Inglês: aprendem desde o berço para serem cidadãos do mundo
O inglês aprende-se cada vez mais cedo. Ensina-se com o auxílio de músicas, danças, casas de brincar e animais-marionetas a bebés de fraldas que ainda nem falam. A procura de centros de ensino privados está aumentar. Na escola pública o Inglês é obrigatório desde o 3.º ano do 1.º ciclo.
O Eduardo é pequenino, tem 20 meses, olhitos atentos. Já sabe contar até 10 em inglês, associa nomes aos objectos, pronuncia algumas palavras, diz outras de forma espontânea, ainda não constrói frases na língua que começou a escutar aos dez meses. Vai lá chegar. Começou a falar nas duas línguas. Os pais usam regularmente o inglês no trabalho. Por vezes, conversam em inglês lá em casa para tornar normal novas sonoridades. O Santiago tem 18 meses, repete uma palavra aqui, outra ali, que a professora Cátia vai dizendo ou cantando. O inglês faz parte da sua vida desde os nove meses. Disse cat antes de dizer gato. A mãe fala inglês, o pai, com dupla nacionalidade, portuguesa e alemã, também e chega a contar-lhe histórias em alemão. A Inês tem dois anos e quatro meses. Há palavras que lhe são mais fáceis de dizer em inglês, responde a perguntas simples e aponta as cores que lhe são ditas nesta nova língua.
É hora de mais uma sessão. No chão, há almofadas, as paredes estão despidas, há um leitor de CD numa mesa baixa e alguns objectos numa caixa. Cátia, a professora, mostra palavras escritas e repete-as. Elas hão-de aparecer mais à frente. Canta-se e dança-se. Constrói-se uma casa com janelas, porta, chaminé, tecto, chão. Os animais-marionetas são usados para tocar em várias partes do corpo. Reproduzem-se estados de espírito com gestos. Mostram-se alimentos, uma banana, uma laranja, uma maçã. Divide-se o corpo humano e colam-se orelhas, olhos, braços, pernas, barriga, costas, num painel. Cátia tinha avisado que estimular sentidos fazia parte do alinhamento da aula. Eduardo e Santiago divertem-se, não estão nada aborrecidos, escutam palavras e indicações em inglês. Não se fala noutra língua. “Ring the bell, ring the bell Eduardo”. E o Eduardo faz o que lhe é dito.
Cristina Coelho é mãe de Santiago e respeita as regras, só fala inglês na aula que durará cerca de 45 minutos no centro Helen Doron, na Foz, no Porto. “As coisas vão ficando, é uma língua que se vai interiorizando”. O Santiago é despachado a falar e há palavras que se entranham. As músicas das aulas estão gravadas em CD que se ouvem em casa e no carro. É, no fundo, uma aprendizagem despreocupada. “Não é como um teste em que se tem de tirar boa nota, é uma experiência positiva que facilita a aprendizagem”. O convite para uma aula de demonstração convenceu os pais do Santiago. “Ficámos muito surpreendidos, não tínhamos muitas expectativas, estávamos cépticos em relação à aprendizagem tão precoce de uma língua”, recorda Cristina Coelho. E não há pressas. “Não é uma ambição que o meu filho fale inglês direitinho, é mais uma experiência positiva”, reforça.
Manuel Ferreira é o pai do Eduardo e conta que o filho retém palavras em inglês que, por vezes, diz espontaneamente e dentro do contexto. “Ele vai absorvendo tudo”, garante. “Quisemos que o primeiro contacto com uma segunda língua fosse feito cedo, para mais tarde não ser um choque”. Esta foi uma das razões para inscrever o Eduardo na aula dos mais pequenos. O que os estudos dizem sobre o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças que falam duas ou mais línguas também contribuiu. As preocupações com o futuro tiveram o seu peso. Mas é mais do que isso. “Queremos que o Eduardo seja uma pessoa do mundo, tem a língua materna e o inglês que queremos que, desde cedo, seja confortável para ele, o que acaba por dar uma tranquilidade grande no futuro”.
Vera Araújo Lima é a mãe da Inês. É médica, o marido engenheiro mecânico, falam inglês, já viveram na Costa do Marfim, é muito provável que emigrem dentro de um ano. Inês levará uma bagagem de inglês, a experiência da mãe foi fundamental para a inscrição. Vera aprendeu inglês num colégio quando essa língua no ensino público só era ensinada a partir do 2.º ciclo. Notou uma diferença abismal com os colegas quando saiu do colégio e essa aprendizagem, na altura precoce, fez toda a diferença. Uma língua estrangeira “não era um monstro estranho”. Por isso, inscreveu a Inês no inglês quando ela tinha um ano. “Quero o mesmo ou mais para a minha filha”. Ou seja, que a Inês se sinta confortável com outra língua que não a materna. “Quisemos expô-la a uma língua estrangeira e o inglês é a língua mais natural”. Uma decisão com vários pesos na balança: além da experiência de Vera, a literatura que aborda a plasticidade cerebral das crianças que falam mais do que uma língua, os benefícios que lhe são associados, melhores oportunidades de futuro e sobretudo que o inglês não seja uma coisa estranha. “O que eles aprendem está bom para cada um deles”.
