Coração angolano, voz de musseque
Antes de o conhecermos como músico, foi atleta de eleição. O cantor da resistência anticolonialista transformou-se em estrela internacional. Quarenta anos depois da independência de Angola, continua a ser voz da consciência do seu povo
Recebe-nos de sorriso aberto, como imaginamos que recebe toda a gente, num rés-do-chão em Alfornelos, nos arredores da Pontinha, subúrbio de Lisboa. Abençoadamente jovem nos seus 72 anos, ágil e irrequieto como o atleta de destaque que foi outrora, o homem nascido José Adelino Barceló de Carvalho, em Porto de Kipiri, a norte de Luanda, vive feliz com o que vida lhe trouxe e com a vida que prossegue hoje, sempre activa.
Com mais de quatro décadas de carreira, continua a dividir-se entre Lisboa, Paris e Luanda, levando a sua música e as personagens das suas canções, extraídas aos musseques (os subúrbios não asfaltados da grande cidade), ao mundo que o ouve há muito. Leva-lhe o semba, a rebita, o merengue ou a kilapanda, músicas de tradição que assumiu como missão preservar e divulgar.
Ao perguntarmos por Bonga Kuenda em Portugal, o mais provável é que a conversa desemboque em Mariquinha ou Olhos molhados, duas canções que, por aqui, se lhe colaram à pele. Acontece que, quando esta última foi editada em 1988, incluída no álbum Reflexão, aquele que foi o primeiro disco de ouro e platina atribuído a um músico africano em Portugal, já Bonga tinha percorrido muito caminho. Quando a Mariquinha nos chegou, já estávamos em 1996 e quase quatro décadas tinham passado desde que o jovem José Adelino, ainda adolescente, ajudara a fundar grupos de folclore angolano que eram também forma de resistência contra o colonialismo português.
Aqueles anos de formação foram os determinantes na sua vida. Percorrendo bairros como o Marçal, Coqueiros ou o Bairro Operário, ia tendo consciência cada vez mais plena das injustiças e desigualdades criadas pela colonização. Percorrendo-os, o seu olhar atento absorveu os rituais de vida e a cultura transmitida de boca em boca na rua, que defenderá e exaltará até hoje.
Angola é independente há 40 anos e Bonga viveu todo o processo — o antes, o durante e o depois —, ora de forma próxima, ora à distância, fruto da sua condição de emigrado na “estranja”. A sua música foi e será sempre um comentário e uma reflexão sobre a condição angolana, sobre aquilo que permanece de imutável no espírito das suas gentes e sobre aquilo que a realidade vai mudando: a colonização, a independência, a guerra civil e a incompleta ideia de democracia que se lhe seguiu.
Numa das paredes da casa de Alfornelos, vemos o diploma com que o Estado francês o distinguiu, no final de 2014, como Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França. Há muito mais que Mariquinha ou Olhos molhados. Há o estatuto de maior embaixador da música angolana, cimentado desde a década de 1970. Há o percurso como campeão do atletismo português, correndo pelo Benfica. Há aquele miúdo que se juntava aos irmãos (é o terceiro de nove) para acompanhar o pai, tocador amador de concertina, raspando a dikanza — equivalente ao reco-reco português e instrumento que se tornaria uma das suas imagens de marca.
Percussionista, acompanhou músicos angolanos radicados em Portugal e é provável que alguns leitores tenham memória de ver Rui Mingas, outro músico que fora atleta, no famoso Zip Zip — Bonga acompanhava-o nos batuques.
