Nascimento, vida e morte dos campos de concentração nazis
KL – A história dos campos de concentração nazis parece encerrar num volume definitivo toda a conversa sobre um dos aspectos mais singulares – e mais tenebrosos – do século XX. Nikolaus Wachsmann, porém, continua perplexo com a facilidade com que o terror se tornou "uma forma de vida".
O seu livro KL – A história dos campos de concentração nazis foi descrito como um “monumento” e Ian Kershaw disse mesmo que é difícil imaginar algo que ultrapasse este trabalho soberbo. É o trabalho definitivo sobre os campos?
A História nunca acaba… De certeza que gerações futuras irão colocar questões diferentes e que novos documentos e fontes de informação irão ser encontrados, mas o que tentei fazer foi dar uma vista geral de onde estamos agora e do que sabemos neste momento. Há uma vasta literatura sobre os campos de concentração, escrita por sobreviventes de campos e também por historiadores, e um dos objectivos do livro foi juntar este material num formato que seja interessante de ler, fornecendo o primeiro levantamento geral do sistema dos campos.
Agora que o livro está pronto e à venda, já começou a avaliá-lo, pensando que deveria ter colocado outras questões ou abordado algum tópico de outro modo?
Tenho recebido muitos e-mails de leitores que me dizem que o livro se lê muito bem e lhes ensinou muitas coisas que não sabiam. Isto é muito compensador, já que eu queria escrever uma obra não só para o meio académico mas também para o público em geral interessado no tema; e escrevê-la com muitas histórias individuais, para tornar esta história o mais real possível. A outra questão é que os campos e o Holocausto são tão centrais quando pensamos na História moderna e no século XX, figurando claramente como a imagem do “Mal”, que de algum modo as pessoas pensam que já sabem tudo sobre eles. Mas há muitas coisas com que as pessoas não estariam familiarizadas e que o livro aborda.
Basta olhar para a bibliografia de KL para ver que há centenas de obras escritas sobre os campos de concentração, muitas delas já no século XXI. Por que é que eles ainda são um tema tão fascinante? É por causa dessa imagem do “Mal” que carregam?
É difícil imaginar o Terceiro Reich sem os campos de concentração, não é? Os investigadores conhecem os campos há muito tempo, estudaram-nos de diferentes perspectivas como estando no centro do “Mal” do regime nazi, e todos os objectivos e desejos de destruição dos líderes nazis foram, de uma maneira ou de outra, reflectidos nos campos; por isso, se queremos compreender o Terceiro Reich, o terror e morte que ele gerou, os campos são um bom local para começar.
E o facto de não haver uma resposta definitiva que explique como foi possível existirem contribui para que continuemos a olhar tanto para este tema?
Sem dúvida. A questão fundamental é como é que uma democracia civilizada ocidental, como a República de Weimar alemã, evoluiu tão rapidamente para o Terceiro Reich. É uma pergunta com que ainda nos debatemos e continuam a aparecer respostas cada vez mais sofisticadas. Em KL, o que tento mostrar é que, no que se refere aos líderes nazis, não existia um plano geral. Houve muito mais improvisação e “sorte” do que poderíamos pensar, houve mesmo um momento extraordinário [em 1934] em que os campos quase desapareceram. No que se refere à violência dos guardas, pode parecer sem sentido, sádica e louca, mas, se olharmos mais aprofundadamente, o que descobrimos rapidamente é que não houve um perpetrador típico, tal como não há um campo típico, nem um prisioneiro típico. Os perpetradores fizeram o que fizeram pelas mais variadas razões, alguns por questões ideológicas, outros porque tinham medo de ser vistos como fracos… Como a história extraordinária do médico SS em Auschwitz que se vai abaixo e vomita depois de participar na sua primeira selecção, dizendo que não pode fazer aquilo e pedindo para ser enviado para a frente de guerra, mas que em poucas semanas está a dirigir as selecções de judeus para as câmaras de gás sozinho. As pessoas habituavam-se muito mais rapidamente a este terror do que poderíamos imaginar. E há aqueles que pensavam estar a fazer apenas o que julgavam ser o seu trabalho, enquanto outros construíam as suas brilhantes carreiras: olhe-se para alguém como Rudolf Höss, que começou como um mero guarda SS em Dachau, tornou-se oficial em poucos anos e algum tempo depois estava a chefiar Auschwitz, o maior campo de concentração. São pessoas que investiram a sua vida nos campos e no terror. Para elas o terror era uma forma de vida. Tornou-se a sua profissão, o seu emprego.
