Juízes acusam MP de “pura ficção jurídica” nos argumentos para manter segredo no caso Sócrates

Relação de Lisboa rejeita “liminarmente” o pedido de nulidade do Ministério Público e determina acesso total ao processo com “efeitos imediatos”. Defesa tenta consultar autos esta sexta-feira.

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Advogados de José Sócrates criticam Ministério Público REUTERS/Jose Manuel Ribeiro

O processo em que o ex-primeiro-ministro José Sócrates é arguido está a servir de palco para uma guerra cada vez mais aberta e acesa com troca de acusações entre o Ministério Público e os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, Rui Rangel e Francisco Caramelo. Na resposta desta quinta-feira ao pedido de nulidade do Ministério Público (MP), os dois juízes, além de confirmarem o fim do segredo de justiça no caso, consideram que “só no mundo da pura ficção jurídica é possível afirmar, como faz o MP” que o acórdão que ditou o fim do segredo a 24 de Setembro violou “a lei processual” e a Constituição.

Na decisão, à qual o PÚBLICO teve acesso apenas parcial, Rui Rangel e Francisco Caramelo voltam a recorrer a um sermão. “Como dizia o nosso padre António Vieira: ‘A cegueira que cega cerrando os olhos não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas’”. Na decisão, os juízes defendem que “a realização da justiça e da verdade material e a defesa dos interesses democráticos da sociedade moderna e civilizada, é que reclama veemente que se abra a ‘Caixa de Pandora’ do segredo de justiça”.

no acórdão de 24 de Setembro, os juízes desembargadores aludiram a outra frase de padre António Vieira. “Quem levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito que se recolha de mãos vazias”. Percebia-se implicitamente a resposta a um ditado popular usado num outro acórdão da Relação de Lisboa que em Fevereiro confirmara a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro: “Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm”.

Os juízes desembargadores rejeitaram “liminarmente” o pedido de nulidade e as inconstitucionalidades invocadas, mantendo a decisão anterior nos seus “exactos termos” com “efeitos imediatos”, esclareceu o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Luís Vaz das Neves. Ou seja, a defesa do antigo primeiro-ministro, no entendimento dos juízes, passaria a ter acesso desde já a todo o processo que até agora estava em segredo - que se manterá para quem não é parte neste inquérito.

A defesa de José Sócrates entregou na tarde desta quinta-feira um requerimento onde volta a pedir a libertação imediata do cliente. “Este acórdão confirma que devíamos ter tido acesso ao processo a partir de 15 de Abril. Como isso não aconteceu, todos os actos praticados desde então são inválidos por violação grave dos direitos da defesa”, argumenta Pedro Delille.

Tal não foi, contudo, o entendimento do juiz de instrução nem do procurador, que recusaram libertar Sócrates, em prisão domiciliária desde o início de Setembro.

Os dois advogados de defesa de José Sócrates deslocam-se esta sexta-feira à tarde ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal para tentar consultar o processo. Pedro Delille diz esperar que lhe dêem acesso aos autos, não querendo acreditar na possibilidade do MP recorrer ao Tribunal Constitucional para tentar invalidar a decisão da Relação de Lisboa. “Espero que não faça isso. Seria indecente e incompreensível”, resume o advogado.

Por seu lado, o MP acusara estes dois juízes no pedido de nulidade de terem violado “princípios constitucionais, nomeadamente o de protecção do segredo de justiça”. Nesse pedido, os juízes eram ainda acusados de violarem outros princípios fundamentais da Constituição como o do estado de Direito democrático, o do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o referente às garantias do processo-crime e o relativo às funções e estatuto do MP.

Para o procurador, o primeiro acórdão de Rui Rangel e de Francisco Caramelo é nulo, "porque ao declarar o fim do segredo de justiça interno desde 15 de Abril de 2015, enquanto decorre o prazo normal de inquérito", os juízes decidiram sobre uma "questão que, por lei, está subtraída à sua apreciação", informou então a Procuradoria-Geral da República. Em causa estava a competência do juiz de instrução, Carlos Alexandre, que, para o MP, era quem poderia decidir se o segredo vigora ou não. Esta quinta-feira, a Procuradoria não reagiu à decisão da Relação, nem esclareceu se vai recorrer para o Tribunal Constitucional (TC), o único passo que lhe resta nesta discussão com a Relação de Lisboa.

Há quem entenda que o recurso para o Tribunal Constitucional suspende a decisão de Rui Rangel e de Francisco Caramelo. Sem se referir ao caso em concreto, Henrique Salinas, professor de Direito Penal, explica que o MP tem 10 dias para recorrer para o TC. “Só depois desse prazo é que a decisão da Relação se torna definitiva”, considera o docente da Universidade Católica.

O professor acrescenta que a haver recurso para o Constitucional, o mesmo tem, em regra, efeito suspensivo, ou seja, a decisão da Relação fica congelada até aquela instância se pronunciar. Contudo, o próprio TC pode decidir atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso, o que implicaria que a defesa teria acesso ao processo enquanto o Constitucional analisava a questão.

Henrique Salinas adianta que, para que o recurso para o TC seja possível, é necessário que o MP tenha invocado a inconstitucionalidade de uma norma. “Os critérios de aceitação definidos pelo próprio Constitucional são bastante restritos”, nota o universitário.

O recurso terá que ser apresentado na Relação de Lisboa, cabendo, mais uma vez, aos juízes Rui Rangel e Francisco Caramelo decidir se admitem ou não. No entanto, mesmo que os desembargadores considerem que não estão reunidos os pressupostos, a parte pode reclamar para o TC que terá a palavra final sobre a aceitação do recurso.

Apesar desta discussão, certo é que na próxima segunda-feira, o inquérito atinge o prazo máximo, o que determina o fim do segredo de justiça. Isto, se o juiz Carlos Alexandre não decidir prolongar o segredo por mais três meses, como possibilita o Código de Processo Penal para casos de criminalidade especialmente complexa.

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