Em 1972, acontece algo de milagroso. Em Roterdão, Barceló de Carvalho torna-se Bonga Kuenda. Com o também angolano Mário Rui Silva e o cabo-verdiano Humberto Bettencourt, a voz revela-se por fim. Oito horas em estúdio, nada mais, nada menos. Um disco de estreia, uma obra-prima. Angola 72, cantado em quimbundo, língua do Noroeste de Angola falada por cerca de três milhões de pessoas, é um álbum de uma riqueza interpretativa desarmante, de uma nostalgia desafiante e de denúncia consequente. “As pessoas sentiam-se representadas nele”, dir-nos-á. Impossível, de resto, não nos sentirmos representados, mesmo não sendo angolanos, na força da voz, das guitarras e das percussões (tocadas por ele); não nos sentirmos tocados por aquele jorro de música, tão próxima de tão descarnada, tão à flor da pele.
Com Angola 72 percebeu que a voz rouca, que, em pequeno, lhe valera ser dispensado do coro da igreja (“Aqui só voz lírica”, recorda terem-lhe dito), podia, afinal, ser cativante. Mais: aquilo que cantava, e como o cantava, tocou não só os angolanos, cabo-verdianos ou moçambicanos que compreendiam tão bem o que dizia, como outros ouvidos atentos. Da Holanda haveria de saltar para a Alemanha e para a Bélgica. Daí para a Holanda e, por fim, para a França, onde vivem hoje quatro dos seus seis filhos.
Foi em Paris que recebeu a notícia da revolução portuguesa. Pouco depois, editava Angola 74, álbum registado com outras condições técnicas e com um grupo de músicos alargado (magistral a participação do saxofonista guineense Jo Maka), mas que retém a força inabalável do seu canto. O estatuto que ganhara leva-o a contactar com todos os principais dirigentes da Angola independente, de Agostinho Neto a Jonas Savimbi, passando por Holden Roberto.
Em 2012, Bonga editou Hora Kota, o seu trigésimo álbum. Mais uma vez, e como sempre, a importância da tradição, o apelo a que a sabedoria dos mais velhos seja aproveitada para o bem comum. Bonga é cidadão do mundo, homem viajado que, na semana anterior à entrevista com a Revista 2, actuara num festival em Londres, nova paragem na sua deambulação constante.
Recentemente, meteu-se pelos caminhos do fado e gravou com Ana Moura Valentim, tema incluído em As Vozes do Fado, álbum de homenagem a Amália Rodrigues. Nos próximos meses, entrará em estúdio para preparar novo disco. “A tónica desse disco vai ser o reencontro e a família”, revela. “Não tem de ser família de sangue. Pode ser alguém que faz parte da nossa vida e que, portanto, se torna família. Será sobre o reencontro dessa grande massa de angolanos.”
Crítico das falhas democráticas do Estado angolano, comprovadas mais uma vez pela recente prisão de 15 jovens activistas, crítico igualmente da “pouca frontalidade dos governos portugueses sucessivos” perante a situação: “O meu melhor amigo é aquele que me chama a atenção para as coisas que estão mal, não o que fala às escondidas por interesses, neste caso económicos” —, Bonga Kuenda continua a ver-se acima de tudo como um representante do povo a que pertence.
Quase no final da entrevista, recordou um concerto que dera no Algarve há alguns dias. “O espectáculo estava a abarrotar de gente que veio de Angola, que veio sei lá de onde, porque não me interessa de onde vêm as pessoas”, recorda. Conta-nos de miúdas e miúdos que “já não são africanos, que já nasceram cá”, mas que dançavam como se dançava nos tempos da sua infância. Sorri novamente aquele sorriso aberto e sincero que é o dele: “Aquilo fez-me pensar que, afinal, contribuí para alguma coisa. Estava ali a nossa música, a nossa tradição, aquilo que eu via e fazia há 50 anos em Angola, a terra de origem.”
Nasceu em Porto de Kipiri, a 30 quilómetros de Luanda, a 5 de Setembro de 1942. Que terra era esta?
