Segunda volta presidencial enterra o kirchnerismo na Argentina
O candidato da oposição, Mauricio Macri, tornou-se o favorito à vitória e forçou o movimento peronista a procurar uma nova identidade.
As sondagens à boca da urna já prenunciavam a realização de uma segunda volta, inédita na história eleitoral do país, para a escolha do futuro Presidente da Argentina. Mas o curto intervalo na votação que separou o candidato “oficialista” Daniel Scioli, o herdeiro político de Cristina Fernández de Kirchner, do principal líder da oposição, Mauricio Macri, foi uma verdadeira surpresa – e de tal maneira que já se começam a escrever os epitáfios do chamado kirchnerismo, que parece ter cumprido o seu ciclo de vida e entrado em extinção independentemente do desfecho final marcado para 22 de Novembro.
A diferença de dois pontos entre os dois concorrentes mais votados, que na linguagem dos inquéritos de opinião seria classificada como um “empate técnico”, operou uma reviravolta inesperada no panorama eleitoral, transformando Mauricio Macri, no favorito à vitória. O conservador chefe do governo da cidade de Buenos Aires que, além do eleitorado de centro-direita, representa a aspiração de uma mudança de rumo após doze anos de kirchnerismo: se na corrida a seis, conseguiu atrair 34,5% dos votos, quem sabe quanto valerá agora a sua candidatura agregadora do descontentamento contra o regime de Kirchner, chamada simplesmente “Mudemos”?
“O que aconteceu hoje muda a política deste país”, exultou Macri, assim que se tornou claro o curto intervalo que o separava de Daniel Scioli, o homem que esteve sempre à frente nas sondagens (e no início da longuíssima noite eleitoral ainda chegou a acreditar na vitória à primeira volta). Não é preciso fazer contas complicadas para perceber como a aritmética eleitoral favorece agora o candidato da oposição: 65% dos eleitores argentinos votaram pela mudança, e um entusiástico Macri apelou a todos os que “se dispuseram a apostar no futuro”, e àqueles que votaram por hábito ou tradição e não por convicção, “até mesmo em Scioli”, a continuar a “olhar para a frente”.
A campanha de Daniel Scioli, começa a absorver o choque e a delinear a estratégia para a segunda volta, para a qual parte atordoada e vulnerável. Numa primeira reacção, o candidato do Governo convidou os indecisos e os independentes a “juntar-se à causa” e acompanhá-lo "até ao fim”. As suas palavras presumem o apoio da máquina peronista, que em democracia só não conseguiu eleger dois dos onze Presidentes da Argentina. O problema para o putativo sucessor de Cristina é que, aparentemente, a máquina “engasgou”, incapaz de resolver o dilema que é a "continuidade com mudanças" - no fundo, um problema de identidade.
Além de transformar Mauricio Macri no favorito, a surpresa eleitoral teve o condão de aproximar Daniel Scioli do populismo da Presidente. Na noite de domingo, o candidato falou nos progressos económicos e sociais da última década, desde a campanha de privatizações à justiça para as vítimas da ditadura; esta segunda-feira foi mais longe e, rompendo com a sua imagem de afabilidade, atirou-se duramente ao seu adversário, que definiu como o “candidato do ajuste e da austeridade”. “A palavra mudança pode parecer sedutora, mas temos de debater que tipo de mudança é que a direita quer. Principalmente, precisamos de garantir as nossas conquistas, de cuidar do trabalho, da indústria e da soberania energética”, sublinhou, num discurso dirigido aos trabalhadores que poderia ter sido escrito pessoalmente por Cristina Kirchner.
“Cumpri a nossa promessa. Deixamos [aos argentinos] um país normal”, afirmou a Presidente no domingo, à entrada para a mesa de voto. A declaração, com a inevitável evocação do legado do seu marido, que morreu em 2010, remetia para a “década dourada” da Argentina com os Kirchner: Néstor, que governou entre 2003 e 2007, e supervisionou o “milagre económico” que retirou o país da recessão e da bancarrota; Cristina aprofundou os benefícios sociais e subiu a parada da política externa, tornando-se uma figura central do eixo regional latino-americano contra a hegemonia dos Estados Unidos.
Hoje, os comentadores e analistas questionam-se (e desentendem-se) quanto à capacidade de resistência do peronismo, mas começam a convergir na opinião de que a era kirchnerista se esgotará com a saída de Cristina da Casa Rosada – mesmo se esta deixa o poder com uma “invejável” taxa de popularidade de 50%, que pelo menos teoricamente mantém a porta aberta para o seu regresso. O modelo kirchnerista, populista, heterodoxo e autoritário, já só funcionava graças à personalidade (ao carisma?) de Cristina, argumentam. E a “receita” kirchnerista, que efectivamente retirou do desemprego e da pobreza milhões de argentinos, começou a ruir perante um quadro económico global desfavorável.
Se a candidatura de Mauricio Macri, um conservador nas questões sociais e um liberal nas económicas, era aquela que oferecia a maior ruptura com a via peronista na disputa presidencial, a verdade é que as propostas de “continuidade com mudança” de Daniel Scioli já representam um corte com o passado kirchnerista. A candidatura do actual governador da província de Buenos Aires, muito criticado pela sua “ligeireza” ideológica, assenta numa plataforma bastante mais moderada do que a de Cristina, principalmente na economia: os resultados da primeira volta parecem indicar, porém, que em vez de alargar a base eleitoral, a inflexão ao centro tornou a campanha de Scioli menos “competitiva”.
Mas não foi só a desilusão eleitoral de Scioli que desmoralizou os peronistas da ala kirchnerista na noite de domingo. A Frente para a Vitória (que integra o Partido Justicialista) também perdeu a sua maioria na Câmara de Deputados, e viu a sua influência regional diminuída – além do novo Presidente, os argentinos também elegeram onze governadores, metade dos deputados e um terço dos senadores, centenas de autarcas e, pela primeira vez, os 45 deputados argentinos no Parlamento do Mercosul.
Uma derrota especialmente aziaga aconteceu em Buenos Aires, bastião do peronismo: o candidato à substituição de Daniel Scioli à frente do governo da maior província do país era nada mais do que o chefe de gabinete de Cristina Kirchner, Aníbal Fernandez, batido pela candidata apoiada pelo “Mudemos”, María Eugenia Vidal, uma relativa desconhecida na cena política argentina. Outra foi a perda da província de Jujuy, sempre nas mãos dos peronistas desde o regresso da democracia, em 1983.
Mas também a recomposição do Parlamento, onde deixou de existir uma maioria absoluta, representa um desafio para os peronistas, que obrigatoriamente terão de negociar alianças políticas, mesmo no caso de uma vitória de Scioli. Certo é que, depois de 22 de Novembro, o movimento peronista entrará num processo de recomposição e redefinição política – no qual Kirchner dificilmente terá algo a dizer.