Dez anos depois, Guimarães é um impasse
O Centro Cultural Vila Flor começa hoje a comemorar uma década de vida, condicionado pelos constrangimentos financeiros que o têm fragilizado nos tempos mais recentes. O lugar que colocou a cidade no mapa é hoje motivo de preocupação: anatomia de uma crise.
Não é fácil encontrar uma única resposta a estas questões, mas o diagnóstico merece alguma unanimidade entre os agentes culturais locais. Esta “não é a cidade” que Ricardo Areias, um dos directores do Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura (CAAA), imaginava três anos depois da Guimarães 2012: “A ruptura foi muito maior do que seria de esperar e isso não foi nada benéfico para o público." Rui Dias, da promotora e editora discográfica Revolve!, concorda. Vê “muitos mais visitantes” no centro histórico, mas “o lastro que podia ter ficado a nível cultural perdeu-se”. “A cidade fez uma grande revolução em termos culturais. E, como todas as revoluções, chegou a um impasse, sintetiza Miguel Moreira, director da Útero, companhia associada do CCVF.
A ideia de que o projecto cultural da cidade vive um momento de indefinição é admitida pelos responsáveis da cooperativa municipal A Oficina, que gere o centro. Para o director-executivo da estrutura, Frederico Queiroz, era expectável que 2013 fosse um ano “de ressaca” da CEC, após o qual seria necessário lançar “novas linhas” para o projecto. “É aqui que entra o problema criado pela lei 50/2012”, assegura.
Que dificuldades criou a Lei do Sector Empresarial Local à cooperativa? A Oficina tem-se deparado com vários obstáculos para receber os três milhões de euros anuais que lhe são destinados pela Câmara de Guimarães para executar a programação cultural. A lei não considera as cooperativas entidades do sector empresarial local, e como tal o Tribunal de Contas (TC) tem o entendimento de que aquela entidade teria de estar sujeita a um concurso público como qualquer outra empresa ou instituição. A autarquia tentou várias soluções para este problema ao longo dos últimos três anos (concurso público, protocolo de colaboração), mas foram sucessivamente chumbadas pelo TC, desde 2013. A cooperativa tem por isso vivido em permanentes dificuldades financeiras, mantendo a actividade com recurso à banca, a receitas próprias e a apoios pontuais da autarquia. “Ficámos completamente atados”, ilustra Frederico Queiroz. O problema criado pelos sucessivos chumbos do TC “limita e às vezes retira força e tempo", impedindo a Oficina de se "focar no que é essencial”, justifica o mesmo responsável.
Fruto destes problemas, no final do ano passado a cooperativa cultural de Guimarães acordou rescisões com dez pessoas, entre as quais estavam produtores, técnicos de luz e som e os dois únicos actores com contrato permanente na companhia de teatro residente, o Teatro Oficina. Saíram também da estrutura dois dos directores: Tiago Andrade, responsável pela produção, e a directora do Serviço Educativo, Elisabete Paiva – que assumiu a direcção do Festival Materiais Diversos. Em poucas semanas, a Oficina ficou sem um quinto do seu efectivo.
As dificuldades financeiras tiveram ainda como consequência um abrandamento no ritmo da programação artística do CCVF, com reflexos ao nível de público. O número de espectadores (contabilizando apenas as entradas pagas) tem estado em quebra nos últimos três anos. Se em 2013 foram 122 mil pessoas a passar pelo Vila Flor, no ano passado já não chegaram às 120 mil. A manter-se o ritmo registado até ao momento, em 2015, o total deste ano deverá ficar à volta dos 100 mil espectadores. Ainda assim, o equipamento tem mantido uma procura acima de outros teatros municipais da região, como a Casa das Artes de Famalicão ou o Theatro Circo, em Braga – entretanto, no Porto, reabriu o Rivoli.
A crise de público no CCVF também se tem sentido nos festivais que marcam a sua programação anual. A edição 2015 do festival de dança contemporânea GuiDance foi a menos concorrida dos últimos três anos (ao todo recebeu 1660 espectadores, contra os 2800 de 2013) e os Festivais Gil Vicente também tiveram uma quebra de 20% no público (totalizando 713 entradas em Junho último). Apenas o Guimarães Jazz, prestes a completar 25 anos, consegue escapar a este cenário, com crescimento da procura entre as duas últimas edições: 7.964 espectadores, em 2013, e 8.371, em 2014.
Ultrapassar a estagnação
Os números confirmam a opinião dos agentes locais que o Ípsilon contactou, e também a percepção que se tem ao revisitar alguns dos espaços que, há três anos, estavam cheios de vida. No café-concerto do CCVF acabaram os encontros inusitados com artistas que passavam pela cidade; nos espectáculos, há menos pessoas nas plateias; as inaugurações de exposições, nos equipamentos municipais ou em espaços independentes, como o CAAA ou o Laboratório das Artes, são menos concorridas.