Mais de 30 a 35 quilómetros de Luanda. É na zona do Bengo, a norte de Luanda. Os meus pais tinham ali uma chitaka, uma espécie de horta onde plantávamos a jinguba, batata-doce, mandioca. Eu nasço ali acidentalmente, porque não vivíamos lá, vivíamos em Luanda. Foi uma coincidência. Mas nasci ali e, como tradicionalista que sou, tenho muito orgulho em ter nascido naquele lugar específico, longe da grande cidade, que detesto. Deu-me as vivências de garoto no interior do país. Os miúdos daquele tempo [em Luanda] diziam como brincadeira que eu era do mato, que era um ‘matoense’. Faziam-no para tentar diminuir, mas eu dei-me conta que o ‘matoense’ tinha mais importância que os indivíduos da cidade, porque guardávamos a recordação da dança, da música, dos instrumentos típicos tradicionais, dos velhos que tinham muito mais pronúncia, das comidas que vinham de lá para Luanda e que eram totalmente diferentes. A gente tinha a boa mandioca, o bom [peixe] cacusso. Desde miúdo que guardei uma vontade de afirmação dessas coisas do interior.
E Luanda? O que representava para si?
Luanda era a minha vivência. Mas a colonização marginalizava-nos nos musseques, nos bairros mais pobres onde faltava electricidade e água, onde faltava tudo. Eu fui uma das crianças desses sítios. Tínhamos de ir buscar água, porque não tínhamos torneira em casa. A electricidade eram aqueles candeeiros com chaminé ou a candeiazinha a óleo de palma. Estamos a falar dos anos 1940 e dos anos 1950. Fomos evoluindo calmamente, acompanhando aquilo que tinha que ver com a nossa identidade, porque demo-nos conta de que quem mandava no país era um estrangeiro, o colono.
Como era o convívio entre o musseque e a cidade?
Não era muito bom, para dizer a verdade, porque na cidade estavam as pessoas que não tinham grandes carências, os filhos de assimilados à cultura portuguesa. Para nós era mais fácil comer um funge ou moamba e vestir-nos com os nossos paramentos, dançarmos as nossas músicas e os nossos ritmos, do que para os meninos da Baixa. Uns eram os meninos bem-falantes, filhos de funcionários públicos e de assimilados à cultura portuguesa, os outros eram os indivíduos da resistência cultural pró-africana de Angola.
Quando ganha consciência dessa realidade colonial?
Nós tivemos essa consciência desde muito cedo. Uma criança africana de 10 anos já faz coisas de adulto. Vai fazer as compras ao longe na noite, se há uma cobra que entra em casa, é ela que vai ter de a matar, porque é o homem que está em casa. Não éramos crianças à espera que lhes pusessem a papinha toda na boca. Senti essa diferença ao longo dos anos. Era uma criança já adolescente antes de o ser. Tínhamos de nos fazer por nós próprios, com três educações. A da escola, a dada em casa pelos pais e, no meu caso, principalmente, a educação da rua. Porque o africano é muito espontâneo, muito natural. É tudo directo e quase tudo se passa na rua. Eu considero-me um privilegiado por ter tido essa educação. A criança era praticamente filha de toda a gente. A gente fazia uma asneira qualquer e havia um mais velho que ia a passar e repreendia. E puxava as orelhas. Éramos repreendidos duas vezes. Na rua e depois em casa.
Nessa altura defendia-se o carácter excepcional da colonização portuguesa, a ideia romantizada, para efeitos políticos, do luso-tropicalismo.
Mentira, tudo mentira. Todos os colonialismos foram horríveis, todos, com a santa cruz que entrou por ali dentro para benzer os negros. Mas a mesma cruz que os benzia benzia em missa campal os tanques e as metralhadoras para os matar. Fomos enganados, totalmente enganados. Quando os meninos negros iam para a escola, onde havia calmeirões de 20 anos a fazer a instrução primária, porque lhes era vedado o acesso ao liceu, às escolas técnicas e às faculdades, tornava-se muitíssimo complicado. Recriminavam quem não soubesse dizer correctamente “plural”, por exemplo. Há várias línguas em Angola, com gramática e dicionário, e eles falavam com o sotaque que se tem ao falar uma língua estrangeira. Diziam “prural”. Um alemão também não diz correctamente, por causa do seu sotaque, uma palavra portuguesa. Tivemos de combater isso. A maior forma de os povos estreitarem amizades e relações é a convivência, mas dificilmente a gente ia a casa de um branco. Havia hierarquia e autoritarismo, o chefe do posto que batia às pessoas. Senti isso na pele e senti isso no olhar, nas expressões. Vi como todos nós vimos. Não houve quem não tivesse visto os negros a serem maltratados, espezinhados, presos. Toda uma situação que marcou muito a minha geração.
