Ministra britânica só quer europeus que já tenham emprego garantido no Reino Unido
Theresa May diz que a liberdade de movimentos significa "liberdade para mudar de emprego, e não para passar fronteiras com o objectivo de procurar emprego ou reclamar direito a benefícios".
Num artigo publicado no jornal Sunday Times, a governante culpa a livre circulação de pessoas na Europa continental pelo aumento do número de estrangeiros no Reino Unido, uma situação que diz ser "simplesmente insustentável".
O texto surge poucos dias depois de terem sido divulgados os números oficiais sobre o saldo migratório no Reino Unido entre Março de 2014 e Março de 2015, que apontam para a chegada ao território de mais 330 mil estrangeiros em relação aos que saíram – um balanço que é três vezes superior ao que o primeiro-ministro, David Cameron, tem prometido desde 2011.
A principal queixa da ministra do Interior é a entrada no Reino Unido de cidadãos da União Europeia (UE), que beneficiam da livre circulação no chamado Espaço Schengen – o grupo de 26 países europeus (22 da UE e seis com acordos) que aboliram os antigos controlos nas suas fronteiras comuns, e de que o Reino Unido não faz parte.
"A migração de fora da UE desceu 10% em relação a 2010, mas a migração do interior da UE mais do que duplicou. É por isso que a renegociação com a UE é muito importante", escreveu a ministra do Interior. O Governo de David Cameron exige uma série de concessões a Bruxelas para recuperar autonomia em relação a algumas políticas, entre as quais a imigração, e agendou um referendo para finais de 2017, em que os eleitores britânicos vão dizer se querem continuar a fazer parte do bloco europeu ou se querem sair.
Comissão Europeia trava alarmismo
Ao contrário do que a ministra do Interior britânica defende, a Comissão Europeia deixou claro, este fim-de-semana, que os fundamentos do espaço interno sem fronteiras não precisam de ser alterados para reforçar a segurança contra possíveis ataques terroristas, e muito menos para restringir a liberdade de circulação entre os países europeus – o Acordo de Schengen prevê que os governos podem ordenar inspecções para encontrar armas e confirmar identidades nas fronteiras internas da UE se estiver em causa uma ameaça específica. Por exemplo, em Março de 2004, seis dias depois dos atentados em Madrid, o então Governo português decidiu repor as fronteiras aéreas e terrestres durante a organização do campeonato europeu de futebol e do festival de música Rock in Rio.
"Na medida do possível, é essencial que os transportes públicos permaneçam abertos e facilmente acessíveis. A segurança deve ser proporcional em relação à ameaça", afirmou este domingo a comissária europeia dos Transportes, Violeta Bulc, chamando a atenção para os riscos de uma "reacção exagerada", num momento em que a atenção europeia está quase totalmente virada para as questões migratórias – no Sul em relação aos refugiados que fogem de guerras e perseguições em países como a Síria e a Eritreia, e no Reino Unido em relação aos estrangeiros no geral, sejam requerentes de pedidos de asilo ou europeus que procuram emprego.
A comissária europeia reagia a uma declaração conjunta de nove governos europeus, assinada este domingo, que se comprometeram a melhorar a colaboração para "prevenir, detectar e combater actos violentos que indivíduos radicalizados possam querer cometer em território da União Europeia". A reunião, em que estiveram presentes ministros de França, Alemanha, Reino Unido, Itália, Espanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e Suíça, foi convocada em resposta ao ataque num comboio de alta velocidade entre Amesterdão e Paris, no dia 21 de Agosto – o atacante, um marroquino de 26 anos, que foi dominado por um grupo de passageiros, viveu em Espanha e estava identificado pelas autoridades espanholas como um jovem radicalizado.
"Convidamos a Comissão Europeia a discutir uma emenda ao código das fronteiras de Schengen para permitir a realização de controlos onde e quando sejam necessários", disse o ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve, sem adiantar pormenores.
Traficantes "são os mais beneficiados"
Mas no artigo publicado no Sunday Times, a sua homóloga britânica, Theresa May, revela-se mais preocupada com o aumento do número de europeus que entram no Reino Unido, e aponta mesmo o exemplo de países do Sul e do Leste da Europa: "Um terço dos enfermeiros de Portugal emigrou; 20% dos licenciados em Medicina na República Checa saem do país assim que acabam o curso; quase 500 médicos saem da Bulgária todos os anos."
"Quando foi consagrada pela primeira vez, a liberdade de movimentos significava liberdade para mudar de emprego, e não liberdade para passar fronteiras com o objectivo de procurar emprego ou reclamar o direito a benefícios [sociais]", escreveu Theresa May. Por isso, defende a ministra britânica, os líderes europeus "têm de tomar decisões difíceis, enfrentar os interesses poderosos e restaurar o princípio original que sustenta a liberdade de movimentos no interior da UE".
O artigo centra-se nos europeus que chegam com facilidade ao Reino Unido em busca de trabalho, porque circulam sem restrições na Europa continental, mas Theresa May estabelece uma relação directa entre esse movimento – "um direito fundamental garantido aos cidadãos da UE", como lembra o comissário europeu para as Migrações, Assuntos Internos e Cidadania, Dimitris Avramopoulos – e a chegada de milhares e milhares de refugiados que fogem de guerras e perseguições de países como a Síria, o Afeganistão ou a Eritreia.
"Os acontecimentos do Verão têm-nos mostrado que as consequências mais trágicas do falhanço do sistema migratório europeu recaem sobre os que estão em risco de serem explorados. E os mais beneficiados têm sido os monstruosos gangues que vendem falsos sonhos e fazem negócio com as fronteiras livres no interior da UE", escreve a ministra britânica.
Esta posição mais dura de Theresa May pode ser recebida com irritação pelo próprio primeiro-ministro britânico, David Cameron, que tem sido forçado a discutir políticas um pouco mais moderadas com Bruxelas, escreve o editor de Política do Financial Times, Jim Pickard.
Depois de ter sido avisado por vários parceiros europeus de que a livre circulação não será posta em causa, Cameron aposta agora em propostas menos radicais, como só começar a pagar prestações sociais a quem trabalha no país há mais de quatro anos, por exemplo.
"Como tal", escreve Pickard, "a intervenção da ministra do Interior será interpretada como uma chamada aos deputados eurocépticos do Partido Conservador, na corrida à liderança do partido, que começa dentro de alguns anos".