Adele chora e deixa chorar
25 é esta sexta-feira revelado ao mundo num dos lançamentos mais aguardados dos últimos anos. Adele, elevada a estrela planetária com o anterior 21, curou os seus amores e canta agora com o mesmo coração nas mãos sobre a irreversível chegada à idade adulta.
A uma grande distância dos 400 milhões de visualizações do novo vídeo de Adele, Hello, circula no inevitável YouTube um outro vídeo com uns mui honrosos seis milhões de visitas. São uns curtos 11 segundos em que, numa eficaz montagem, Lionel Richie telefona à cantora inglesa e assim que lhe canta o seu “hello” ela desliga-lhe a chamada com um desdém que mata qualquer hipótese de reconciliação. Lionel, como não custa a compreender, fica de rastos.
É uma piada, claro. E, ao mesmo tempo, não é apenas uma graçola bem executada. Desde que Adele, über fenómeno da pop mundial, deu a conhecer o single de apresentação do seu terceiro álbum, lançado esta sexta-feira, os dois grandes temas levantados pela sua canção foram precisamente Lionel Richie e a forma como desliga o telefone no vídeo de Hello – uma desenxabida balada, verdadeiro balde de água gélida para quem torcia por um regresso da cantora inflamado pelo seu lado soul/r&b. E isto porque é impossível a alguém nascido antes de Adele Adkins (1988) ouvir a cantora sem activar a memória do Hello de Richie (1984). Tal como foi impossível conter a reacção das redes sociais ao uso de um flip-phone, apenas para efeitos de dramatismo de uma chamada deitada abaixo – dificilmente poderá haver fúria ou desprezo em pressionar firmemente o botão “desligar”. Ambas as coordenadas parecem, assim, apontar exactamente para o mesmo sítio: o passado.
Hello recentra Adele como cantora protótipo e modelo de uma geração de ouvintes e estrelas de domingo à noite formatadas pelo sucesso do formato televisivo dos concursos de talentos. Longe das sombras soul-gospel vitaminadas com que 21 fora apresentado, graças a Rolling in the Deep (e que alastrava ao excelente Rumour Has It), o primeiro sinal do novo 25 aponta antes para o tempero dramático em que Adele é exímia e que serve de plataforma perfeita para o seu espraiamento vocal. O que funciona na cantora é o facto de investir esta voz que parece não ter fim de uma aparente vulgaridade que a aproxima das multidões em vez de a afastar. E essa é uma imagem ainda mais magnética: Adele tem o pedestal à sua frente e escolhe não trepar lá para cima.
Tanto assim que após os impressionantes 30 milhões de álbuns vendidos de 21, em alturas de pronunciado declínio da indústria discográfica, Adele nem sequer se entregou a gloriosas digressões sem fim à vista. Pelo contrário, por aconselhamento médico, as muitas datas previstas para 2011 foram substituídas por uma cirurgia ao aparelho vocal na sequência de uma hemorragia e, aos poucos, foi desaparecendo mediaticamente – excepção feita à interpretação de Skyfall, tema para a banda sonora de um 007, na cerimónia dos Óscars de 2013, em que confirmava a sua impecável colagem ao molde de diva.
Diva relutante
Uma diva sempre relutante, ainda assim. Segundo confessou recentemente a Jon Pareles, do New York Times, “se quisesse ser apenas famosa, ser uma celebridade, então não faria música”. “Tudo aquilo que me ofereceram provavelmente far-me-ia mais famosa do que a minha música. Anúncios, ser a cara de algumas marcas, vernizes para as unhas, sapatos, malas, linhas de vestuário, cadeias de beleza, produtos para os cabelos, participar em filmes, dar a cara por um carro, desenhar relógios, cadeias de restaurantes, edifícios, companhias aéreas, contratos para livros. Ofereceram-me de tudo. Mas eu quero fazer algo. Não quero ser o rosto de nada.”
E, portanto, não querendo invadir a vida pública ao associar-se a todas as marcas e mais algumas – de caninos afiados na esperança de abocanhar e explorar a aura de girl next door de fama planetária que a torna demasiado atraente para qualquer departamento de marketing –, Adele fez exactamente o contrário. Recolheu-se, teve um filho, preferiu andar a passear por parques, museus e centros comerciais, duvidando até que fizesse sentido regressar aos discos quando a sua vida mudara tanto e de forma tão drástica. Era-lhe imperioso mergulhar na realidade, num dia-a-dia mundano e pouco espectacular, não fosse desligar-se de maneira irremediável da trivialidade que lhe alimenta as canções. “Se fosse escrever sobre ser famosa – isso seria entediante”, disse ainda ao New York Times. E essa condição, convenhamos, seria de reduzido apelo universal.
