, desde o fim da Guerra Fria.
O que se sabe ao certo é que os F-16 turcos abateram o Su-24, e que o caça russo caiu em território sírio, muito perto da fronteira com a Turquia, no extremo norte da província de Latakia. Mas a partir daí cada país apresenta a sua versão – Ancara garante que o caça russo violou o espaço aéreo turco e que os seus pilotos avisaram dez vezes durante cinco minutos antes de terem lançado o ataque (informação confirmada pelo Pentágono); Moscovo diz que consegue provar que o seu avião nunca saiu do espaço aéreo sírio, onde estava integrado na campanha de ataques contra os extremistas do Estado Islâmico e os vários grupos rebeldes que querem derrubar o Presidente sírio, Bashar al-Assad.
O piloto russo e o seu navegador conseguiram ejectar-se, mas o destino de ambos era ainda incerto ao início da tarde desta terça-feira. Num vídeo que foi posto a circular na Internet, membros da milícia turcomana Alwiya al-Ashar surgem à volta do corpo de um homem que dizem ser um dos pilotos russos – um porta-voz do grupo disse à CNN Turquia que os dois foram abatidos quando desciam de pára-quedas. Um fonte militar russa não identificada confirmou à Reuters a morte de um dos pilotos e evocou a hipótese de uma operação de resgate para recuperar o segundo piloto.
A milícia Alwiya al-Ashar é apoiada por Ancara e combate contra as forças do Presidente sírio, ao lado de inúmeros grupos rebeldes, dos mais moderados aos jihadistas da Frente al-Nusra, o braço da Al-Qaeda na Síria – todos eles adversários da Rússia, que está na Síria para ajudar o Presidente Bashar al-Assad.
Numa primeira reacção, cautelosa, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, sublinhou que era preciso esperar por mais informações para se perceber qual seria a resposta da Rússia. "Temos a certeza de que o avião estava em espaço aéreo sírio, sobre o território sírio, mas seria errado fazer suposições neste momento. Temos de ser pacientes. É um incidente muito sério, mas não é possível dizer mais nada sem termos toda a informação", disse Peskov, adiantando que o Presidente russo iria falar mais tarde, antes de um encontro com o rei Abdullah da Jordânia, na estância turística de Sochi, na Rússia.
Quando chegou a sua vez, Vladimir Putin não poupou nas palavras: afirmou que o abate do caça russo terá "consequências significativas" e classificou o caso como "uma facada nas costas dada pelos cúmplices dos terroristas", na declaração mais dura dos últimos tempos contra o Governo de Recep Tayyip Erdogan.
Da parte turca, apenas uma declaração, repetida por vários responsáveis, resumida pelo primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu e repetida ao final do dia pelo Presidente Erdogan: "A Turquia tem o direito de tomar as medidas necessárias contra a violação das suas fronteiras."
Lavrov desmarca visita à Turquia
Já depois de a Turquia ter pedido aos seus parceiros da NATO que discutissem a situação numa reunião extraordinária, a Rússia desmarcou uma viagem do seu ministro dos Negócios Estrangeiros a Ancara, que estava prevista para quarta-feira.
"O Presidente disse com clareza que isto não pode deixar de afectar as relações entre a Rússia e a Turquia. Neste contexto, foi decidido cancelar o encontro entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia e da Turquia, que estava marcada para amanhã [quarta-feira], em Istambul", disse o ministro russo Sergei Lavrov. Os cidadãos russos foram desaconselhados a viajar para a Turquia.
Apesar da retórica inflamada – e das referências alarmistas em vários títulos de jornais online e nas redes sociais sobre a possibilidade de uma terceira guerra mundial –, muitos analistas acreditam que o incidente não terá repercussões graves.
Num texto publicado no site do jornal britânico The Independent, Shashank Joshi, da Universidade de Oxford, sublinha "o contexto da melhoria de relações diplomáticas com Moscovo e o extraordinário risco de escalada da situação", para defender que "os aliados ocidentais da Turquia deverão reagir com a extrema cautela".
"A NATO irá certamente enviar uma nova nota de protesto sobre a aparente intrusão no espaço aéreo turco, mas os aliados ocidentais da Turquia vão ter cuidado para não pressionarem a Rússia com muita firmeza, para não pôr em risco aquilo que vêem como ganhos diplomáticos", escreve Shashank Joshi, recordando a recente reaproximação entre os presidentes francês e norte-americano e o Presidente russo após os atentados terroristas em Paris, e apesar de Barack Obama afastar para já qualquer aliança com Vladimir Putin.
De Washington, Obama fez chegar a mensagem de que a Turquia tem o direito de defender a sua integridade territorial mas sublinhou que o melhor a fazer para acalmar a situação é que turcos e russos falem entre si para esclarecerem o que se passou e para que sejam "tomadas medidas para evitar uma escalada".
Também o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, pediu “medidas urgentes para acalmar a tensão”, incluindo uma investigação que “permita clarificar o que se passou neste incidente e evitar que se volte a repetir”. E no final da reunião da NATO, o secretário-geral Jens Stoltenberg, apelou “à calma” para travar a escalda da tensão entre os dois países, para depois reafirmar que a Aliança Atlântica "está solidária com a Turquia".