A resistência do Islão ao secularismo europeu

A integração é uma via com dois sentidos. Só pode ter sucesso se ambos os lados se empenharem nela.

1. O Islão é uma religião, mas também uma civilização ou cultura. Fornece uma visão do mundo aos que são educados num ambiente cultural e / ou religioso islâmico. Tal como o Cristianismo e a actual Europa / Ocidente secular, está imbuído de uma visão universalista. Ambas incutem um espirito missionário e proselitista ao ser humano, seja na versão religiosa ou secular. Não encontramos paralelo noutras grandes civilizações, como a chinesa, a japonesa ou a hindu. Em toda a história humana, apenas duas grandes civilizações criaram uma visão do mundo que transcende os seus particularismos e o grupo humano onde surgiram. Ambas se habituaram a pensar os seus valores como válidos para toda humanidade. E a expandi-los para o exterior. Ao contrário do que o europeu / ocidental poderia supor, não há uma história universal única com as épocas e os marcos históricos usuais para este. Há uma outra história universal paralela, em competição pelo ser humano, difundida em contexto cultural-religioso islâmico, com a qual não está familiarizado. Conhece-la é essencial para se perceber a resistência de muitos dos que estão impregnados de culturas islâmicas aos valores seculares europeus.

2. O livro de Tamim Ansary, Destino Interrompido (Destiny Disrupted: A History of the World Through Islamic Eyes, PublicAffairs, 2009) é um bom ponto de partida. Permite fazer um contraponto entre duas histórias universalistas e as visões do mundo que lhe estão subjacentes. A versão europeia / ocidental é-nos largamente familiar. Está incorporada na nossa própria identidade individual e colectiva. É através dela que interpretamos o mundo e a evolução do ser humano. A crença europeia / ocidental na razão, na ciência, no progresso, na evolução do ser humano vem daí. Adquire pleno sentido face a este passado. A Europa / Ocidente tornou-se mais poderosa e influente no mundo à medida que a secularização e as Luzes avançaram, a partir da segunda metade do século XVII, e, sobretudo, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Sobre o longo período medieval — a época de maior influência do Cristianismo na Europa —, foi lançado o opróbrio das trevas e do atraso civilizacional. Aos olhos europeus, esta leitura é normalmente convincente.

3. Quando vista a partir de um olhar cultural-religioso islâmico, a história humana adquire outro significado e matizes. As épocas e marcos históricos não são os mesmos. Mesmo se coincidem têm conotações diferentes. Algumas observações importantes. A Antiguidade clássica, com um enorme prestígio na Europa e Ocidente desde o Renascimento, não tem essa conotação positiva no Islão. O período medieval, sob o olhar europeu, tende a ser visto como uma época de atraso ou até de retrocesso face à Antiguidade. No Islão, especialmente entre os árabes, a conotação é inversa. É a época de maior esplendor, onde surgiu o Califado, símbolo da vocação universalista, da unidade da umma muçulmana, da conformidade com a vontade de Alá. O califa é o sucessor do Profeta Maomé, o comandante dos crentes. Nesta visão do passado, a secularização e as Luzes da Europa e Ocidente, ocorridas a partir da segunda metade do século XVII e XVIII são, paradoxalmente, um novo período de trevas. A imagem é a da penetração dominadora dos europeus, de afastamento dos valores universalistas do Islão, de corrupção dos ensinamentos do Profeta. O mundo contemporâneo não está agora imbuído da ideia de progresso. Nem o moderno é melhor do que o antigo. Nem as formas de vida sociais e políticas actuais são superiores às antigas. Pelo contrário, o Império Otomano, pela sua vastidão, foi o último onde o crente muçulmano tinha a sensação de viver um universalismo islâmico.

4. A resistência do Islão aos valores europeus — especialmente à ideia de Estados e sociedades largamente seculares —, provavelmente só tem sentido à luz da sua própria história, simultaneamente paralela e concorrente, imbuída de uma vocação universalista. Os actuais valores seculares europeus, herdeiros do universalismo cristão, estão no cerne dessa competição / colisão pelo ser humano. Importa tentar entender como, de um ponto de vista muçulmano, a questão é percebida. Vou utilizar uma fatwa – opinião teológica-legal –, para essa análise. É particularmente interessante a análise da fatwa “Como o Islão vê o secularismo” de Yusuf al-Qaradawi, um prestigiado ulema próximo da Irmandade Muçulmana do Egipto. (Um perfil biográfico pode ser visto no site da Universidade de Harvard, no Religious Literacy Project da Harvard Divinity School). É também Presidente do Conselho Europeu para a Fatwa (The European Council for Fatwa and Research), um organismo, tal como o nome sugere, dirigido aos muçulmanos que vivem na Europa. O texto da fatwa (uma versão em língua inglesa está disponível na IslamicWeb, http://islamicweb.com/beliefs/cults/Secularism.htm) é retirado da tradução que se encontra no meu livro Islamismo e Multiculturalismo. As Ideologias Após o Fim da História (Almedina, 2006, pp. 307-308.).

