Esquerda e direita no século XXI
Só voltando a afirmar-se como opção ideológica na economia política — e recuperando a classe trabalhadora e média-baixa —, poderá a esquerda continuar uma força relevante no século XXI.
A crise financeira de 2008 intensificada pela crise da Zona Euro a partir de 2010, criou uma forte contestação social e política em muitos países europeus. Neste terreno sociológico-político, que deveria ser favorável à esquerda, foi a direita que mais reverteu a situação a seu favor. Ao longo deste ano de 2015 a esquerda de poder socialista / social-democrata / trabalhista acabou por sair derrotada em várias eleições: Reino Unido, Dinamarca, Portugal, etc. Quais as razões de tais fracassos generalizados? Estará o conceito / ideia de esquerda, herdado da Revolução Francesa de 1789, obsoleto nas actuais democracias ocidentais?
Antes de responder à questão, importa, de uma forma simplificada, ver o que separa esquerda de direita. Em termos históricos, a economia política é o terreno principal de confronto. Tal legado está enraizado desde o século XIX. O pensamento dos socialistas utópicos (Saint-Simon, Charles Fourier, etc.) e, fundamentalmente, de Karl Marx e dos seus continuadores, marcou decisivamente a divisão ideológica. A esquerda configura-se, em graus variáveis, a favor da intervenção do Estado na economia. Na versão moderada, é herdeira do pensamento de John Maynard Keynes, Gunnar Myrdal e outros. Na versão radical, hoje obsoleta, preconizava a planificação da produção e uma economia estritamente pública. A direita, classicamente, preconiza o inverso. Numa linha que vai de Adam Smith a Friedrich Hayek, o bom Estado é essencialmente não interventor na economia e na sociedade, sendo apenas forte nas funções de soberania (segurança interna e externa, justiça, etc.). Contrastivamente, para a esquerda, impõe-se a detenção pública de empresas em sectores-chave, a existência de abrangentes prestações sociais (educação, habitação, saúde, etc.) e de impostos sobre o rendimento progressivos. Para a direita, a iniciativa privada, o mercado sujeito à lei da oferta e da procura, sem intervenção estatal e/ou regulação mínima, funções sociais reduzidas, bem como impostos e legislação de trabalho favoráveis às empresas são, por antítese, atributos do bom Estado.
No século XX, as circunstâncias políticas, sociais e económicas dos anos 1930 até aos anos 1980 — especialmente a pressão da esquerda marxista / comunista —, levaram a direita e o centro político, em graus variáveis, a incorporar ideias da esquerda social-democrata. A regulação da economia, um amplo sector público e as funções sociais do Estado eram vistas como uma inevitabilidade.
Com origens nos anos 1960 e 1970 duas revoluções ideológicas cujas repercussões ainda hoje estamos a sentir, transformaram a esquerda e a direita. Do lado da esquerda, foi a revolução (contra)cultural do Maio de 68 em França e da New Left nos EUA (Michel Foucault, Herbert Marcuse e outros). Do lado da direita, foi a revolução (neo)liberal, inicialmente produto de um grupo restrito de economistas, especialmente da Universidade de Chicago (Milton Friedman é o nome mais óbvio). Estes dois movimentos mudaram a maneira de fazer política nas décadas subsequentes. Sinal evidente do seu sucesso, à direita, o pensamento (neo)liberal tornou-se a vulgata do pensamento económico e empresarial, através da massificação do jargão da competitividade, privatizações, desregulação, inovação, empreendedorismo, etc. No passado — anos 1970 e inícios da década de 1980 —, eram sobretudo “artigos de fé” de alguns (escassos) economistas (neo)liberais próximos da direita radical. Hoje são o mainstream do pensamento económico na academia, nos media e na sociedade. Os seus críticos foram remetidos para “trincheiras de resistência”, na linguagem do pensador marxista italiano Antonio Gramsci.
Paralelamente, a racionalidade económica — na linha de outro economista da Universidade de Chicago, Gary S. Becker (“The Economic Approach to Human Behavior”, 1976) — invadiu a generalidade das esferas da vida humana. Mesmo aquelas que, não há muito tempo atrás, lhe estavam largamente subtraídas, como a educação ou a saúde. À esquerda, mas num outro terreno — o dos valores sociais e estilos de vida —, também a revolução (contra)cultural do Maio de 1968 e da New Left teve grande sucesso. Hábitos e ideias que, no passado, eram restritos a uma elite intelectual e política de esquerda alternativa e/ou radical, hoje fazem parte dos valores comuns. Igualdade de género, direitos das minorias, liberdade sexual, liberdade para estilos de vida alternativos fora do casamento, ecologia e ambiente, etc. Tudo isto é, cada vez mais, a vulgata na qual é socializado o indivíduo medianamente culto em termos de valores e práticas sociais.