E que foi um grande impulso para a sua música.
Felizmente, tinha a música. Nesse aspecto também sou privilegiado, porque o pai cantava e tocava a concertina. Tocava em casa, não era profissional. A mãe dançava, a avó cantava e marcava o ritmo nas bordas do prato. Embebi-me de música, fui embalado na música, quando era pequeno. Os vizinhos faziam música, nas ruas havia música como há aqui no coreto com a banda. No nosso caso, não era banda, nem pouco mais ou menos, mas era música tradicional. No final de tarde juntavam-se uns grupos com batuques, aquilo a que chamam aqui “tambores”. Todos os dias, cantando coisas improvisadas do quotidiano. A vizinhança era a música. Só tocávamos nos musseques, nos grupos recreativos que existiam e que nós mesmos fundávamos. Não era o colono que organizava essas coisas. O colono, quando organizava, fazia uma espécie de “pseudo-social” para inglês ver: “Cá estamos, a mãe pátria, a promover esses negrinhos.” Nós tocávamos nas nossas festas, em baptizados, casamentos, aniversários. Foi por ali que comecei as minhas actividades. Depois nos grupos recreativos dos vários bairros, mas sempre nos musseques.
Tornou-se activo musicalmente desde muito cedo. E sempre interessado na questão da tradição, da preservação da cultura musical angolana.
Fui fundador de grupos folclóricos, nos Kimbandas do Ritmo e nos Kissueia. Dava uma mão forte no Carnaval, que nós achámos de uma importância capital, porque nos demos conta que, ao fazer o desfile, não para o governador, mas na zona onde morávamos, estávamos a fazer uma grande manifestação sociopolítica, cantando músicas contra o colono, o ocupante. A partir daí, manifestava-se a criatividade de cada um, de cada grupo. Foi formidável, uma mudança radical naquela pachorrice do indivíduo que fica a ver a banda passar. Começámos a reagir, tanto que o Carnaval foi reprimido pelas autoridades, que perceberam o que queríamos. Era a forma de dizermos que, mau grado a colonização, tínhamos música, tínhamos tradição, tínhamos uma maneira de ser e de estar, e que era preciso alimentar e defender isso.
A música era da maior importância para si desde muito novo. Mas é através do desporto que primeiro se destaca. Como começou a nascer o campeão de atletismo Barceló de Carvalho?
Tinha a música em paralelo com o desporto. Era com as duas coisas que ocupávamos os tempos livres. Cedo me dou conta de que tinha dotes especiais [para o atletismo, vindo a ser atleta do São Paulo do Bairro Operário e do Clube Atlético de Luanda]. A partir daí, nunca mais parei até vir para Portugal. Comecei por ser campeão em Angola [aos 23 anos, conquistou o título de campeão nos 100, 200 e 400 metros]. Depois, fui campeão aqui. A primeira vez que corri numa pista profissional de tartã foi em Atenas [Taça da Europa, 1967] e pulverizei imediatamente o record nacional [dos 400 metros], que demorou dez anos a ser batido. Nessa altura, já não estava em Portugal, já estava na “estranja” da vida.
Que imagem fazia de Lisboa antes de a ver pela primeira vez? E que cidade descobriu, quando nela aterrou para ser atleta do Benfica?