A fábrica ASA, que foi um dos principais espaços de programação em 2012 – e onde a estrutura que organizou a Capital da Cultura gastou mais de meio milhão de euros – voltou a ser o centro de negócios multifunções que tinha sido inicialmente pensado. O sector G, por exemplo, onde decorreram as exposições da programação de Arte e Arquitectura, é hoje um campo de futebol sintético. O único espaço cultural que se mantém activo é a black box criada durante a Guimarães 2012, mas têm sido raros os espectáculos ali apresentados.
Como se ultrapassa este momento de estagnação? A resposta do vereador da Cultura, José Bastos – que, antes de ter sido eleito para o cargo, em 2013, foi o principal responsável pelo CCVF –, volta a entroncar no problema criado pela Lei do Sector Empresarial Local. Nos últimos meses, o Governo aprovou uma alteração do diploma que passa a incluir as cooperativas municipais no universo do sector empresarial local, o que parece abrir a porta a um desbloqueio da situação. “Passa a haver a possibilidade de assinatura de um contrato-programa, que pode ser a solução para esta situação”, explica Bastos.
O contrato-programa com a Oficina ao abrigo da nova versão da lei deverá ser votado na primeira reunião do executivo municipal. Assim que o acordo for validado pelo TC, a cooperativa poderá receber os três milhões de euros relativos a este ano e começar a normalizar as suas contas, espera aquele responsável. “Ultrapassada essa dificuldade, já está em fase final de definição a nova estratégia da Oficina e do CCVF”, promete José Bastos. A cooperativa e o centro cultural vão continuar a ser “parceiros fundamentais” na política municipal para a cultura, mas não serão os únicos, anuncia: a Câmara também quer dar um novo papel às associações e demais instituições culturais da cidade.
O vereador aponta também para a mesma altura a nomeação de um novo director artístico para o CCVF. José Bastos coordenou a programação do centro cultural até sair para a Câmara. Nessa altura, entraram Frederico Queiroz para a direcção-executiva – mas sem responsabilidades directas na programação – e o coreógrafo Rui Horta foi apresentado como director artístico. A relação durou, porém, pouco tempo e, antes do final de 2014, Horta deixou Guimarães para voltar a concentrar-se no trabalho de criação – desde então o Vila Flor está sem direcção artística.
Festa condicionada
Esta indefinição na cooperativa A Oficina obrigou a reformular os planos iniciais para celebrar o 10.º aniversário do CCVF, admitem os seus responsáveis. Os festejos da primeira década da vida do centro cultural vimaranense serão, por isso, condicionados, mas o cartaz tem motivos para atrair público a Guimarães ao longo do mês de Setembro: tudo começa já este fim-de-semana com o Manta, um ciclo de dois concertos que “não é um festival de Verão”, como sublinha o coordenador da programação, Rui Torrinha. “Se for um festival, o Manta é um festival autoral, porque tentamos sempre ter no cartaz artistas que tenham uma assinatura evidente”, valoriza.
Tal como nos últimos anos, a escolha recai num artista nacional e noutro internacional. Assim, na noite desta sexta-feira toca em Guimarães Manel Cruz, antigo vocalista dos Ornatos Violeta e fundador de vários projectos posteriores, num concerto em que promete fazer uma retrospectiva da carreira, mostrando também algumas das canções de um novo disco. No sábado, o palco será da norte-americana Angel Olsen, que se estreia em Portugal em nome próprio (dias depois, a 8 e 9, tocará também no Campo de Santa Clara e na ZDB, em Lisboa, respectivamente), depois de já ter passado por Guimarães, em 2011, integrada na banda que acompanhou Bonnie ‘Prince’ Billy. Os concertos do Manta realizam-se no jardim do CCVF e têm entrada gratuita.
Até ao fim do mês, a data redonda continua a festejar-se com propostas que pretendem ser “uma amostra do percurso” que o CCVF tem vindo a fazer, explica Rui Torrinha: além de Pântano (Grande Auditório, 12 de Setembro), criação da Útero, companhia associada do CCVF, haverá duas estreias de teatro, Pantagruel, encenado por Gonçalo Amorim, numa co-produção entre o Teatro Oficina e o Teatro Experimental do Porto (17 a 20 de Setembro), e Festival, da mala voadora, companhia que regressa a Guimarães depois de, há dois anos, também ter trabalhado em co-criação com o Teatro Oficina (26 de Setembro).