Assustou-o, essa percepção de que é muito fácil habituarmo-nos a uma violência tão brutal?
Foi surpreendente para mim a frequência com que, em livros de memórias e noutros documentos, me deparei com exemplos de guardas inicialmente relutantes em envolver-se em violência extrema que se habituam muito rapidamente ao que é esperado deles nos campos. E há também uma variedade de factores sociológicos e psicológicos envolvidos. O que aconteceu muitas vezes é que aqueles guardas queriam integrar-se no “círculo de camaradas”, para não serem excluídos, para não serem vistos como fracos. Estas ideias de masculinidade, força e poder tinham um papel importante nos SS.
Parece quase uma descrição da vontade juvenil de integração, e a verdade é que alguns dos primeiros guardas eram pouco mais do que adolescentes…
Quando o regime estabeleceu o sistema de campos SS, o oficial responsável [Theodor Eicke] insistiu em recrutar tanto quanto possível homens muito jovens, com menos de 20 anos, porque acreditava que eram mais fáceis de moldar, de formar, e eles foram o coração dos SS violentos que depois se expandiram de forma muito dramática e rápida durante a Segunda Guerra Mundial.
Demorou dez anos a escrever KL. Sabia que demoraria tanto tempo a completá-lo?
Eu sabia que seria um projecto longo e difícil, mas não pensei que precisasse assim de tanto tempo… Mas estive sempre convencido de que era importante contar esta história e nunca pensei em desistir. Foi uma longa viagem, difícil e complexa pelo volume de livros e artigos que se referem a uma quantidade impressionante de documentos em arquivos na América, em Israel, na Alemanha e na Áustria – e eu quis consultar o máximo de documentos possível.
Disse há pouco que recebeu muitos contactos de leitores. O que é que eles identificam como mais surpreendente? A fase inicial dos campos, mais desconhecida?
Acho que sim. Os campos de concentração são quase sinónimos, na cabeça das pessoas, do Holocausto. O facto de os campos terem sido criados, inicialmente, para destruir a oposição política interna, e depois se terem transformado em instrumentos para destruir o que os nazis consideravam “desviantes sociais” – sem-abrigo, homossexuais, pedintes, etc. – foi surpreendente para muitas pessoas. Só durante a guerra é que os campos ganharam um papel importante no Holocausto e este é um aspecto importante, que a maior parte das pessoas não saberia. De igual modo, o facto de haver uma enorme diferença entre os campos antes da guerra e depois de ela começar. Antes da guerra os prisioneiros tinham uma hipótese muito mais elevada de sobreviver e de serem libertados, durante a guerra era muito mais provável que permanecessem no campo e que morressem. Outra coisa que poderá ser surpreendente para os leitores é a quantidade de campos que existiu. Os nazis estabeleceram mais de 1.100 campos de concentração e campos-satélite e o que isto significa, sobretudo na parte final da guerra, é que eles eram incrivelmente presentes e visíveis na Alemanha. Havia um campo em ou perto de qualquer vila maior ou cidade, os alemães viam os prisioneiros a trabalharem nas ruas ou a marcharem, às vezes podiam até trabalhar perto deles em fábricas ou edifícios.
Para a maioria das pessoas, Auschwitz ainda continua a ser o nome de que se fala quando se fala de campos de concentração e de Holocausto, mas, como explica em KL, o campo não foi criado para os judeus, os assassínios em massa não começaram lá e os judeus não foram, sequer, os primeiros prisioneiros a quem foi aplicada a tatuagem com números no corpo. Porque é ainda tão difícil ver para lá de Auschwitz?