Cristina Silva, responsável pelo centro Helen Doron da Foz, mostra os materiais criados de raiz e importados do Reino Unido do Helen Doron English, método inovador de ensino da língua inglesa a bebés, crianças e adolescentes, dos três meses aos 19 anos, presente em mais de 30 países. Há livros de histórias, manuais que não descuram os conteúdos dos exames de Cambridge, bonecos em papel que ganham vida num tablet, CD com músicas para várias idades, personagens que acabam por fazer parte do quotidiano das famílias. O centro da Foz abriu há um ano, tem 60 alunos e mensalidades que vão dos 41 aos 92 euros. Faz sentido começar bem cedo. “Não falam, mas ouvem. Não é uma audição aleatória, temos músicas para crianças com gestos para que criem uma ligação positiva ao que ouvem”. “É um investimento silencioso”, acrescenta. O método Helen Doron, inspirado na linguista e educadora britânica com o mesmo nome, está há dez anos em Portugal. Tem 2850 alunos em 22 centros no país onde, até ao final do ano, abrirá mais três espaços. A procura tem vindo a aumentar, mais de mil alunos inscritos em relação ao ano lectivo 2013/2014 que registava cerca de 1750 estudantes, maioritariamente filhos de pais portugueses - cerca de 15% dos pais são estrangeiros ou têm dupla nacionalidade.
Quanto mais precoce melhor
Dulce Pereira, linguista, investigadora no Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), actualmente CELGA – Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada/ILTEC, garante que quanto mais precoce melhor e que há sempre benefícios, e a vários níveis, nessa aquisição de uma segunda ou mais línguas. O filho primogénito de Shakira e Piqué tem dois anos e está a aprender sete línguas – espanhol, catalão, inglês, francês, alemão, russo e chinês – num colégio em Barcelona. Mal não lhe faz. “Não há um perigo, não há nenhuma maldade”, comenta. “As crianças vêm equipadas com um bioprograma para a linguagem que lhes permite filtrar os dados que lhes apresentam”. O filho de Shakira, como outros nos mesmos contextos, acabará por escolher as línguas que lhes são mais funcionais. O uso das línguas que se aprendem é crucial para os benefícios. Até porque há a aquisição, mas também há a erosão de uma língua que se poderá perder se deixar de ser usada. “Os benefícios do bilinguismo existem sempre e são mais sólidos quando as crianças adquirem uma língua e a usam em simultâneo”. Em idades precoces, a aquisição é mais natural, utilizam-se os mesmos mecanismos do que a língua materna.
Falar mais do que uma língua desenvolve o cérebro. O controlo executivo ganha agilidade. “A criança adquire mecanismos de controlar a passagem de uma tarefa a outra de forma mais rápida e mais consistente”. Cognitivamente a capacidade metalinguística, a reflexão sobre a própria linguagem, aumenta. Percebe-se que a língua representa a realidade e, além disso, desenvolve-se uma grande capacidade de abstracção. “O uso da língua atinge um patamar mais elevado de representatividade e não de mera funcionalidade”, refere Dulce Pereira. Todos os benefícios cognitivos, linguísticos, sociais e afectivos verificam-se em todas as línguas, “não apenas nas bem cotadas no mercado”.
Dulce Pereira não tem estatísticas que mostrem que há mais ou menos procura do ensino precoce de línguas. As possibilidades económicas, as referências, as informações contam. Mas de uma coisa tem a certeza: “O bilinguismo é cada vez mais benéfico não só em idades mais jovens, mas também nas mais velhas, pode atrasar o aparecimento de Alzheimer em quatro, seis anos pelo facto de ser bilingue”.
Mónica Lourenço, professora e investigadora da Universidade de Aveiro, doutorada em Didáctica e Formação, tem-se debruçado na introdução de outras línguas no ensino pré-escolar. No privado, há várias ofertas. No público, poucos projectos. O cenário mudou, o inglês deixou de ser uma oferta facultativa das actividades de enriquecimento extracurricular do 1.º ciclo, passou a ser obrigatório a partir do 3.º ano de escolaridade, e os alunos do 9.º ano têm agora um teste de Cambridge para fazer. Mas as coisas ainda não encaixam bem. Falta um fio condutor. Os alunos que agora começam a aprender inglês poderão apanhar aulas repetidas no 2.º ciclo. “Tem de haver uma progressão a nível dos próprios programas”, defende. Uma continuidade com pés e cabeça. “Uma progressão para que mais facilmente os alunos possam ter uma aprendizagem futura e que não seja desmotivadora”, sublinha.
Para Mónica Lourenço, esta vontade de ensinar inglês cedo aos filhos tem na base “objectivos mais instrumentais, mais académicos, mais profissionais” . Na sua opinião, nem sempre é verdade que quanto mais cedo melhor. “Acreditam que quanto mais cedo os filhos aprenderem a língua mais cedo a vão dominar, o que nem sempre acontece”, diz. Mas em termos de pronúncia e de fluência, ressalva, ser precoce ajuda a falar como se fosse uma língua natural.
Maria Alfredo Moreira, professora no Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Braga, no departamento de Estudos Integrados de Literacia, Didáctica e Supervisão, percebe esta procura pelo ensino do inglês. “A cultura dos jovens é a cultura do inglês. A cultura da Internet, da televisão, dos jogos. E as línguas aprendem-se assim”. Em seu entender, já não é tanto por uma vantagem competitiva em termos profissionais. “Hoje em dia, quase toda a gente fala inglês com mais ou menos apoio das escolas particulares”. De qualquer forma, continua a ser olhado com uma porta que pode abrir oportunidades de emprego.
Maria Alfredo Moreira olha também para o que acontece com as crianças que falam duas ou mais línguas em casa com os pais de nacionalidades diferentes. “É uma questão de identidade que não é de descartar e que as escolas têm de proteger e valorizar”, avisa. A professora admite que há vantagens em aprender inglês em idades precoces, tal como outras actividades como artes, música, desporto. O que é importante, na opinião de quem trabalha directamente com professores, é que as “crianças não fiquem fechadas na sala de aula o dia inteiro”.