Mesmo em crise, até ao final do ano do seu 10.º aniversário o Vila Flor deve atingir a marca de um milhão de espectadores.
Uma década no mapa
Apesar da indefinição na Oficina e no CCVF, o panorama cultural de Guimarães está bem longe de ser um deserto. O CAAA tem mantido nos últimos três anos uma programação regular e foi uma das estruturas apoiadas este ano pela Direcção-Geral das Artes. Depois da pausa de Verão, a actividade é retomada, a 12 de Setembro, com duas exposições: Cláudia Clemente (fotografia) e Marta Leite (artes plásticas). Da programação fechada até ao final do ano constam a residência dos performers Lisa Parra e Daniel Pereira e exposições de Albuquerque Mendes.
Em Outubro (dias 4 e 5), acontece a quarta edição do Noc Noc, um festival multidisciplinar que intervem em lugares inusitados da cidade, como casas particulares, e que este ano recebeu o selo Europe for Festivals/Festivals for Europe (juntamente com o GuiDance e o Guimarães Jazz, organizados pelo CCVF). Uma semana mais tarde, no dia 10 de Outubro, a Revolve! organiza a terceira edição do festival Mucho Flow, com Girl Band, Circuit des Yeaux e Pega Monstro já anunciados no cartaz. A promotora, nascida em 2009 mas a que 2012 deu um empurrão definitivo – foi então responsável por um ciclo de concertos indie e pelo 20 20 20, em parceria com a Lovers&Lollypops –, lançou-se também como editora discográfica, com edições em vinil de 7 polegadas de Pontiac e Papaya, no ano passado, às quais se juntam este ano um LP do novo projecto Filho da Mãe e Ricardo Martins e o primeiro disco de Toulouse. A jovem banda de Guimarães é o melhor exemplo de outra das mudanças recentes na cidade: nos últimos anos, começaram finalmente a surgir projectos musicais com relevo nacional, ao contrário do que acontecera na década anterior. O trio, que deu o primeiro concerto no Mucho Flow do ano passado, em Outubro, já andou, entretanto, pelo Mexefest e por Paredes de Coura. Os conterrâneos The Wild Booze também estiveram no aquecimento do festival do Alto Minho e Captain Boy foi um dos nomes do cartaz do Super Bock, Super Rock deste ano.
A este movimento independente, junta-se também o crescimento da procura do mais caro investimento da Guimarães 2012 (16 milhões de euros), o Centro Internacional das Artes José de Guimarães. O espaço, que reúne obras do artista plástico nascido na cidade, juntamente com as suas colecções privadas de arte pré-colombiana, arte africana e arte arqueológica chinesa reunidas, tem mantido uma programação regular de exposições de artistas contemporâneos em diálogo com a colecção permanente. Nos últimos dois anos, o número de visitantes aumentou 18%, fixando-se em 16.248 entradas ao longo de 2014.
Estes fenómenos não são independentes dos dez anos de vida do CCVF que agora se comemoram. Por muito importante que fosse a actividade das associações locais, Guimarães nunca tinha tido um equipamento que lhe permitisse ter uma programação artística regular e foi o centro cultural municipal que ocupou esse espaço. A aposta no território contemporâneo, da música ao teatro, e em particular na dança, permitiu conquistar um reconhecimento no meio e atrair público exterior aos limites concelhios, colocando a cidade no mapa nacional.
“Guimarães sempre tinha desejado ter o seu teatro e passou a rever-se na sala”, lembra Carlos Mesquita, presidente do veterano Cineclube de Guimarães, que programa a oferta de cinema do CCVF. “Além do equipamento, que é excelente, passou a haver uma verba substancial para fazer programação cultural como nunca antes [houve] na história da cidade”. Maria Luís Neiva, do CAAA, faz uma avaliação semelhante, considerando que o centro cultural “dinamizou e fidelizou um público que tem sido importante para a afirmação de Guimarães". A programadora daquele espaço independente afirma mesmo: “Se o CCVF não existisse, nós também não existíamos."
Rui Dias e Bruno Abreu, dois dos quatro elementos da Revolve!, são de uma geração ainda mais jovem. Nasceram nos anos 1980 e lembram-se do que era a vida cultural de Guimarães para quem cresceu na década seguinte: “Havia a programação de Verão, o Cineclube e o Guimarães Jazz. E uns concertos de bandas de garagem." É essa memória que os leva a elogiar o papel que o CCVF teve na afirmação pública da política cultural da cidade. E que leva Rui Dias a dizer: “Há uma Guimarães antes do CCVF e outra Guimarães depois do CCVF, mais do que antes da CEC e depois da CEC."