Há uma grande diferença entre o que os investigadores sabem sobre os campos e a informação que chega ao público em geral, e essa foi exactamente uma das razões por que eu quis escrever o livro: para expandir algum do conhecimento que os historiadores adquiriram nos últimos 20 ou 30 anos, e torná-lo acessível a uma comunidade de leitores muito mais abrangente. Julgo que isto é muito importante para compreender, como eu digo no início do livro, que Auschwitz é mais do que o Holocausto. Por outro lado, Auschwitz não foi criado como um campo para exterminar judeus, mas para destruir a resistência polaca. Só a meio da guerra é que se tornou também um campo de morte do Holocausto. E também há muito mais no sistema de campos do que Auschwitz. Ele foi o maior de todos e mais mortífero, de longe, mas está ligado a centenas de outros campos. Os prisioneiros chegavam ali vindos de outros campos ou eram enviados dali para outros campos. Rudolf Höss aplica ali regras e regulamentos que tinham sido testados noutros sítios. Não podemos compreender o sistema de campos se nos focarmos apenas em Auschwitz, temos de o pôr em contexto.
Poderíamos falar de Holocausto se não existissem campos de concentração?
Acho que sim. Os campos desempenharam um papel cada vez mais importante no Holocausto, e isso é especialmente verdade em Auschwitz, mas ele não começou nos campos de concentração. Há muitos, muitos mais judeus em guetos, em campos de trabalho forçado e noutras áreas controladas pelos nazis, na parte inicial da guerra, do que em campos de concentração. No início de 1942, quando os nazis começam a dirigir-se para o Holocausto, não há mais do que poucos milhares de judeus nos campos de concentração. As origens do Holocausto estão, em larga medida, fora dos campos, embora eles contribuam para ele. Uma vez que ele começa, os campos têm um papel significativo, especialmente Auschwitz. Mas é importante dizer que muitos mais judeus morreram fora dos campos de concentração do que no seu interior. Foram mortos a tiro nas florestas, em valas comuns, em terrenos no leste da Europa, morreram em guetos ou nos campos de extermínio, como Treblinka.
É muito claro no seu livro que não poderíamos falar de campos de concentração, tal como os conhecemos hoje, sem Heinrich Himmler e Theodor Eicke. Já se referiu ao primeiro como uma espécie de “padrinho” dos campos, enquanto Eicke foi o homem que tornou a visão de Himmler possível. Quem eram estes homens? O que tinham de específico para criarem um sistema tão ilegal e violento como o dos campos de concentração?
São muito diferentes. Himmler é um jovem líder SS muito ambicioso, que vê a expansão dos campos como um modo de aumentar o seu poder pessoal junto da liderança nazi. Usa constantemente os campos de concentração para tentar impressionar Hitler. Mas se ele tem a ideia geral dos campos de concentração, Eicke é a pessoa que torna o sistema real. É preciso ter sempre presente a ideia de que quando os nazis chegam ao poder não há sistema de campos de concentração nem um plano claro para eles. Os nazis têm de inventar esse sistema e Eicke é o homem que o faz. É Eicke que define como os prisioneiros serão tratados, como é que os campos serão organizados, e o tipo de guardas que devem existir ali. É um velho nazi, um homem incrivelmente fanático, que consegue impressionar os seus homens ao ponto de o tratarem quase como um pai. Mesmo décadas depois da guerra, antigos SS referiam-se a ele como “Papá Eicke”.
Explica no livro que não se pode falar de uma experiência-tipo de guarda SS ou de prisioneiro e que, durante toda a vida dos campos, era muito diferente ser um prisioneiro judeu ou, por exemplo, uma prisioneira política. Foi por esta razão que recorreu a tantos testemunhos de prisioneiros e guardas?