Primeiro tive, antes de chegar, aquela reacção nacionalista: “Não deve haver nada melhor do que Angola. Os amigos, a convivência salutar, isto é o paraíso.” Mas tinha curiosidade, claro. Quando a gente chega aqui, quer saber o que isso é. Eu cheguei e encontrei a mesma pobreza que havia em Angola e portugueses tão descontentes quanto os angolanos. Depois, claro que as pessoas são diferentes. Vou recordar um episódio. Quando assinei os documentos da secção de atletismo do Benfica, que na altura era no Campo Grande, fui convidado para ir beber um café à Churrasqueira do Campo Grande, que já existia naquele tempo. O homem toma o café dele, tira as moedas e diz-me assim: “Pronto, já paguei o meu, paga o teu e vamos embora.” Ele é que me tinha convidado. Percebi logo que aqui era diferente, cada qual por si e Deus para todos. Quando nós vamos a um restaurante, quem convida é que paga tudo. Aqui não, é uma forretice incrível (risos).
Nesse tempo, a comunidade africana em Lisboa era muito mais reduzida do que actualmente.
Absolutamente, mas era comunidade de qualidade. Havia os embarcadiços, os melhores jogadores de futebol, os funcionários públicos de férias com dinheiro no bolso para gastar, os estudantes que se vinham formar. Encontrávamo-nos para os lados de um restaurante no Rossio, o Piquenique. Íamos lá para ver a nossa malta e eram os jogadores que nos pagavam uns copos, porque ganhavam mais que nós. Não interessava o clube. Desde que fosse bumbo [negro], não interessava que fosse do Porto, do Sporting ou do Benfica. Eu mesmo era amigo do Eusébio [avançado do Benfica] e do Hilário [defesa do Sporting]. Encontrávamo-nos pela amizade que tínhamos e pelas grandes afinidades que partilhávamos. Um africano de Angola tem grandes afinidades com um africano de Moçambique, quanto mais não seja pelas comidas e pelos sabores. Fazíamos cada farra! Aquilo eram umas kizombas [festas] incríveis, improvisadas. “Parece que fulano trouxe camarão de Moçambique, vamos lá comer o camarão do gajo.”
Estava em Portugal para fazer carreira no atletismo. E a música? Estava também nos seus planos?
Não, não tinha ideia nenhuma de fazer carreira na música. Enquanto estive em Portugal, de 1966 até 1972, fui sempre o Barceló de Carvalho do atletismo português. Mas já tinha trazido de Angola alguma experiência com a música e isso não desaparece. Colaborei com Eleutério Sanches, com Vum Vum, com a Lilly Tchiumba, Teta Lando, Rui Mingas, Duo Ouro Negro. Tocava percussão, punha umas vozes para ver se ficava bem. Mas só me voltei a sério para a música depois de 1972, quando saí de Portugal por razões políticas. Estava envolvido com a resistência anticolonialista a funcionar em Luanda. Era como que um estafeta. Como viajava muitas vezes para o estrangeiro, levava cartas de informação sobre o que se passava no interior. Não eram questões forçosamente ligadas a partidos políticos, eu não apoiava partido nenhum, mas questões da consciência dos angolanos. Quando os tipos são presos em Angola, fui avisado: “Cuidado que aquela célula de que fazes parte já foi apanhada.” Nessa altura até já nem estava no Benfica, treinava no Belenenses. Quando chegou a notícia, “pernas para que te quero”.
Como se deu essa fuga para o exílio?
Muito normal. Afinal, era atleta. Disse que ia comprar uns discos à Holanda — a ingenuidade dos homens — e nunca mais voltei. É já na Holanda que oficializo o nome Bonga, para não dar a conhecer a identidade Barceló de Carvalho. Tinha o receio de, sendo perseguido pela polícia política [portuguesa], poder ser apanhado pela polícia holandesa e devolvido a Portugal. É daí que vem o Bonga. A escolha do nome, que está relacionado com ritmo, com musicalidade, nasce também da necessidade de afirmar as raízes. Bonga Kuenda. Mas na Holanda, em Roterdão, a fome das pistas e do atletismo levou-me a querer treinar. E começo a ser visto. “Que é isso? Quem é esse gajo que corre desta maneira?” Pouco depois saía num jornal que aquele Bonga era Barceló de Carvalho, recordista português dos 400 metros. Assustei-me e fugi novamente, para a Alemanha.
