Arquivada queixa-crime contra lar que deixou idoso com demência "fugir"

Idoso que desapareceu a 11 de Junho de 2014 nunca mais foi encontrado. Ministério Público diz que, se para o desaparecimento contribuiu uma violação dos deveres de vigilância do lar, essa questão terá de ser julgada num tribunal cível.

Foto
Idoso desapareceu em Junho de 2014 de um lar na Pontinha, arredores de Lisboa RUI GAUDÊNCIO

Há cerca de um ano e meio, a 11 de Junho de 2014, José Carlos Fernandes recebeu um telefonema do lar onde o seu pai vivia informando-o de que o idoso, de 82 anos, tinha “fugido”. O filho apresentou queixa-crime contra a instituição por crime de exposição ou abandono. O Ministério Público (MP) do Tribunal de Loures arquivou o inquérito, dizendo que não houve crime e que, se tiver havido falta de vigilância, esta é uma questão cível e não criminal. José António Fernandes continua desaparecido.

Menos de um mês depois de ter entrado no lar, José António Fernandes desapareceu da Casa de Repouso Rio Tejo, na Pontinha (arredores de Lisboa). Tinha-lhe sido diagnosticado “síndrome demencial” e o filho, José Carlos Fernandes, funcionário da Câmara de Lisboa, informou, na altura, o lar de que o pai não estava apto a sair sozinho. A instituição informou-o então que não tinha funcionários suficientes para o levar à rua. Algumas vezes, o pai, um bombeiro reformado, disse-lhe ao telefone que tinha caracóis nos bolsos, o que, para o filho, significava que o pai saía para o exterior, contou na reportagem Perdeu-se o pai de José Carlos, que saiu no PÚBLICO a 2 de Novembro de 2014 e que foi distinguida com 17.º Prémio AMI ­— Jornalismo Contra a Intolerância.

Os cartazes de “desaparecido” com a fotografia do pai que José Carlos andou a colar por Lisboa e arredores constam do processo. Na altura, recebeu algumas pistas: uma mulher disse que ainda tinha visto o idoso nas imediações do lar e que lhe tinha chegado a dar água, mas nunca mais se soube que destino teve. O filho interpôs uma queixa-crime contra a instituição em Dezembro de 2014. Acusou o lar de exposição e abandono de pessoa, um crime punido de um a cinco anos de prisão, alegando ter havido “falta de vigilância”.

No inquérito, foram ouvidas várias funcionárias. A única conclusão a que se chegou é que notaram pela sua falta porque não respondeu “à chamada para o jantar”, afirmando que as portas para o exterior estavam sempre trancadas e que a última vez que o tinham visto foi às 17h00; o filho soube do seu desaparecimento por volta das 21h30. Chegaram a ser constituídos arguidos o director do lar e a responsável técnica, que, no interrogatório, se remeteram ao silêncio. “O filho está convencido de que, na hora da visita, a porta poderá ter ficado aberta e ter havido um período sem qualquer vigilância”.

No seu despacho de arquivamento, o MP conclui que os factos “não são suficientes para o preenchimento de todos os elementos típicos do crime”. O crime de exposição ou abandono verifica-se quando alguém “coloca em perigo a vida de outra pessoa expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se ou abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir”, implicando o abandono que “a vítima tenha de ser transferida de um local (relativamente seguro) para outro menos seguro — o que significa que tem de se verificar uma qualquer deslocação espacial produzida pelo agente”. Na exposição, tem de existir “perigosidade em que se expõe a vítima”; no abandono, supõe-se “omissão na realização de deveres”.

“Se para o desaparecimento contribuiu uma violação dos deveres de acompanhamento e vigilância por parte do lar, tal questão terá de ser dirimida no foro cível”, lê-se ainda.

A procuradora adjunta que assina o despacho diz que “não foram os funcionários ou directores do lar que o levaram para um local perigoso, deixando-o ficar exposto a riscos e incapaz de se defender, foi o próprio José Fernandes que terá saído por sua livre iniciativa do lar, indo para parte incerta”.

Reagindo ao arquivamento, o filho diz que “é inadmissível o arquivamento. A vida das pessoas tem que ser salvaguardada. Sentimo-nos impotentes”. Um ano e meio depois sem saber o que aconteceu ao pai, diz apenas: “Eu estou um bocadinho pior do que estava ontem e amanhã estarei pior do que ontem.”

Em Portugal, estima-se que haja 153 mil pessoas com alguma forma de demência, cerca de 90 mil são casos de Alzheimer.

Nem a PSP nem a GNR sabem o número de desaparecimentos de pessoas com demência, nem quantos resultam em morte.

Sugerir correcção
Comentar