Há mais queixas de violência física no namoro do que no casamento
Ministério da Administração Interna divulga relatório anual sobre violência doméstica que estava pronto desde Agosto. Estatísticas mantêm-se semelhantes às dos anos anteriores.
As queixas apresentadas às autoridades em 2014 por violência física nas relações de namoro superam as das pessoas casadas. A informação consta do mais recente relatório de monitorização de violência doméstica do Ministério da Administração Interna, um documento que, apesar de estar pronto desde Agosto passado, só agora foi divulgado.
“Constata-se que a proporção mais elevada de casos em que foi assinalada violência física se registou nas situações de violência doméstica entre namorados”, pode ler-se no relatório. Trata-se de um conceito alargado de namoro, que engloba não apenas adolescentes mas também parceiros com mais idade: a média etária dos casos analisados situa-se nos 28 anos. O surgimento, nas estatísticas, da violência no namoro poderá ser, porém, apenas a revelação pública de um fenómeno que, segundo uma responsável da associação União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), Elisabete Brasil, sempre ocorreu: “A violência no namoro não é uma novidade. O que acontece é que dantes estas agressões não eram contabilizadas como violência doméstica”.
Só em Fevereiro de 2013 o Código Penal passou a considerar crime de violência doméstica as agressões entre namorados e também entre ex-namorados. E se as mais recentes estatísticas dão conta de uma elevada proporção de participações apresentadas às autoridades por violência física no namoro – 89% de todas as queixas relativas a agressões no namoro referem-se a agressões físicas -, as queixas por violência psicológica não ficam muito atrás: somam 73%. Já na violência entre cônjuges as agressões psicológicas reportadas à PSP e à GNR têm primado, ainda que não muito significativo, sobre as físicas. No caso do namoro, a explicação para as queixas pode ser simples: ainda não passou tempo suficiente para as vítimas se acomodarem à agressão. “Há situações de violência doméstica que começam logo no namoro e continuam no casamento”, descreve Elisabete Brasil, a quem já algumas mulheres disseram que sentem como mais devastador o impacto das agressões psicológicas do que o das físicas. E se a violência física foi uma constante de 70% dos casos reportados em 2014, a psicológica motivou ainda mais queixas.
Quer numa situação quer noutra, o problema é prová-las: 77% dos inquéritos abertos pelo Ministério Público por este tipo de crime são arquivados, na maioria das vezes por falta de provas. O relatório anual do Ministério da Administração Interna descreve o destino dos poucos casos que conseguem chegar às salas de audiências dos tribunais, para serem julgados: “De um total de 2954 sentenças transitadas em julgado entre 2012 e 2014, cerca de 58% resultou em condenação e cerca de 42% em absolvição. Na maioria das condenações (96%) a pena de prisão foi suspensa”.
A especialista da UMAR pensa que nesta matéria há ainda muito a fazer, mesmo sendo impossível, pelo sistema jurídico penal português, inverter o ónus da prova – isto é, ser o suspeito a ter de provar em tribunal que não praticou as agressões de que é acusado. Elisabete Brasil aponta sobretudo para as perícias forenses que podiam ser feitas às vítimas, quer para indiciar os maus tratos psicológicos de que tenham sido alvo quer para validar os seus testemunhos no tribunal.
Além da violência física e psicológica, o trabalho do Ministério da Administração Interna identifica ainda a violência doméstica do tipo económico – muitas vezes praticada contra ascendentes, por filhos e netos que se apropriam das suas pensões, por exemplo – e do tipo social. É o caso do marido que tenta limitar ao máximo os contactos sociais da companheira, as suas saídas à rua, promovendo o seu isolamento para melhor a controlar.
No que a estes tipos de crimes concerne, as mulheres são as vítimas mais típicas, mas não as únicas: nos escalões etários abaixo dos 18 anos a taxa de feminização da violência doméstica é de apenas 63%, contra 91% no escalão etário imediatamente seguinte, dos 18 aos 24 anos. Os homens são sobretudo vítimas de violência doméstica em crianças, constituindo muitas vezes danos colaterais das agressões do pai contra a mãe, e depois mais tarde, quando chegam a velhos e os filhos os maltratam.
Em termos globais, a violência doméstica manteve-se estável entre 2014 e 2015, mostra o relatório, que apresenta já estatísticas do primeiro semestre deste ano. Assim, neste último período foram apresentadas às forças de segurança 12.998 participações. “Comparativamente ao período homólogo de 2014 verificaram-se menos 73 participações, o que corresponde a uma taxa de variação negativa de -0,6%”, indica o estudo. Uma tendência contrariada, porém, nalguns distritos do país: Portalegre, que registou um aumento de queixas superior a 40%, Santarém e Évora. Beja destacou-se pela positiva nos primeiros seis meses de 2015, com menos violência reportada que no período homólogo anterior. Já no que à taxa de incidência por mil habitantes diz respeito, a região autónoma dos Açores destacou-se no ano passado a nível nacional por bater recordes de queixas de agressões.
Seja como for, as ocorrências participadas no distrito de Lisboa representaram em 2014 mais de um quinto do total nacional, que se cifrou em 27.317 participações às autoridades. Seguem-se o Porto, Setúbal, Aveiro e Braga. O relatório destaca o contraste de um país dividido, também nesta questão, entre o litoral e o interior: “Nos primeiros são registadas mais participações”.
Os meses de Verão são os mais propícios à violência doméstica, tal como os fins-de-semana. “Quase metade das situações tiveram como consequência para a vítima ferimentos ligeiros e em 56% dos casos foi registada a ausência de lesões”, refere o mesmo documento, que não contabiliza, porém, os casos de homicídio, uma vez que já não são da competência do Ministério da Administração Interna, que tutela a PSP e a GNR, e sim da Polícia Judiciária, que depende do Ministério da Justiça. Em 38% dos casos os episódios de violência foram presenciados por menores.
A violência doméstica parece ser mais praticada por pessoas empregadas do que por desempregadas, apresentando-se como menos comum entre aqueles que frequentaram o ensino superior e também entre quem vive em união de facto.