A revolução nos valores e hábitos sociais e a difusão de estilos de vida alternativos criou uma sociedade atomizada e individualista, desfavorável aos partidos de massas de esquerda. A conjugação da liberalização dos costumes com novos estilos de vida afastados da lógica familiar tradicional, associada a uma baixa natalidade, fez diminuir o proletariado. Mas essa era a camada social que mais suportava eleitoralmente os partidos da esquerda socialista / social-democrata / trabalhista ou, mais à esquerda ainda, comunistas. O filósofo e pensador francês, André Gorz, já anunciava o abandono do proletariado no seu livro Adieux au prolétariat: Au-delà du socialisme, de 1980. Esta profunda mudança — ideológica e sociológica —, afastou os partidos de massas da esquerda de parte importante do seu eleitorado tradicional. As suas causas políticas tornaram-se mais “elitistas”: os direitos das minorias, a ecologia, etc. O fenómeno intensificou-se nos países que se transformaram em sociedades diversas culturalmente, devido a migrações em massa. Consequência: o proletariado autóctone e a classe média-baixa sentiram-se abandonados pela esquerda. Por um lado, passaram a enfrentar uma acrescida competição pelos benefícios sociais, na habitação, escola pública, empregos não qualificados, etc. Por outro lado, passaram a ser estigmatizados como preconceituosos, xenófobos, ou até racistas, pela elite e classe média socializada nos novos valores.
O resultado ainda hoje é mal percebido nas suas consequências políticas. Aquele que deveria ser um eleitorado natural da esquerda tende a deslocar-se para a direita. Não para a direita do mainstream, hoje (neo)liberal e afastada da sua abordagem tradicional aos problemas sociais (próxima da doutrina social da igreja, nos partidos democratas cristãos.) A deslocação ocorreu — e continua a ocorrer —, para uma direita antiglobalização e eurocéptica, nacionalista e populista. Razão: é a única que, paradoxalmente, dá voz às preocupações do trabalhador de classe média-baixa e do proletariado que vai subsistindo. Em Portugal, esta deslocação só não ocorreu porque os fenómenos imigração em massa não se verificaram. É este o terreno sociológico-político onde têm crescido a Frente Nacional de Marine Le Pen (França), a Liga do Norte de Umberto Bossi (Itália) e o Partido para a Liberdade de Geert Wilders (Holanda), entre outros, conquistando votos nos antigos bastiões da esquerda.
Ao afastar-se das preocupações fundamentais da classe trabalhadora e média-baixa, um importante eleitorado tradicional, a esquerda europeia socialista / social-democrata / trabalhista, transformou-se na minoria política que é hoje. As vitórias na frente cultural e dos costumes foram um fraco substituto para a derrota na economia política face ao (neo)iberalismo. A globalização resultante de ideias e valores (neo)liberais — e uma arquitectura da Zona Euro com similares valores —, são um espartilho que comprime a esquerda europeia. Ironicamente, o capitalismo apropriou-se facilmente das ideias do Maio de 1968 e da New Left, usando-as em seu proveito e dando-lhes sentido no mercado. Apenas dois exemplos. Primeiro, a partir dos anos 1950 e 1960, a igualdade de género foi transformada num trunfo para o crescimento capitalista. A população feminina foi colocada em massa no mercado — a produzir e a consumir. Mais tarde, nos anos 1970 e 1980, a ecologia e o ambiente foram integrados na lógica do homo economicus, pela ideia de sustentabilidade: uma combinação do crescimento capitalista com a preservação ambiental, sob a primazia do primeiro. Quanto à esquerda, criou a ilusão de que compensava as perdas com políticas multiculturais e uma clientela oriunda de minorias e grupos da migração — o “novo proletariado”. Na realidade, este é mais um eleitorado tradicionalista, que só pelo facto de vir de outras culturas alimentou a ilusão de “progressismo” na esquerda. Serve, até, o interesse de um capitalismo agressivo, para redução de salários e regalias sociais. Entretida com as políticas multiculturais, deixou o terreno da economia política para a direita (neo)liberal. Pior: inadvertidamente, abriu caminho à direita populista e nacionalista.
A crise de 2008 não deixa dúvidas quanto às consequências da deriva “culturalista”. Só voltando a afirmar-se como opção ideológica na economia política — e recuperando a classe trabalhadora e média-baixa —, poderá a esquerda continuar uma força relevante no século XXI.
Investigador