Portugal, moda Outono-Inverno
Eis o primeiro volume do caleidoscópio de Miguel Gomes, a trilogia As Mil e uma Noites, que leva ao limite uma das características dos filmes do realizador: a tendência para “mudarem” a meio, começarem como uma coisa.
E uma trilogia como As Mil e uma Noites, se leva ao limite uma das características dos filmes de Gomes – a sua tendência para “mudarem” a meio, começarem como um coisa e acabarem como outra – multiplicando as “mudanças”, as diferenças de registo e de tonalidade, mais não faz do que reiterar essa visão do mundo (e do cinema) como uma infinitude de histórias e narrativas à espera de quem as conte. Já era assim – e para ficarmos só com as longas-metragem – A Cara que Mereces, a multiplicar os relatos e as narrativas dentro da narrativa. Já era assim Aquele Querido Mês de Agosto, onde, para além da divisão entre a parte “documental” e a parte “ficcional”, se deve notar que muito do “documento” consistia justamente na compilação de relatos, gente a contar histórias, reais ou imaginadas, para a câmara ou para o microfone. E Tabu tinha o seu segmento decisivo – a parte africana, de “época” – lançado igualmente como relato feito por uma personagem, o velho Ventura a rememoriar a sua história.
Encontraremos muitas histórias e muitos registos ao longo dos três volumes desta trilogia, e frequentemente veremos cada história independente a abrir-se para ainda mais histórias, tipo bonecas russas, como será sobretudo o caso do volume 2, O Desolado (estreia a 24 de Setembro). Mas nenhum é uma montanha... russa como este primeiro volume, o mais variado e o mais imprevisível, aquele onde se passa do riso ao nó na garganta sem aviso, da ficção mais delirante ao mergulho na realidade (é, de resto, com um mergulho, literalmente, que o filme acaba, nas águas de um mar de Inverno). É o filme em que se anuncia o projecto: como em Aquele Querido Mês de Agosto Gomes auto-encena-se, a ele e à sua equipa, em momento de crise. A crise nacional, precipitada pela intervenção da troika (e da acção de “um governo aparentemente desprovido de sentido de justiça social”, conforme a legenda inicial repetida em cada um dos volumes), mas também a crise do realizador no momento de filmar. Fazer o quê, fazer que filme? A resposta, mais do que nas cenas de auto-figuração, que apostam naquele registo clownesco (o realizador em fuga…) que Gomes gosta de cultivar e que se calhar já não “cola” tão bem como “colava” no tempo do Agosto, por exemplo, talvez possa ser sucintamente encontrada numa dessas cenas iniciais, nos estaleiros de Viana do Castelo. Vemos uma equipa de televisão a fazer uma entrevista a um trabalhador do estaleiro, mas o som que ouvimos não é o dessa entrevista. É “outra coisa”, e essa “coisa” é o filme: tentar falar da “crise” deixando o jornalismo à porta (apesar da inspiração jornalística do projecto, que nasceu da compilação de faits divers publicados na imprensa) e, sobretudo, abandonando a retórica oficial da “crise” tal como as televisões, bem ou mal, instituíram ou reproduziram. Filmar “outra coisa”, filmar “outras histórias”.
Histórias de um Portugal em versão Outono-Inverno. Se há algo que raramente muda ao longo dos três filmes é a carga da meteorologia, o sol e o Verão estão reservados para o espaço da ficção puramente imaginária, a “Arábia” que Miguel Gomes foi inventar na costa de Marselha, quase uma “Arábia” de BD, cheia de azuis e dourados, lamparinas e turbantes. Que pode essa imaginação trazer à realidade? Bastante. Uma das sequências mais divertidas – mas curiosamente, pelo que temos lido e ouvido, das mais menosprezadas – é a comédia, absurda e melancólica, mas inequivocamente comédia, onde reinventam as negociações entre o governo português e a troika, feita de diálogos rápidos, frases curtas, e uma espécie de vulnerabilidade nostálgica das personagens, a cortar o maniqueísmo (é o segmento que mais retoma o espírito de Redemption, a curta-metragem, já percorrida pelo tema da “crise”, que Gomes realizou entre Tabu e As Mil e uma Noites). Depois, como se conduzido por links conhecidos apenas da imaginação transbordante do realizador, teremos histórias de sindicalistas e miúdas punks, mergulhos estóicos e colectivos, o simbolismo “bíblico-felliniano” de uma baleia filmada por dentro e por fora e que depois explode, um regresso ao interior e à região do Agosto (a auto-citação será expressa) para mais uma história que mete incêndios, apesar do Inverno, e amores adolescentes contados com a graça, propriamente adolescente, da grafia SMS (outra coisa constante ao longo dos três volumes é o recurso às legendas, que terá o seu auge, até um pouco excessivo, no terceiro episódio, O Encantado, que estreia a 1 de Outubro). Mas, no meio deste caleidoscópio, nada causa um efeito maior do que as sequências em que, de frente para a câmara, pessoas reais (a que o filme chama os Magníficos) vêm contar as suas histórias reais – de como perderam os empregos, de como a vida se lhes virou do avesso. Entre a leveza e a gravidade impõe-se a gravidade. Será ela o tom dominante do volume 2, O Desolado.