Em vez de um lugar destacado e de ostentação de uma vida anormal e invejável, de ascensão vitoriosa a partir do nada, construída a partir de um ninho working class, apoiada apenas no seu talento e fazendo-se ouvir quando os números da balança ao pesar-se não a favoreciam como modelo pop desenhado para conquistar as massas, Adele aponta num quase impossível sentido contrário, ao fazer crer que continua a ser parte da multidão e a querer confundir-se com ela, como se pudesse ignorar o facto de se ter tornado uma celebridade. De certa forma, parece colocar-se no mesmo lugar do seu público quando diz saber que uma canção lhe ganha a confiança no exacto momento em que, ao cantar, não controla o choro que dela se apodera. E isso, convenhamos, acontecerá sempre mais facilmente com uma balada épica e chorosa a tresandar de amores mais ou menos carnais – o caminho seguido por When We Were Young, escrita com Tobias Jesso Jr., segundo single de 25 – do que com um tema movido por uma batida que sacuda mais os quadris do que as glândulas lacrimais.
Hello?
Apesar da esmerada discrição que Adele tenta impor à vida pública, cada um dos seus álbuns abre a porta, com visível generosidade, à sua biografia. Nem que seja pela partilha evidenciada pelos títulos dos seus álbuns – 19, 21 e agora 25 – remetendo sempre para a idade em que os compôs. 25, lançado quando alcançou já os 27, é uma reflexão cantada, segundo a própria, sobre a consciência da chegada definitiva à idade adulta. Foi há exactamente dois anos que Adele deu à luz, mas foi também nesse período que percebeu a nostalgia que se abatia sobre si. Enquanto 21 era um assumido disco de ruminação na dor de uma relação estilhaçada, 25 debruça-se e confronta-se com uma adolescência morta e enterrada. When We Were Young, segundo tema tornado público e segunda balada insuflada a transpirar do novo disco (gravada, vá-se lá perceber, num piano de Philip Glass), carrega nesse apego melancólico ao passado e a um tempo concreto em que a intensidade colocada em cada acontecimento é sempre incontida.
When We Were Young, tal como Hello, é canção apontada à comoção e à hipótese aparentemente possível de que qualquer um pode cantá-la. É nesse campo que Adele joga e a prova da eficácia destas canções universais comprova-se em esforço: os downloads pagos de Hello na primeira semana ultrapassaram um milhão só nos Estados Unidos e dezenas de versões (de anónimos casais à interpretação de Demi Lovato no Seattle’s Fall Ball que, num par de dias e numa deficiente gravação amadora, foi vista cinco milhões de vezes) inundaram a net não escondendo o quanto as canções de Adele são imediatamente reclamadas pelo seu público. De forma pouco acidental, o primeiro cheirinho de 25 foi feito anonimamente com um breve excerto de Hello exibido como anúncio televisivo no intervalo do X Factor britânico de 18 de Outubro. Ouvia-se apenas a voz de Adele (sem estar identificada) cantando Hello, it’s me / I was wondering if after all these years you’d like to meet – como se respondendo ao “hello, is it me you’re looking for?”, de Lionel Richie. Foi suficiente. A partir daí, como dizia o site i-D, a internet quase foi abaixo.
Desde então, a informação e o acesso à música de 25 têm sido gerido de forma cirúrgica. Escassas entrevistas escolhidas a dedo (New York Times, Rolling Stone, i-D e Apple Music), pouquíssimas pistas sobre a sonoridade impressa no novo disco e a criação de um ansioso ambiente de antecipação da música quase a ser desvendada que não se via há muitos anos. Se Björk ou Madonna se viram obrigadas a antecipar lançamentos depois de os respectivos álbuns serem partilhados livremente na net, no caso de Adele o controlo tem sido tão meticuloso que os jornalistas só terão acesso ao álbum na data de lançamento ou na eventualidade de algum leak boicotar a construção deste momentum, e os sites de streaming, hoje vistos como ferramentas fundamentais de escuta, desconheciam há poucos dias se e quando poderiam contar com 25 nas suas plataformas.
O mais curioso em tudo isto é que Adele, apesar da deriva musical na direcção de uma pop global (semelhante à de Taylor Swift com a country) que a afastou da sonoridade soul/r&b para a qual tinha sido puxada pela sua descoberta de Amy Winehouse – foi graças a Frank que a cantora arriscou escrever as suas primeiras canções –, parece despreocupada com o pulsar do mundo lá fora. Bastante alheada das redes sociais, Adele parece pertencer a um outro tempo e de seduzir, involuntariamente, com essa pouco sôfrega forma de viver a sua carreira. E, como relatava a i-D, de alguma maneira Adele parece cumprir o seu sonho de infância de curar corações. Primeiro, em resposta à morte dos avós maternos, pensou que seria cirurgiã. Afinal, tomou o caminho das canções feitas para curar dores da alma e guiada por esta ideia de que, quando canta Adele chora. Damon Albarn, que ainda tentou compor para 25, desistiu por a achar demasiado insegura e middle of the road. Mas parece ser precisamente isso a levar milhões a querer chorar com ela.