Essa foi, sem dúvida, uma das razões. Os campos de concentração são muitas vezes descritos como um planeta à parte, mas o que descobrimos é que cada prisioneiro teve uma experiência diferente, dependendo da idade, do género, da ocupação, da nacionalidade, da altura em que foram presos, do local para onde foram enviados, do papel que lhes foi atribuído… Era necessário tornar isto muito claro para os leitores, através das mais variadas experiências relatadas pelos próprios prisioneiros, mas houve outra razão. Há muitos testemunhos que foram dados imediatamente depois da guerra ou nos anos muito próximos e tentei usá-los ao máximo, para ultrapassar uma dificuldade enorme quando se escreve uma história tão tenebrosa como a dos campos, que é qual a linguagem apropriada para se descrever estes horrores. Tive de pensar muito cuidadosamente sobre como iria escrever este livro. Não queria ser demasiado presente enquanto autor nem dizer aos leitores o que deveriam sentir, recorrendo a muitos adjectivos. Escolhi que fossem os prisioneiros e os perpetradores a falar.
Os campos de concentração mudaram muito, durante a sua existência, entre 1933 e 1945. Podemos dizer que a única constante foi a violência?
Sim e não. Foram sempre violentos, mas o nível e o tipo de violência alteraram-se drasticamente. Em 1933, os campos são sobre humilhação, rituais de degradação, sobre atormentar e torturar os prisioneiros. Mas não são sobre morte ou extermínio. Isto só começa a espalhar-se pelos campos numa grande escala durante a guerra. Por isso, sim, a violência foi uma constante, mas até a violência muda dramaticamente. Na verdade, a única constante dos campos é mesmo a mudança. Temos de ter presente que estamos a falar apenas de um período de 12 anos e é absolutamente surpreendente como os campos se transformam completamente.
Os últimos meses de guerra foram absolutamente caóticos para todos os envolvidos nos campos de concentração. As marchas de morte tiraram a vida a milhares de pessoas e, apesar de todos os argumentos que as tentam explicar, continuam a não fazer o mínimo sentido. Como é que as avalia?
É muito difícil responder a isso. No final da guerra temos milhares e milhares de pessoas macilentas, doentes, a morrerem e a caminharem no que parecem marchas sem sentido por toda a Alemanha, de uns campos para outros… É claro que é algo absolutamente sem sentido, e que apenas prolonga o sofrimento e leva à morte de mais prisioneiros, mas para os SS há uma série de factores em jogo. Alguns acreditavam que os prisioneiros que sobrevivessem podiam ser usados no trabalho forçado para virar a guerra a favor da Alemanha; também havia a ideia louca na cabeça de Himmler de que poderia usar alguns destes prisioneiros, sobretudo judeus, como reféns para negociar algum tipo de paz; e havia ainda todos os rumores sobre o que os prisioneiros libertados fariam à população civil, desde violações a roubos e por aí fora. Por isso, os SS também acreditavam que deviam manter estes prisioneiros para proteger a população alemã. Mas há outras razões – a alternativa seria deixar os prisioneiros sozinhos e isso, para o guarda SS, significava que ele já não teria um emprego. Para eles era muito mais perigoso lutar na frente do que estar com os prisioneiros, portanto, de uma forma perversa, também havia ali algum sentido de auto-preservação.
Uma questão recorrente ao longo dos anos tem sido se o povo alemão sabia o que estava a acontecer e o seu livro é muito claro sobre isso – o “alemão normal” sabia, tinha de saber.
Há diferentes níveis de conhecimento. Durante a guerra, a maioria sabia que os campos eram locais de extrema violência, de trabalho escravo brutal e de assassínio em massa. Se sabiam exactamente quem estava detido e como os prisioneiros estavam a ser tratados é outra questão. Mas interessou-me mais olhar para a reacção dos alemães comuns do que dizer meramente se sabiam ou não, porque houve reacções muito diferentes. Havia locais que cuspiam, insultavam ou juntavam-se à caça a prisioneiros fugidos, participando em verdadeiros banhos de sangue, mas também temos pessoas que deixavam comida para os prisioneiros, tentando ajudar. O que encontrei em maior escala foi uma espécie de indiferença. A verdade é que os alemães comuns estavam preocupados com a guerra, consigo próprios e com os familiares em combate; não pensavam duas vezes sobre os prisioneiros.