Regressaria depois à Holanda para gravar o seu primeiro disco, Angola 72. Acompanhado por apenas dois músicos [o angolano Mário Rui Silva e o cabo-verdiano Humberto Bettencourt], é música de intervenção denunciando o colonialismo, cantando a pobreza, a injustiça, a dureza da emigração. Bonga a olhar para longe, com nostalgia, para a terra que deixara noutro continente. É um disco visceral, como se cantasse aquilo que não conseguia mais guardar dentro de si.
Era tudo o que tinha cá dentro e que tinha de sair. Eu já cantava nas festas que fazíamos na Holanda para lembrar Angola, mas não se acreditava que aquela rouquidão da minha voz sobressaísse. Nem eu acreditava. Mas o Angola 72 é gravado e começa a ter um impacto incrível que até a mim me surpreende. Começou a chegar a Angola através de embarcadiços cabo-verdianos, alguns dos quais acabaram presos. O Governo tinha um orelhão… Descobriram logo. A partir daí, comecei a dar mais umas voltinhas para não ser apanhado. Nessa altura a minha voz foi usada pelos grandes partidos angolanos. O MPLA usou-a nas suas rádios, que emitiam fora de Angola, naturalmente, e que eram escutadas por toda a gente. Fui sentindo o impacto [do disco] nos telefonemas para Angola que ia conseguindo fazer. “Pá, não queiras saber, fizeste um best-seller.” Todo o mundo queria aquele disco, porque as pessoas se sentiam representadas.
A partir desse momento, seguir uma carreira musical tornou-se inevitável.
Atletismo não podia fazer mais. Na Holanda não podia, nem tinha moral e força física para o fazer. Mas, tendo gravado, estava à espera que houvesse uma oportunidade. E iam-me dizendo que eu tinha de assumir o disco que tinha gravado. Olhei em volta e vi vários nomes de música internacional de intervenção: Francesca Solleville, Bob Dylan, Chico Buarque de Hollanda, Fela Kuti, Franklin Boukaka, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira. Percebi que não estava sozinho. É nesse contexto que chego a França e é a França que me apoia, que me considera, que reconhece o valor do artista enquanto cantor de intervenção.
Onde estava quando se dá o 25 de Abril?
Já em Paris. Tinha gravado o Angola 74 e o 25 de Abril acontece quando o disco estava prestes a sair. Recebi a notícia com risos e lágrimas. Mas risos e lágrimas que emudeceram rapidamente, pela responsabilidade que todos tínhamos a partir dali. Se na guerrilha tínhamos tido aqueles problemas todos com dissensões, inimizades, intrigas, com a independência, que sabíamos que ia naturalmente acontecer, como ficaríamos? Era certo que iriam chegar todas as conotações políticas, mas a nossa prioridade tinha de ser, primeiro que tudo, dar as mãos entre nós e saber o que queríamos e para onde íamos. Mas com todas as coisas apetecíveis que Angola tem, já estávamos a ver o mundo a girar à volta da massa, do cumbu, como dizemos, que fazia movimentar os viciados habituais, fabricantes de armamento e fazedores de guerras. Tínhamos de ter tido uma atenção incrível a tudo isso, mas já estávamos divididos. Tínhamos o FNLA, a UNITA, o MPLA. Lá em Paris ficámos a olhar uns para os outros. “Quem é que vai ser quem neste contexto?” Ficámos 48 horas a pensar nisso. Depois começaram a aparecer os angolanos que quiseram logo partir. Na maior parte dos casos, deram-se mal, mas qual é o filho da terra que não tem esse impulso de voltar? O país era nosso e queríamos consertá-lo.