5. No já referido texto, Yusuf al-Qaradawi afirma o seguinte: “O secularismo pode ser aceite numa sociedade cristã mas nunca poderá ter uma aceitação geral na sociedade islâmica. O próprio Novo Testamento divide-se em duas partes: uma para Deus, ou religião, a outra para César, ou o Estado: ‘Dá a César o que pertence a César e dá a Deus as coisas que pertencem a Deus’ (Mateus, 22:21). Desta forma, um cristão pode aceitar o secularismo sem quaisquer remorsos de consciência. Para as sociedades muçulmanas, a aceitação do secularismo significa algo totalmente diferente. Como o Islão é um sistema abrangente de Ibadah (oração) e Sharia (legislação), a aceitação do secularismo significa o abandono da Sharia, uma negação da orientação divina e uma rejeição das injunções de Alá. É uma falsificação total afirmar que a Sharia não está adaptada às exigências da nossa época.” Acrescenta ainda Yusuf al-Qaradawi, “o secularismo é compatível com o conceito ocidental de Deus, que afirma que após Deus ter criado o mundo, Ele deixou-o para depois o observar. Neste sentido, a relação de Deus com o mundo é como a de um relojoeiro com um relógio: este fá-lo e depois deixa-o a funcionar”, sem interferir mais nele. “Este conceito foi herdado da Filosofia grega, especialmente de Aristóteles, que defendeu que Deus nem controla, nem sabe nada deste mundo.”

6. Não é essa a concepção de Deus no Islão, afirma Yusuf al-Qaradawi. “[...] Alá Todo-Poderoso revelou a Sua divina condução da humanidade, tornou certas coisas permissíveis e outras proibidas, ordenou às pessoas para observarem as Suas injunções e julgarem de acordo com elas. Se eles rejeitam esta orientação e seguem os caprichos e leis feitas pelo homem, estão a cometer transgressão contra as leis de Alá.” O teor desta argumentação merece uma reflexão. Primeiro, mostra um conhecimento do Cristianismo superior àquele que, normalmente, existe nos europeus sobre o Islão, sejam cristãos religiosos ou seculares. Depois, constata-se existir uma persuasiva e inequívoca rejeicção do secularismo como modelo de boa sociedade a seguir. Aspecto importante: os argumentos usados têm significado e ressonância no crente e / ou nos que foram socializados com valores islâmicos. Na óptica de Yusuf al-Qaradawi, o secularismo até se poderá compreender no Cristianismo, por razões teológicas (o Evangelho de São Mateus) e de experiência histórica negativa das sociedades europeias (a inquisição). Não tem cabimento no Islão. A concepção de Deus do Cristianismo — na qual este seria uma espécie de “relojoeiro”, que criou o mundo e o homem, mas não interfere nele — é estranha ao Islão. O muçulmano, tem regras intemporais dadas por Alá para as diferentes esferas da vida humana, pessoal, social e política.

7. A partir da segunda metade do século XVII, a pacificação que a Europa encontrou, para as suas próprias disputas religiosas, foi a tolerância combinada com a secularização. Na Europa do século XXI, a secularização — nas várias formas que adquiriu pelas próprias especificidades nacionais —, é um princípio estruturante. As sociedades democráticas e pluralistas alicerçam-se nele. Permite a liberdade religiosa e a pluralidade de estilos de vida, da qual beneficiam crentes e não crentes. Tudo isto decorre da aceitação de uma separação fundamental: a da esfera religiosa da esfera política. Implica aceitar que é a vontade democrática do povo e não a vontade divina, seja qual for a interpretação feita desta, a legitimidade última do poder e a fonte da legislação. Nesta sociedade, a política é o terreno das ideias e ideologias seculares. Não de ideologias derivadas de textos religiosos, sacralizadas e colocadas acima das ideias humanas. No caso dos muçulmanos europeus, só estes podem dizer em que medida se revêm, ou não, na interpretação que Yusuf al-Qaradawi faz do secularismo. Percebe-se é que este — e o Conselho Europeu para Fatwa —, procuram difundir uma visão de resistência / rejeição a esta. Não ajuda à integração nas sociedades seculares europeias. Não facilita o sentimento de pertença e de valores partilhados. Impulsiona o separatismo cultural e a lógica do gueto. (Em alguns, até as dinâmicas do radicalismo religioso e / ou político.) Nutre a desconfiança do resto da sociedade, dando argumentos aos que procuram pretextos para a culpabilização colectiva dos muçulmanos. A integração é uma via com dois sentidos. Só pode ter sucesso se ambos os lados se empenharem nela.

Investigador

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