Dois super-heróis a caminho da Croácia entre os bens doados pelos portugueses
Caravana Aylan Kurdi conseguiu juntar quase 60 toneladas de brinquedos, roupa, medicamentos e outros produtos para os refugiados. Partiu neste sábado para a Croácia, onde deverá chegar na terça-feira.
A ideia surgiu da cabeça de João Vasconcelos, director de uma incubadora de Lisboa. A ele juntaram-se mais de uma dezena de promotores da iniciativa, entre eles Miguel Vieira, Maria Miguel Ferreira e Ana Santiago. Ao todo, em menos de uma semana, conseguiram chegar a milhares de pessoas, que permitiram que o resto acontecesse. Nos 30 postos oficiais de recolha em todo o país as entregas sucederam-se. Houve ainda empresas e espaços comerciais que se tornaram pontos informais e que depois levaram os cabazes recolhidos até aos armazéns na zona de Lisboa que concentraram as dádivas, e onde só entre sexta-feira e a madrugada de sábado mais de 300 voluntários ajudaram a separar os produtos e a acondicioná-los em caixotes.
Uma empresa de transportes disponibilizou os camiões e outra de logística tratou das mudanças e acondicionamento da carga. Neste sábado, nos armazéns cedidos pela Urbanos já pouco restava da confusão de paletes, sacos e caixotes. Só algumas garrafas vazias e fitas abandonadas deixam adivinhar as grandes movimentações que foram necessárias numa noite que se prolongou até às 2h30, apenas com pausas para uma ou outra fatia de pizza. O resultado são três camiões TIR completamente cheios com quase 60 toneladas de produtos e com vários autocolantes a destacar que transportam ajuda humanitária com origem em Portugal. À conta bancária para receber donativos (NIB 0033 0000 4547 2046 934 05) chegaram cerca de 12 mil euros, que pagarão as despesas da viagem. O que sobrar será entregue ao Centro Português de Refugiados.
Além dos camiões, na viagem segue também um carro com três dos promotores da iniciativa, que tratarão de eventuais problemas que surjam ao cruzar fronteiras – até porque não descartam a hipótese de ter de mudar o destino final, caso a ajuda seja necessária noutro local. Na véspera seguiram algumas pessoas para Zagreb para, em conjunto com as organizações não-governamentais no terreno, prepararem a chegada. João Vasconcelos não pára. Dá várias indicações a quem fica e a quem vai. Faz uma reunião final com os três motoristas e distribui documentação sobre autorizações de circulação em inglês e francês. Tem também um documento que comprova que são uma caravana com o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
Marco Lourenço é um dos motoristas. Está há três anos no Justo, grupo empresarial que se dedica aos transportes, e já esteve mais tempo fora em trabalho “mas esta vai ser a viagem mais longa e com um espírito totalmente diferente”. Está entusiasmado com a oportunidade trocar a entrega de produtos a granel pela ajuda humanitária. Partiu perto das 12h30 deste sábado com destino a Zagreb, numa viagem em que até chegar à Croácia passa por Espanha, França, Itália e Eslovénia. Se tudo correr bem, os produtos chegam ao destino na terça-feira à tarde.
A maior parte dos caixotes destina-se a crianças, o que não espanta Ana Santiago, a única das promotoras que fica em solo português. “A caravana chama-se Aylan Kurdi, o nome da criança vítima desta crise humanitária e que ficou como um símbolo”, lembra, reconhecendo que nunca esperaram que a iniciativa ganhasse esta dimensão em tão pouco tempo. “A ideia é o destino final ser a Croácia, mas podem existir algumas alterações porque a conjuntura está a evoluir de hora a hora”, explica Ana Santiago, que garante que nesta “semana louca” sobressaiu a generosidade dos portugueses.
“As pessoas perceberam que a situação é urgente. Os portugueses acima de tudo perceberam que têm algum poder de mudar as coisas e podem fazê-lo sem estarem dependentes de governos e políticos. Sentiram que têm esse poder nas mãos, porque muitas vezes têm um sentimento de impotência e isto deu força e motivou”, acrescenta. Sobre as mensagens menos positivas que receberam, garante que foram cada vez menos ao longo da semana. "A maior parte das pessoas que se voluntariaram já têm uma atitude perante a vida que é de ajuda e já ajudam em Portugal”, descreve.
Entre essas pessoas está Luísa Lopes, uma antiga professora de Português de 60 anos. Apesar da noitada de sexta-feira, neste sábado quis vir às despedidas finais. Contribuiu com bens e encaixotou muitos produtos. “Um cidadão que é europeu não tem só direitos, tem também muitos deveres para com a sociedade”, defende. Já tinha estado na organização da manifestação de apoio aos refugiados que houve há uma semana em Lisboa e soma várias experiências de voluntariado. “Encontrei imensas pessoas de que não estava à espera. Prova que quem tem espírito acaba por se juntar quando há grandes problemas”, observa.
Miguel Vieira corrobora a sensação e explica que apareceram “todo o tipo de pessoas” para ajudar. Até algumas com dificuldades, que no final, “com algum embaraço, pediram para levar o que sobrou de pizza para casa”. Luísa Lopes acrescenta que pouco importa quem deu e quem recebe, mas admite que gostava de dar rosto a alguns dos objectos e de continuar a acompanhar a história. Por exemplo, quem deu os super-heróis e que criança os irá receber? A pequena Catarina, de quatro anos, filha de João Vasconcelos, não deu os super-heróis mas diz adeus ao pai e também a alguns dos seus brinquedos que vão nos caixotes. “São para meninos que precisam muito”, diz com um sorriso.