Foi um dos que quiseram regressar para ajudar a “consertar” o país?
Eu fui indo a Angola, mas com a retaguarda defendida. Nunca voltei definitivamente por várias razões. Principalmente porque já tinha a minha actividade artística [em França] e tinha músicos [na banda] que não eram angolanos. Mas, quando era solicitado, ia. Fui a Angola, via África do Sul, para tocar nas zonas da UNITA. Da mesma forma que fui a Moçambique para me encontrar com Samora Machel. Fi-lo porque era solicitado: “Será que o nosso grande artista nos pode dar o prazer de vir cantar para esta grande massa de angolanos?” E eu ia e, como pessoa livre, assumia-o e constatava a realidade in loco. Corri riscos, efectivamente, mas não sou pertença de ninguém. Em 2015 ainda estou a pagar a factura de ter sido amigo de Jonas Savimbi.
Angola atravessou uma guerra civil que se prolongou por quase 30 anos. A paz só poderia ser alcançada, como foi, com a morte de um dos líderes em conflito, neste caso Jonas Savimbi, em 2002?
Nem pouco mais ou menos. O que houve foi medo do diálogo. Nós temos de ter a capacidade de encontrar os nossos líderes e de falar com eles. Como é que não dizemos o que nos vai na alma? Eu, mais uma vez, sou um privilegiado. Falei com o Holden Roberto [da UPA], falei com todos eles, em encontros que não foram públicos, porque o que queria era saber o que pensavam. Tive um encontro com José Eduardo dos Santos, no palácio, e ele recebeu-me de braços abertos. Temos a mesma idade e eu fui como embaixador da sociedade e da cultura musical angolana, aquele que divulga Angola no bom sentido. Tive com ele a mesma postura que com qualquer outro dos dirigentes políticos com quem me encontrei: vamos falar, vamos conversar, vamos rir. Os políticos africanos têm de reaprender a rir. Não é só rir “de caxexe”, às escondidas, mas rir publicamente. Rir por poder dizer coisas sérias. Rir com motivo para rir, por ter seguido uma política boa para o povo — mas raramente os políticos riem.
No início de carreira, a sua música foi censurada pelo Estado Novo. Nos anos 1980, viu algumas canções serem censuradas pelo governo de uma Angola independente.
Veja-se o ridículo. Tudo por causa de políticos maquiavélicos.
Que canções eram essas que foram censuradas?
Eram as canções normais que a gente canta quando sente que há um clima que queremos denunciar. Mas, quando fui proibido, as pessoas continuavam a dançar em casa as canções do Bonga. Ai da farra ou kizomba onde não passasse o Bonga. O que me faz manter o bom humor é que 80% das minhas actividades artísticas são lá fora [de Portugal e de Angola]. Dão-me dinheiro para viver, para sustentar as crianças, para ajudar este e aquele e não ter de estar à espera, de mão estendida, pela subvenção de nenhum governo, nem de nenhuma personagem. E assim vou levando a vida de bom humor, fazendo espectáculos da melhor qualidade para demonstrar a este povo o que somos capazes de fazer, musicalmente falando. Isso para mim é muito importante.
Nos anos 1980, quem não conhecesse o passado de Bonga, a imagem que tinha era a de um cantor exuberante, embrulhado em peles e túnicas, rodeado de bailarinas. Uma imagem estereotipada de África. Esse é o mesmo Bonga que diz detestar o exotismo.
