Este ano, gastámos três borrachas a apagar manuais para nada
Em nome da liberdade de escolha, criámos um monstro. Só para o 2.º ciclo há 178 manuais escolares: 14 são de Educação Física.
No email que enviou ao PÚBLICO com as respostas oficiais sobre manuais escolares, o assessor de imprensa do Ministério da Educação e Ciência não resistiu e incluiu um post scriptum. Transcrevo:
PS — Espero que já tenha resolvido a questão com a professora de Português de 5.º ano da sua filha e respetivo [sic] manual.
Achei bonito e agradeço o cuidado. O assessor terá visto que, no Facebook, para além de fotografias de autocarros turísticos gigantes que entopem a minha rua diariamente, gosto de publicar fotografias sobre manuais escolares.
Seria uma boa notícia se este problema fosse apenas meu. Para minha tristeza somos um milhão.
Há décadas que em Portugal protestamos por causa dos manuais escolares. Praticamente desde que acabaram os “livros únicos” do Estado Novo. Em democracia, não gostamos da ideia de o Estado não dar possibilidade de escolha.
Mas a solução que encontrámos não só é perversa, como mascara o facto de ser justamente o Estado quem mais escolhe. Em nome da liberdade de escolha, criámos um monstro. Estive a contar: só para o 2.º ciclo do ensino básico (5.º e 6.º anos) há este ano 178 manuais escolares. Alguns exemplos: há 14 manuais de Educação Física; 14 de Educação Musical; 16 de Moral; 16 de Matemática; 19 de Ciências Naturais; 22 de Inglês e 22 de Português. Fazer contas para tudo tornaria este exercício demasiado maçador, mas se pensarmos só nos 118 mil alunos inscritos no 5.º ano, estamos a falar de um mercado editorial de mais de 20 milhões de euros. Não é um mau negócio.
Na prática, ano após ano, o sistema ignora o interesse das famílias. A 15 de Setembro, o Movimento pela Reutilização dos Livros Escolares apresentou uma queixa ao provedor da Justiça por causa disto. Levou sete mil assinaturas. Só tenho pena de ter estado tão ocupada a comparar manuais “velhos” e manuais novos que não me apercebi disso e não fui a tempo de me juntar.
Os livros escolares são uma questão pública que interessa a todos. A pais, a não-pais, a futuros pais. A escolas, professores, autores, entidades certificadoras (há 28 na última lista da Direcção-Geral de Educação), editoras e, acima de tudo, ao Estado.
Este Verão passámos algumas horas na mesa da cozinha a apagar manuais usados. Gastámos três borrachas, mas fomos uma família feliz. Soube mais tarde que uma mãe da “nossa” escola paga aos quatro filhos um euro por cada livro apagado. Quando a escola publicou as listas dos manuais adoptados, percebemos que só tínhamos de comprar três. Entre os livros pedidos e os herdados de irmãos e amigos, as diferenças eram mínimas. Mesmo título, mesmo autor, mesmo editor. Check, check, check. Acordámos para a realidade pouco depois. Afinal, o que é a felicidade senão sinónimo de efémero?
Um após outro, os nossos manuais usados — todos dentro dos seis anos de vida previstos pela lei — foram rejeitados. Aflita, a minha filha do meio começou a trazer recados da escola. Mais ou menos exagerados, mais ou menos rigorosos, a essência era a mesma: aqueles livros já não eram bons. Depois de três semanas de discussões, emails, protestos, apelos e reuniões na escola, desistimos.
Obedientes, como se querem os cidadãos, comprámos as novas edições de todos os manuais que tínhamos em casa, guardados há três anos à espera de serem reutilizados.
Quando chegaram os novos, postos lado a lado, pareciam 98% iguais. Decidi verificar. Página a página. Escolhi o de Português. Afinal são só quase 80% iguais. Quando estiver entediada e sem ideias melhores, vou dedicar mais uns serões a comparar manuais. Aceitam-se pedidos.