Ocidente ignorou em 2012 proposta russa que previa afastamento de Assad

Revelação é feita por Martti Ahtisaari, a quem embaixador de Moscovo terá dito que o Presidente sírio poderia deixar o poder em caso de negociações.

Foto
Bombardeamento a Douma, subúrbio no Leste de Damasco em poder da rebelião Abd Doumany/AFP

“Não aconteceu nada porque acredito que eles, tal como muitos outros, estavam convencidos de que Assad seria expulso do poder em poucas semanas, por isso não era preciso fazer nada”, denuncia Ahtisaari, recordando as reuniões que manteve, em Fevereiro desse ano, com os embaixadores dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Tinha sido enviado pelos “Sábios” – grupo de antigos líderes mundiais do qual fazia parte juntamente com Nelson Mandela ou o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan – para tentar encontrar pontes de entendimento entre as potências, numa altura em que a revolta iniciada no ano anterior contra Assad tinha dado lugar à guerra civil e se contavam já 7500 mortos.

Três anos e meio depois, recorda a sua surpresa perante o que o embaixador russo Vitali Churkin tinha para lhe propor. “Disse-me três coisas: ‘Primeiro, não devemos dar armas à oposição; segundo, devemos começar de imediato as negociações entre a oposição e Assad; e terceiro, temos de encontrar uma forma elegante para Assad se afastar’”. Diplomata experimentado (foi mediador em negociações no Kosovo, Indonésia, Namíbia e Iraque, tendo recebido o Nobel da Paz em 2008), Ahtisaari diz não ter dúvidas de que a proposta era séria (“voltei atrás e questionei-o uma segunda vez”) e que tinha sido feita com o aval do Kremlin (Churkin “tinha acabado de regressar de Moscovo”).

Questionado pelo The Guardian, Churkin recusou comentar o teor da “conversa privada”. Os embaixadores ocidentais não quiseram também ser citados sobre o assunto, mas recordaram que por essa altura as forças de Assad tinham cometido inúmeros massacres e que a oposição recusava qualquer plano que não incluísse o afastamento imediato do Presidente – algo que Moscovo, tal como Damasco, nunca aceitaram.

“Nunca vi qualquer referência a uma possível cedência em relação a esta posição”, assegura John Jenkins, ex-director para o Médio Oriente do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, dizendo ter dúvidas sobre se Churkin falou com o consentimento do Kremlin ou, a ser verdade, se tudo não passaria de uma manobra de Moscovo para “manter o regime de Assad, com um líder diferente mas com o mesmo desfecho”.

O certo é que a iniciativa de Ahtisaari não desbloqueou o impasse na ONU – europeus e americanos fizeram finca-pé na partida de Assad, Moscovo manteve-se firme ao lado do seu aliado. A inacção diplomática deu rédea-livre às forças de Assad perante uma rebelião desorganizada e permitiu que a Síria se transformasse num tabuleiro onde as potências e os países da região jogam as suas estratégias, numa guerra cada vez mais bárbara que acabaria por servir de berço ao Estado Islâmico.

Pressionados pela crise de refugiados e pela ameaça jihadista, há sinais de que os ocidentais estão dispostos a incluir Assad na equação para pôr fim ao conflito, apesar de o regime não dar sinais de tréguas nos ataques contra zonas controladas pela oposição. Na semana passada, o Ministro da Defesa britânico, Philip Hammond, sugeriu que o Presidente sírio poderia manter-se no poder durante um “período transitório” de seis meses – sugestão que ele recusou de imediato, convicto como sempre do apoio inequívoco de Moscovo, apesar de estar há meses a somar derrotas no terreno.

“Devíamos ter evitado isto, porque se trata de um desastre que nós próprios criámos”, assegura Ahtisaari, sublinhando que a Europa tem o dever moral de acolher os milhares de sírios em fuga. “Não vejo outra opção senão a de cuidarmos desta pobre gente. Estamos a pagar por coisas que fomos nós próprios a causar”.

Sugerir correcção
Ler 47 comentários