Digo-o por causa do europeu mal educado, mal formado e desrespeitador da cultura alheia. Principalmente quando se trata de ex-colonizados, têm infelizmente o hábito de denegrir ainda mais. “Bonga, venha aqui cantar, mas não se esqueça de trazer umas mulatas para remexer as bundas.” Dava a impressão que a bunda da mulata era mais importante do que o canto do Bonga. Mandei lixar esses tipos. Já nas europas lá de cima, queriam fazer de mim um Julio Iglesias africano. Foi o que encontrei [nos anos 1980]. Coube-nos a nós educar essas pessoas a reconhecerem-nos verdadeiramente como artistas. No primeiro espectáculo que fiz em França, fui incluído a título de animador. Nem me consideravam artista. Claro que antes de começar a cantar, já com um fundo de música, tive de dizer umas coisas. A minha tarefa não tem sido fácil. Tive de lutar para ter respeito. A melhor maneira de nos defendermos é saber o que somos e para onde vamos. O que aceitar e ao que dizer não.
Neste momento estão presos 15 jovens angolanos, sem acusação formalizada, tendo sido insinuado que estariam a preparar um golpe de Estado. Que comentário lhe merece a situação?
Não estou a gostar nada dessa brincadeira. Já viu qual é o aparelho necessário para dar um golpe de Estado em Angola? Estamos a ser ridículos. Engrenaram estas prisões para servir de exemplo, que é o que têm feito. A imagem que Angola nos está a dar é que reprime para que outros saibam que é assim que age, para outros terem medo de reagir. Isso é uma vergonha. E eu tenho de perguntar: onde está a comunidade internacional quando acontece isto? A situação é triste para a democracia. Estes nossos países dependem muito da comunidade internacional. Petróleo, jogadas políticas, comércios, indústrias, passaportes diplomáticos. Não é maltratando, aprisionando que chegamos a lado algum. Onde está o diálogo? Então as pessoas não falam entre si? E a nossa casa fica assim, desarrumada? Tem de se dar de comer a quem tem de comer, dar instrução e dar saúde. Esse é o caminho. E parar com aquela campanha sistemática de dizer que quem critica Angola é contra Angola. Já foi assim noutro tempo, no da outra senhora. Então e agora? Como é que estamos a conviver entre nós? Até fizemos uma guerra que nunca devia ter existido. Veja o que diminuímos do ponto de vista humano. Uma tristeza. Não é por aí, tenham paciência.
Em Alçapão, canção do álbum Diaka (1990), canta: “Proibido cantar, para não alertar / proibido voar, para não informar.” São versos que ainda fazem sentido?
Continuam a fazer sentido e a ter cabimento. E beneficiam de eu não ser explícito, para não vulgarizar as coisas. Ainda temos esta boa maneira de ser, a de não atacar com termos grosseiros. Ainda temos um savoir-faire. Mas será que esses indivíduos não nos ouvem? Como é que vamos falar para sermos escutados e sermos entendidos? Já fomos mais unidos. Noutro tempo, a gente encontrava-se nas ruas. Agora estamos cada qual para o seu lado. As pessoas não estão a falar, não se estão a visitar. Eu não quero que a mundialização nos transforme dessa forma. Até porque é o povo que se está a lixar.
Dia 11 de Novembro cumprem-se os 40 anos da independência de Angola. É uma data redonda propícia a balanços. Qual é o seu?
Estes 40 anos têm muito que se lhe diga. Temos um ditado que diz “Nós entre nós”, ou seja, temos de estar bem entre nós para receber quem nos vem visitar. Mas as famílias estão divididas e isso é terrível. Por onde é que a gente vai? Por que caminho enveredar? Não é o do chinês, não é o do russo, não é o do brasileiro. Vamos ter de mudar, mas não temos de perguntar a ninguém como se muda, vamos ter de ser nós próprios. Qualquer que seja o teu clube, somos todos mwangolés. Vamos falar e vamos consertar, porque os problemas são da nossa responsabilidade. Quarenta anos depois, ainda vamos condenar o colono? Foram 40 anos nossos e 500 com outros, mas não conseguimos mais do que isto com os nossos 40? Prendemos, matámos, trucidámos, roubámos. Quando fazemos o stop? Precisamos de conviver. Precisamos do reencontro.